A Plataforma do .mínimo realizável. e as .linhas. de Wise

AutorDaniel Braga Lourenço
CargoAdvogado
Páginas207-224

Ver nota 1

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"Se humanos titularizam direitos fundamentais, por que não animais? Consideramos que direitos não constituem exclusividade dos seres humanos, devendo ser estendidos para além da fronteira da humanidade, logrando, com isso, destruir o falacioso abismo legal existente entre humanos, de um lado, e não humanos, de outro. Da mesma forma com que a lei protege determinadas espécies da extinção, nega, aos mesmos animais, de maneira geral, o acesso aos direitos mais básicos, um anacronismo que deve ser urgentemente solucionado.

N.R. Nair v. Union Of India (KERALA HIGH COURT OF INDIA, 6 de junho de 2000)2..

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"Escravo é ‘aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade absoluta de um senhor, a quem pertence como propriedade’".3O advogado STEVEN M. WISE leciona "Animal Rights Law" na Universidade de Harvard, Vermont, John Marshall e no programa de pós-graduação de "Animais e Políticas Públicas" na Tufts University School of Veterinary Medicine. Foi também um dos mentores do aclamado "Animal Legal Defense Fund - ALDF" e atualmente ocupa a presidência do "Center for the Expansion of Fundamental Rights", órgão que ajudou a fundar em 1995. É autor de diversas obras que abordam a questão dos direitos dos animais, entre as quais podem ser citadas: Rattling The Cage: Toward Legal Rights for Animals (Cambridge: Perseus Books, 2000) e Drawing the Line: Science and the Case for Animal Rights (Cambridge: Perseus Books, 2002)4.

Será que os animais seriam realmente nossos escravos, escravos por natureza de acordo com a concepção aristotélica5O professor WISE,

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utilizando-se da expressão originalmente cunhada por LOVEJOY6, denomina de "The Great Chain of Being" ("A Cadeia Evolucionária da Vida" ou "A Grande Cadeia do Ser") a concepção segundo a qual se prescreve um universo estático no qual cada forma ocupa um espaço e um lugar apropriado, necessário e permanente, que fora designado previamente para ela dentro de uma hierarquia naturalística. STEPHEN JAY GOULD (1941-2002), eminente paleontologista de Harvard, afirma que a noção da "Great Chain of Being" é, em realidade, uma idéia "explicitamente e veementemente antievolucionária" que não deixa espaço para mudanças significativas ou alterações de "nível/degrau" 7. De fato, percebe-se que essa noção denota o sentido de tempo sucessivo, linear, contínuo, nãohomogêneo, progressivo e irreversível. Nas palavras do próprio LOVEJOY, constitui ela "uma das seis pressuposições mais vigorosas e persistentes do pensamento ocidental. Até um século atrás era, provavelmente, a concepção predominante do esquema geral das coisas, da própria essência da constituição do universo e de seus elementos"8.

Segundo esse pensamento, a matéria inanimada (pedras, terra, água, etc.) estaria no primeiro degrau enquanto as plantas se colocariam em seguida, em um patamar acima, por terem vida. Só então viriam os animais que, além da vida, possuiriam os sentidos fundamentais. No ápice desta cadeia evolutiva estariam os seres humanos, "abençoados" com a racionalidade. Nessa pirâmide existencial, acima do homem só haveria Deus, como entidade onipotente, que seria a encarnação da razão pura.

Além desse obstáculo histórico/filosófico, WISE enumera ainda outras questões dele derivadas de ordem econômica, política, religiosa, psicológica e legal, todas dificultadoras do fim da escravidão animal. No que se refere ao problema legal, esclarece que o sistema do Direito

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incorporou a falaciosa barreira que separa humanos e não-humanos, atribuindo aos primeiros a qualidade de sujeitos de direito e, aos últimos, a de meros objetos de direito. Na opinião do autor, a personalidade jurídica seria o escudo que protege os seres humanos da interferência indevida de terceiros sobre o seu patrimônio jurídico (vida, integridade física e psíquica, etc.). Legalmente falando, pessoas contam, titularizam direitos subjetivos e são protegidas per se, coisas não.

Mas o que seriam "direitos"? Segundo relata WISE, POTTER STEWART, ministro da Suprema Corte Norte-Americana, afirmou, quando tratava de um caso envolvendo a liberdade de expressão e pornografia, que temos um senso intuitivo do que sejam "direitos", do mesmo modo que sabemos que algo tem conteúdo pornográfico, ainda que não possamos definir precisamente o que venha a ser a pornografia. WESLEY HOHFELD, professor de Direito de Yale, buscando aprimorar a noção de STEWART, procurou encontrar um denominador comum mínimo apto a caracterizar a realidade dos direitos. Nesta linha, argumentava que os "legal rights" consistiam em uma vantagem de posição reconhecida por normas legais9. Assim sendo, uma pessoa somente possui uma "vantagem" porque outra possui uma "desvantagem" que lhe é correlata. SAMUEL PUFENDORF (1632-92), nessa linha, trazia o ilustrativo exemplo de que, antes de Eva ser criada, Adão não poderia ter direitos, porque nenhuma outra pessoa habitava o Jardim do Éden.

HOHFELD, com base nestes parâmetros, estabeleceu quatro modalidades ativas dos denominados "legal rights", tomados na acepção de direitos subjetivos: (1) liberdades ou privilégios ("liberties"): todos os indivíduos possuem uma infinidade de liberdades de fazer aquilo que bem desejam, mas o valor prático dessas liberdades é limitado, pois nem sempre há o correlato dever por parte da coletividade de a elas respeitar10; (2) "claims"11: configura o direito de exigir algo,

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correspondendo passivamente ao "dever" de ação ou de abstenção/ omissão. Uma afirmação sobre um direito subjetivo exige o correspondente dever de respeito para que possa validamente existir. É discutível se seria cabível se exigir que o proponente possua capacidade efetiva de entendimento para que possa reclamá-la ou não. Para não entrar em maiores debates quanto a esse ponto, WISE faz uma concessão ao partir do pressuposto de que animais não possam validamente, de maneira autônoma, postular uma "claim" em face de terceiros; (3) poder ("powers"): uma pessoa pode se utilizar de um "poder" para afetar os direitos de outrem. O poder de acesso ao Judiciário na modalidade de "poder de litigar ou demandar" (capacidade de ser parte) é comumente citado como um dos principais "poderes". WISE, coerentemente, mantém a mesma posição anterior no sentido de que animais não sejam titulares de "poderes", embora entenda bastante discutível o ponto em questão12, 13; (4) imunidades ("immunities"): elas impedem legalmente

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outra pessoa de interferir indevidamente no seu conjunto de interesses individuais. As imunidades mais comuns na common law correspondem a não ser escravizado e a não sofrer tortura (uma pessoa seria imune à escravidão e à tortura). Neste sentido, entende que não há como se exigir que alguém seja suficientemente capaz para que lhe sejam concedidas determinadas imunidades.

É, portanto, com relação às imunidades que o autor desenvolve seu raciocínio para extensão de direitos aos animais. Segundo WISE, se imaginarmos que o sistema legal seja representado graficamente por um círculo ("round hole"), onde animais são atualmente tratados como coisas sem quaisquer direitos; e a situação de animais como portadores de direitos, por um quadrado ("square peg") fora do círculo, para conjugar a situação de animais atingindo efetivamente os direitos no âmbito legal, teríamos de enquadrar o círculo, ou circular o quadrado. Para ele a melhor opção, ao menos diante das possibilidades que oferece a Common Law, seria a de circular o quadrado ("peg-rounding"), num movimento de alargamento dos direitos para além daqueles tradicionalmente reconhecidos. Segundo o autor, essa teria sido a

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estratégia utilizada, em Brown v. Board of Education14 pelo famoso advogado dos direitos civis THURGOOD MARSHALL.

Observa ainda que há uma nítida divisão entre as decisões judiciais que prestigiam o formalismo em detrimento de outros valores e aquelas que buscam nos princípios sua linha de justificação e legitimação. Os juízes que se apegam ao "formalismo" ("precedent judges") baseiam suas decisões inflexível e exclusivamente no passado por meio dos precedentes, entendendo que a previsibilidade, a estabilidade e a certeza dos julgamentos deve, em todos os casos, nortear a aplicação das normas legais em abstrato. O jurista exemplifica com um caso ocorrido nos EUA em junho de 2001, quando um policial, ilegalmente, atirou e matou um cão diante de seus proprietários15. Um juiz da Suprema Corte de Wisconsin sustentou que a lei veda que um proprietário obtenha indenização por danos morais ("emotional distress damages") em casos como este, pois um cão representa tão-somente uma propriedade, "tal como ressaltam os precedentes". Em sentido contrário, leciona WISE, estão os juízes "substantivos" ("substantive judges") que rejeitam o passado como paradigma absoluto. A visão legal destes últimos preocupa-se com a dinamicidade dos valores sociais, tais como a moralidade, a justiça e o avanço científico. Os princípios e as políticas vivem e morrem e, essa contingência há de ser levada em consideração para que não se tenham como absolutamente imutáveis os precedentes:

Decisões passadas, ou precedentes, não delimitam normas específicas, mas princípios gerais, e os juízes não necessitam ater-se aos modos particulares pelos quais os seus pares anteriores se pautaram. Se um princípio de justiça demandar que uma determinada norma deva ser alterada, os juízes devem usar estes princípios para reconstruir a lei, até mesmo em um sentido que possa destoar completamente em relação ao passado16.

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WISE discorre sobre os fundamentos dos princípios da liberdade e da igualdade, detendo-se, em particular, nos aspectos da autonomia e da auto-determinação que, em última análise, são aspectos da liberdade. Para o jurista C. K. ALLEN, a diferença essencial entre uma pessoa e uma coisa reside na qualidade da vontade que ela exprime. As criaturas animadas possuem algum atributo análogo à vontade humana, mas que dela...

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