A plebe multitudinária e a constituição de seus tribunos na sociedade global

AutorAdriano Pilatti
CargoProfessor (PUC-Rio); Doutor em Ciência Política (IUPERJ).
Páginas6-17

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* dois mil e quinhentos anos, uma sedição do “povo miúdo” contra a “gente graúda” da nascente República Romana produzia a criação de uma nova instituição, dotada de novas e também de renovadas atribuições decisórias, atribuições essas que seriam exercitadas através de novos procedimentos públicos. Uma vez em operação, essa nova instituição, essas novas e renovadas atribuições e esses novos procedimentos contribuíram para o desenvolvimento de um processo de conquista crescente de direitos de igualdade. Tal processo se traduzia em construção, preservação expansão da liberdade. Menos de dois mil anos depois da fuga da plebe para o Aventino, e não muito longe dali, um “notável fiorentino”, logo no início dos seus magníficos Discorsi, observaria que a excelência da estrutura política romana – sua perfezione – tinha uma razão bem precisa:

E cosi nacque la creazione de’ Tribuni della plebe, dopo la quale creazione venne più stabilito lo stato di quella republica, avendovi tutte le tre qualità di governo la parte sua. E tanto li fu favorevole la fortuna, che benché si passasse dal governo de’ Re e delle Ottimati al Popolo per quelli medesimi gradi e per quelle medesime cagioni che di sopra si sono discorsi, nondimeno noPage 7si tolse mai, per dare autorità agli Ottimati, tutta l’autorità alle qualità regie, né si diminuí l’autorità in tutto agli Ottimati per darla al Popolo; ma rimanendo mista, fece uma republica perfetta; alla quale perfezione venne per la disunione della Plebe e del Senato [...]1

Sabemos todos que era, portanto, na dinâmica da desunião e do dissenso entre plebeus e patrícios que Machiavelli identificava o verdadeiro sustentáculo da república e, através dela, da liberdade. Ao enfatizar o caráter incruento e pouco violento da maior parte das conflagrações havidas no período que vai dos Tarquinii aos Gracchi, nosso autor repelia as críticas dos que não conseguiam ver nessas conflagrações a origem das boas instituições que favoreceram a liberdade entre os romanos:

Né si può chiamare in alcun modo com ragione uma republica inordinata, dove sieno tanti esempli di virtù, perché li buoni esempli nascano dalla buona educazione, la buona educazione delle buone leggi, e le buone leggi da quelli tumulti che molti inconsideratamente dannano; perché chi esaminerà bene il fine d’essi, no troverà ch’egli abbiano partorito alcuno esilio o violenza in difavore del commune bene, ma leggi e ordini in beneficio della publica libertà. [...]

E se i tumulti furono cagione della creazione de’ Tribuni meritano somma laude; perché oltre al dare la parte sua all’amministrazione popolare, furono constituiti per guardia della libertà romana [...]2

Em suma, foi no confronto entre essas classes ou coletividades que Machiavelli identificou ao mesmo tempo a necessidade e a condição de possibilidade da criação de instituições que servissem à liberdade, pois a história de Roma teria demonstrado que os patrícios tendiam à destruição daquela e os plebeus, à conservação dela. Assim, ao se perguntar a que mãos deveriam ser confiadas a guarda e a garantia da liberdade, se nas dos grandes ou nas dos pequenos, na célebre passagem em que compara as sagas de Esparta e Roma, Machiavelli conclui:

E venendo alle ragioni dico, pigliando prima la parte de’ Romani, come e’ si debbe mettere in guardia coloro d’una cosa che hanno meno appetito diPage 8usurparla. E sanza dubbio, se si considerrà il fine de’ nobili e degli ignobili, si vedrà in quelli desiderio grande di dominari ed in questi solo desiderio di non esseri dominati, e per conseguente maggiore volontà di vivere liberi potendo meno sperare di usurparla [la libertà] che non possono i grandi; talchè essendo i popolari preposti a guardia d’una libertà, è ragionevole ne abbiano più cura, e non la potendo occupare loro, non permettono che altri la occupi.3

O desejo dos grandes é oprimir, o dos pequenos, não serem oprimidos. Somente estes últimos podem ser bons guardiões da liberdade de todos, já que seu maior desejo é viverem livremente, liberar-se. Com a leitura maquiaveliana da saga da plebe romana, inicia-se uma linha alternativa de pensamento político que se caracteriza por vincular necessariamente a atividade política à luta de classes e radicar na insurgência dos despossuídos a base de toda política democrática. Esta linha passa por Spinoza e Marx e se prolonga, na era contemporânea, com Lênin e os marxianos “além-Marx”4.

De outra parte ainda que no mesmo campo, ao atribuir à política uma racionalidade própria caracterizada por um mésentente fundamental, Jacques Rancière se aproxima dessa perspectiva, fazendo sua concepção agonística da política remontar igualmente à antiguidade clássica:

Antes de mais nada é preciso enfatizar: foram os antigos, muito mais do que os modernos, que reconheceram no princípio da política a luta dos pobres contra os ricos. Mas reconheceram exatamente – com o risco de querer apagá-la – sua realidade propriamente política. A luta dos ricos contra os pobres não é a realidade social com que a política deveria contar. Ela se confunde com sua instituição. Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma fração ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política – ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos – que faz os pobres existirem enquanto entidade. A pretensão exorbitante do demos a ser o todo da comunidade não faz mais que realizar à sua maneira – a de um partido – a condição da política. A política existe quando a ordemPage 9natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela.5

Ora, prossegue Rancière, foi justamente isto que fez a plebe romana no episódio do Aventino, ao reconhecer-se excedente à normalidade normada6 pelos patrícios, ao afirmar-se em sua singularidade e instituirse, mediante tratado, como Tribunado, a primeira forma do Principe democrático. Não bastaram os dotes retóricos de Menenio Agripa para convencer a plebe a entender-se em seu suposto caráter de membro condenado ao serviço de um estômago patrício. O entendimento deu-se a partir da institucionalização da participação da plebe nos processos decisórios. Neste sentido, o acontecimento cujos 2.500 anos estamos hoje a rememorar é o acontecimento político por excelência, o ato político seminal da história do Ocidente.

Acontecimento político que produziu efeitos político-jurídicos, tal acontecimento foi, substancialmente, acontecimento constituinte 7. E como tal ecoou nitidamente em outros grandiosos momentos constituintes que se seguiram pelos séculos afora. Assim em 1776, na determinação do “bom povo das colônias” inglesas na América do Norte no sentido de reunir-se em Congresso e “assumir, entre os povos da terra, a posição igual e separada a que lhe dão direito a natureza e o Deus da natureza”8. Assim na Paris de agosto de 1789, quando o Terceiro Estado – conforme diagnóstico e proposta de Sieyès já propagados em fevereiro através do panfleto célebre –, parcela subalterna e submissa do Reino que se recusava a permanecer nessa dupla condição por supor-se, e acertadamente, ser e conter em si toda a Nação francesa em sua integralidade, decide se reunir em separado como Assembléia Nacional; do mesmo modo em 1793 em nova contradição, no auge da radicalização revolucionária impulsionada pelo Povo de Paris contra a Nação burguesa e a velha França rural9; e ainda na Paris de 1871, com a Comuna proletária democrática e seusPage 10membros permanentemente sujeitos à destituição10. Não foi diferente na velha-nova Rússia de 1917, com os sovietes de operários, soldados e camponeses11.

As subjetividades em produção nesses momentos cruciais de constituição da política e do direito souberam dotar-se de estruturas que expressassem seu caráter extraordinário. Deram-se formas políticas de expressão12 de sua potência produtiva, para usar os...

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