Plutarco e Arquétipos Simpatizantes no Modelo Ático

AutorArnaldo Moraes Godoy
CargoProcurador da Fazenda Nacional de Categoria Especial. Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-São Paulo. Diplomado em Direito Internacional pela Academia de Haia, Holanda.
Páginas82-93

Page 82

Certa obsessão histórica marca abordagens jurídicas e historiográficas para com o legado grego, principalmente em âmbito de direito público, notadamente em questões referentes à democracia e às liberdades civis. Textos de tesoura e cola1 informam manuais de direito, indicando o espaço democrático como natural resultado da evolução da experiência grega. Cuida-se de transformação da narrativa história em obra de ficção2 , com fins determinados. É que o conhecimento é conhecimento para algum fim. A validade do conhecimento depende da validade do propósito.3 O pretérito radica no hoje. Cada presente tem o seu passado, cada presente reescreve a história.4 Relatos e referências são formações discursivas5 , dada até a infinita diversidade de testemunhos históricos6 , apropriados por todas as tendências, que variam do conservadorismo liberal-burguês a projeto prospectivo que busca a constituição de novo tipo de homem, com sabor frankfurtiano.7 Narrativas centram-se em nichos imaginários, a exemplo do uso de Plutarco na concepção de arquétipos humanos simpatizantes no mundo clássico. É disso que trata o presente artigo.

Plutarco (século II, d.C) nasceu em Queronéia, Beócia, região de camponeses pouco ilustrados, justificando o adjetivo "beócio", aplicado aos mais rústicos e menos cultos. Teria visitado Alexandria, Roma, partes da Grécia e da Itália. Criador do gênero biográfico, comparou varões gregos e romanos, em "Vidas Paralelas", obra emblemática na tradição ocidental. Biografou os grandes da antigüidade, entre outros, Teseu, Rômulo, Licurgo, Sólon, Péricles, Alcibíades, Catão, Pirro, Mário, Lisandro, Sila, Demóstenes, Cícero, Antônio, Pompeu, Alexandre, César, Tibério e Caio Graco. Encanta, delicia, envolve, cativa o leitor. Dá ênfase ao exemplo moral, à virtude, ao bom comportamento. Não abre mão de uma pilhéria, de uma anedota; é um escritor memorável.

Deixou também opúsculos de cunho moralizante, as "Moralia", que teriam influenciado Michel de Montaigne, na composição de seus "Ensaios".8 Embora Plutarco pouco dominasse o latim, os excertos das "Moralia" são conhecidos pelos títulos latinos. Tratam de temas variados como "Conselhos aos casais" (Conjugalia praecepta), "Como distinguir entre um adulador e um amigo" (Quomodo adulator ab amico internoscatur), "Sobre a bisbilhotice" (De curiositate), "Sobre a tagarelice" (De garrulitate), "Como refrear a ira" (De cohibenda ira), "Sobre a superstição" (De superstitione).

Page 83

Desenhou helenos virtuosos, campeões, paladinos. Comparou gregos e romanos, acentuando a grandiosidade de ambos, mas não escondendo favoritismo para com áticos. Na opinião de Augusto Mancini,

"Como não é um filósofo, Plutarco também não é e não pretende ser um historiador. A biografia, que ele cultiva, em regra não tem fundo histórico do autor; é nela acentuada a finalidade ética, com uma certa influência do estudo peripatético dos caracteres, o que por vezes reduz grandes figuras a um denominador comum". 9

Certo histrionismo marca o gênero biográfico de Plutarco. Valeu-se de riquíssimas fontes, hoje perdidas, como testemunha C.M. Bowra, estudioso da cultura grega:

(...) Plutarco aproveita muitas fontes hoje perdidas e recolhe material valiosíssimo. Além disso, suas páginas possuem verdadeiro encanto literário. Sua afeição a anedotas e moralidades não extrapola aos limites do bom conto. O traço de seus personagens é expressivo, representando os homens em ação, ou na derrota. 10

Potencializou o heroísmo grego. Pretende retorno a uma Grécia então em decadência. Com a ação dos homens que biografou, pugnou pela volta a Hélade que já não mais existia. Na opinião de Donaldo Schüler, professor na Universidade do Rio Grande do Sul:

As vidas de Plutarco apresentam-se, antes de tudo, como exemplos de conduta moral. Pairam dessa forma acima da história, o que não contradiz suas preferências pela filosofia de Platão. Seus exemplos de conduta circulam como reflexo do mundo ideal. O saudosismo o leva a colocar, ao lado da vida dos romanos, vidas da Grécia subjugada, como se quisesse dizer que a fatalidade e não a falta de valor favoreceu os romanos. 11

Plutarco viveu na época de domínio romano, mas é grego até a medula. Rex Warner, professor da Universidade de Connecticut, acentuou tal aspecto, em introdução que preparou para uma edição das obras de Plutarco:

Seus modelos são enfaticamente gregos. (...). Seus termos de referência são as musas, filosofia, filantropia, além do específico significado grego para palavras como dignidade, autocontrole e virtude. 12

As biografias de Plutarco evidenciam opção pelo heroísmo, traduzindo o elitismo de suas origens. Plutarco viveu sem problemasPage 84 financeiros (ao contrário de autores posteriores como Camões, Cervantes, Defoe, Dickens) segundo informa Jean Sirinelli, em introdução à edição francesa das "Vidas Paralelas" de Plutarco:

Ele pertence a uma família de ricos proprietários. A rede de suas relações próximas e distantes, das quais nós temos uma idéia bem clara, são suficientes para demonstrá-lo. Seu modo de vida, sem ser luxuoso, pois que ele mesmo combate o luxo, respira o desafogo. 13

Inscreve-se entre os maiores narradores da literatura antiga. Visão panótica, tinha interesses variados. Seus escritos revelam perspectivas enciclopédicas. Nesse passo, a observação de Luiz Carlos Lisboa, para quem:

Muitas informações que nos chegaram da Antigüidade são devidas à pena de Plutarco, sem a qual estariam perdidas. Os interesses do escritor grego eram os mais variados, indo de superstições antigas a oráculos e cultos esquecidos, passando a problemas do cotidiano como convivência conjugal e questões gramaticais. Mas suas biografias são o que de mais notável produziu, sobretudo graças ao seu talento de narrador, possivelmente o maior da literatura grega. 14

Plutarco era platônico. Não dissimulava seu flerte com a academia. Convicto da existência de valores universalmente válidos, comungava da concepção platônica do mundo das idéias. É o sentir de Franco Montanari, em coletânea de autores italianos sobre a literatura grega:

Plutarco era animado de um fundo de platonismo, que poderia bem receber também outros influxos, mas que o levava a polemizar principalmente contra as concessões teológicas do estoicismo e do epicurismo. 15

As biografias de Plutarco foram muito lidas. Em 1579 publicou-se a tradução inglesa de Sir Thomas North, que fora feita da versão francesa de Amyot.16 Essa trasladação foi apreciada na Inglaterra elizabeteana (sobremodo por Shakespeare) e também nos Estados Unidos, onde Plutarco era, ao lado da Bíblia, obra obrigatória nos lares da colônia17 . Assim, primeiramente destacam-se passagens nas biografias de Plutarco, de modo a evidenciar-se o modo apologético como o escritor de Queronéia tratara a antigüidade grega, contribuindo para a formação de arquétipos simpatizantes. Demonstrar-se-á também que Plutarco era admirador de Esparta, e que sua biografia de Licurgo deu início a tradição ocidental dePage 85 admiração para com o legado espartano. O objetivo é apontar-se Plutarco como um dos principais responsáveis pela concepção ocidental que hiperestima o legado grego.

É esclarecedora a maneira como Plutarco começa a biografar Timoleão:

Se empreendi a composição dessas biografias foi, de início, para proveito dos outros; mas agora é para mim mesmo que persevero nesse agradável desígnio. A história dos varões ilustres é como um espelho que observo para, de algum modo, tentar regular minha vida conformemente à imagem de suas virtudes. Ocupando-me deles, parece-me estar vivendo com eles. Graças à história, pode-se dizer que os vou recebendo um a um debaixo de meu teto e aí os conservo: 'Como foi grande e belo!' (Homero, Ilíada, XXIV, 630), exclamo ao considerar cada qual e ao escolher, entre suas ações mais destacadas, as mais dignas de serem conhecidas. 18

Manifesta a intenção moralizante. Incontestável a apropriação do passado na construção de tábua de valores coerente com suas idiossincrasias. Patente o propósito didático. A tradição ocidental vai assumir como verdadeiros os topoi topoi inventariados por Plutarco. Seus biografados ganharão o culto dos posteros; serão os paradigmas dos comportamentos a serem perseguidos.

A influência de Plutarco na tradição ocidental é relevante. Confira-se a seguinte passagem de Otto Maria Carpeaux:

(...) Plutarco cria a biografia, agora já é só o indivíduo que importa. Plutarco é (...) um grande artista da narração. Sabe caracterizar à maravilha, de modo que, de todas as figuras da Antigüidade, só as que ele biografou se transformaram em personagens tão reais como Dom Quixote, Hamlet ou Napoleão. Foi ele quem criou para nós os Coriolanos, Mários, Silas, Catões, Brutos e Marco Antônios. Plutarco sabe narrar como um romancista; sabe interessar e até entusiasmar. Montaigne, Rousseau, Alfieri e Schiller embriagaram-se em Plutarco, e ainda Whittier não encontrou elogios maior para Abraham Lincoln do que compará-lo aos heróis de Plutarco. 19

Carpeaux, escritor nascido em Viena e naturalizado brasileiro, uma das conquistas do Brasil no movimento migratório que marcou a diáspora da segunda guerra mundial, crítico literário...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT