Podera o pluralismo juridico ser emancipatorio? A complexidade do teste de Litmus e da emancipacao social em processos de reforma urbana democratica/Can legal pluralism be emancipatory? The complexity of the Litmus test and the social emancipation in democratic processes of urban reform.

AutorMaldonado, Fernando Goya

Introducao

O trabalho busca prover dialogo entre a perspectiva de sociologia juridica critica apresentada por Boaventura de Sousa Santos no texto "Podera ser o direito emancipatorio?" com a sua teoria democratica. Assim, o texto tera como objetivo geral debater formas de reforma urbana, especialmente as voltada a construcao de sistemas participativos e de democracias de alta intensidade (Sousa e Avritzer 2002), com a busca pela construcao de uma "legalidade cosmopolita" (Santos 2003), sem deixar de expor as complexidades desses processos quando aplicados ao plano fatico.

O texto buscara inicialmente prover uma revisao critica a teoria demoliberal. Para esse objetivo, exaltara a invisibilizacao promovida a inerente tensao entre a perspectiva redistributiva do sistema democratico e a necessidade da priorizacao da producao e reproducao do acumulo de bens e mercadorias imposta pelo sistema capitalista. Como suporte as doutrinas da luta por lideranca (Schumpeter 1942), da democracia procedimental (Kelsen 1955), da importancia da tecnocracia (Bobbio 1997) e do fim da historia (Fukuyama 1992), buscar-se-a expor alguns dos preceitos que deram suporte a inexistencia do conflito entre democracia e capitalismo.

Em sequencia na primeira seccao, aprofundar-se-a o debate demonstrado como o modelo liberal tornou-se um projeto hegemonico ao longo do ultimo seculo por meio do suporte politico do consenso de Washington (Maricato 2009), de agencias internacionais (McGrew 1997) e dos ajustes estruturais (E. S. Macamo 2006; 2006). O argumento apresentado sera que esse projeto hegemonico reduziu a democracia a baixa intensidade, com o intuito de evitar possiveis sobrecargas democraticas por meio da inclusao politica de grupos sociais anteriormente excluidos sob duas perspectivas: priorizando o acumulo de capital frente a redistribuicao social e limitando a participacao cidada--individual e coletiva (Sousa e Avritzer 2002).

Na segunda seccao far-se-a argumento sobre a essencialidade da construcao de uma "democracia de alta intensidade" (Sousa e Avritzer 2002) atraves de uma reforma democratica do Estado. Essa reforma democratica do Estado sera ponderada atraves da perspectiva de uma reforma urbana democratica, na qual se priorize uma logica distributiva frente ao acumulo de capital, permeada por processos participativos e de gestao compartilhada.

Por fim, a reflexao teorica sera aplicada uma experiencia de escala local, que se passa na Cidade de Canoas, Brasil, na qual politicas de reforma urbana foram conduzidas por um sistema complexo de participacao. No entanto, em virtude do conceito hegemonico de propriedade aplicado, mesmo que essa reforma urbana fora provida atraves de uma legalidade nao-hegemonica, nao fora necessariamente sob uma perspectiva de contra-hegemonia.

Nesse sentido, buscar-se-a expor a complexidade de aplicar o teste de Litmus a formas de pluralismos juridicos, em casos concretos e de democracia de alta intensidade, em razao da "interacao dinamica e complexa" entre a "legalidade demoliberal" e a "legalidade cosmopolita" (Santos 2003). O teste de Litmus, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos:

(...) consiste em avaliar se o pluralismo juridico contribui para a reducao da desigualdade nas relacoes de poder, assim reduzindo a exclusao social ou elevando a qualidade da inclusao, ou se, pelo contrario, torna ainda mais rigidas as trocas desiguais e reproduz a exclusao. A verificar-se a primeira hipotese, estaremos perante a pluralidade juridica cosmopolita (Santos 2003). 2. A reducao do canone democratico: A democracia liberal de baixa intensidade

Componente fundamental para a transicao do Estado Absolutista para os paradigmas da modernidade ocidental, o liberalismo politico e economico teve sua hegemonia enquanto modelo socioeconomico consolidado no transcorrer do seculo XX. No entanto, como demonstra Boaventura de Sousa Santos, os paradigmas da modernidade ocidental, constituida entre os seculos XVI e final do seculo XVIII, nao pressupoem a necessidade da logica do capital como sua unica forma de producao, visto que socialismo marxista e parte constituinte da modernidade, tanto quanto o sistema capitalista (Santos 2009, 29-33).

Todavia, e inegavel a ascensao do modelo liberal como projeto hegemonico ao longo do ultimo seculo. De acordo com Sader, o fracasso de tres grandes modelos antiliberais--o "socialismo sovietico", o fascismo e o Keynesianismo--de intensidades e estruturas distintas, abriram espaco para a consolidacao do liberalismo politico e economico sob determinantes do Estado minimo, relacoes centralmente mercantilizadas, constituintes do denominado neoliberalismo (Sader 2002, 651).

Assim, teses do fim da historia (Fukuyama 1992), com suporte no consenso de Washington e suas agencias economicas - Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (Maricato 2009, 195-8), bem como as influencias dos ajustes estruturais (E. S. Macamo 2006; 2006), proveram o suporte teorico-pratico a hegemonia da democracia sob um vies liberal. Essa hegemonia, todavia, nao foi provida sem mecanismos coercitivos (Maricato 2009) e ambiguidade entre a promessa de desenvolvimento, com a producao e reproducao da pobreza (E. S. Macamo 2006; 2006). Veja-se o que aponta McGrew:

Much more significant, however, has been the role of regional and global institutions in the consolidation of liberal democratic forms of governance. In Latin America, Eastern Europe, Asia and Africa, national transition to democracy have been influenced by powerful external agencies (McGrew 1997, 239). Como e possivel verificar, inumeros atores, de distintas escalas que incluem inclusive organismos e agencias supranacionais atuaram para o fortalecimento e a estabilizacao das democracias liberais nos paises em transicao democratica. Essa nao foi, todavia, uma tarefa sem grandes desafios, visto que existem inerentes tensoes entre o liberalismo politico e economico, majoritariamente representando atraves do sistema capitalista, e o regime democratico (Sousa e Avritzer 2002, 59). Assim, sob a finalidade de legitimar a expectativa liberal enquanto sistema hegemonico tornou-se fundamental para o crescimento e expansao desse modelo de democracia com liberalismo. Esse desafio consiste porque muito da tensao entre democracia e capitalismo centra-se no potencial redistributivo e de gestao compartilhada do poder, aos quais podem ser profundamente prejudiciais para o modo de producao capitalista, na medida em que capitalismo necessita, nao somente da mais valia da mao de obra, mas tambem da classificacao, hierarquizacao e mercantilizacao de territorios e natureza (meio ambiente e humana) para a manutencao e expansao do acumulo de capital.

Nesse sentido, o receio de imprimir aos regimes em transicao um sobrepeso democratico, com a inclusao politica de grupos sociais anteriormente excluidos, duas perspectivas foram promovidas; por primeiro, garantir a priorizacao do acumulo de capital frente a redistribuicao social; por segundo, limitar a participacao cidada--individual e coletiva--"com o objetivo de nao sobrecarregar demais o regime democratico com demandas sociais que pudessem colocar em perigo a prioridade da acumulacao sobre a redistribuicao" (Sousa e Avritzer 2002, 59-60).

Desta forma, apos a Segunda Guerra Mundial e com o inicio de uma segunda onda de democratizacao, a qual envolvia fortemente os paises do Leste Europeu e America Latina, tornou-se fundamental padronizar os modelos de democracia nesses paises, a fim de evitar qualquer possivel "sobrecarga democratica" (Sousa e Avritzer 2002:59-60). Com esse intuito, padronizar os modelos democraticos busca imprimir nos sistemas de democracia uma padronizacao procedimental ou procedimentalista, cujo objetivo central do processo democratico consistiria na eleicao de um corpo representativo.

Assim sendo, a participacao popular reduzir-se-ia somente ao processo de eleicao representativa; formada, portanto, pela elites politicas que proveriam os suportes teoricos e praticos fundamentais para a manutencao de regime politico demoliberal, com suporte ao desenvolvimento economico fundado no acumulo de capital. Observa-se como Schumpeter expressa bem a democracia enquanto procedimento, isento de um valor axiologico, ou seja, de um fim em si mesma:

A democracia e um metodo politico, isso e, um, certo tipo de arranjo institucional para alcancar decisoes politicas--legislativas e administrativas--e, portanto, ela e incapaz de converter-se em um fim em si mesma, sem ralacao com as decisoes que produzira em determinadas condicoes historicas" (Schumpeter 1942, 242). Como e perceptivel na citacao acima, essa concepcao de democracia, que pode ser denominada democracia procedimental, acaba por esvaziar de substancialidade o regime democratico, uma vez que nao importariam os resultados das decisoes politicas advindas desse "metodo". A democracia deveria consistir, portanto, em um "arranjo institucional" sem qualquer carga axiologica, e, portanto, nunca "um fim em si mesma". Assim, torna-se irrelevante para perspectiva da democracia liberal o nivel de participacao cidada ou de representatividade das demandas sociais, na medida em que a "funcao primaria do eleitorado [e] formar o governo, "diretamente ou atraves de um corpo intermediario" (Schumpeter 1942, 270-83).

Colocar o processo de selecao dos representantes politicos como proposito primeiro, quica unico, da democracia torna-se uma conveniente posicao na busca de distensionar democracia e capitalismo, visto que, nessa perspectiva, os interesses economicos podem encontrar o respaldo, tanto discursivo, quanto coercitivo do sistema democratico. Esse respaldo fortalece a manutencao e expansao do processo de acumulativo, na medida em que o controle do sistema representativo pelas elites sociais e politicas torna a democracia isenta da responsabilidade ou de ingerencia da populacao.

Assim sendo, a teoria Shumpteriana da luta por lideranca politica e competicao pelo...

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