A política comercial comum à prova no pós-lisboa - a competência para a celebração de acordos internacionais de comércio da união europeia

AutorMaria João Palma
CargoDoutoranda na FDL - Direito Europeu do Investimento Estrangeiro (a partir de 2016). Mestre em Direito pela FDL (1998). Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa (1992)
Páginas249-265

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Ver Nota12

1 A política comercial comum da UE - de Roma a Lisboa

O Tratado de Lisboa3é o culminar de um moroso e complexo caminho em torno da configuração das competências da UE, em especial, no que se refere à Política Comercial Comum (PCC). O seguidismo das matérias cobertas pelos Acordos GATT (47) e OMC (94) é evidente:4pretende-se que a UE funcione como a voz única no plano do comércio mundial de forma a acomodar os ditames da globalização. Nessa medida, a regulação deixa de respeitar apenas ao comércio limitado às mercadorias (Tratado de Roma, 1957), para incluir outros aspetos como sejam, o comércio dos serviços, os aspetos comerciais da propriedade intelectual (Tratado de Amesterdão, 1997 e Tratado de Nice, 2003), fazendo notar um paralelismo entre a regulação do comércio no plano mundial e o protagonismo que a UE assume através da PCC. Com o Tratado de Lisboa, a UE dá um passo adiante relativamente à OMC ao incluir na esfera da regulação do comércio externo o investimento direto estrangeiro.5

2 A competência da UE para a celebração de acordos internacionais de comércio – tensões no pós-Lisboa

A abrangência dos temas incluídos nos acordos internacionais de comércio da Nova Era (inter alia, CETA, TTIP, UE/Singapura)6estaria na origem, porém, de controvérsia relativamente à competência para a celebração desses acordos – se a

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UE per se, ou se a UE conjuntamente com os vários Estados-Membros – a vaexata questio da mixity7.8

Recorde-se que o Acordo CETA9seria o pioneiro num feixe de Acordos do pós-Lisboa. As negociações seriam iniciadas em maio de 2009, e concluídas em

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setembro de 2014, tendo o acordo sido, entretanto, assinado pela UE e pelo Canadá, a 30 de outubro de 2016. O percurso até aqui seria, porém, turbulento.

Em paralelo às negociações do Acordo CETA decorriam as negociações relativas a outros acordos (supra), nomeadamente, o Acordo UE/Singapura.

A Comissão, em 10 de julho de 2015, submeteu o Acordo UE/Singapura ao TJUE para obtenção de um Parecer sobre a competência exclusiva ou mista para a celebração do acordo (Parecer 2/2015),10ao abrigo do artigo 218º, n.º 11 do TFUE, defendendo a competência exclusiva da UE para a celebração do mesmo.11

Entretanto, a julho de 2016, a Comissão declarou que o Acordo CETA seria um acordo misto, pese embora, sublinhamos, se tratasse de um acordo idêntico ao UE/Singapura pela abrangência das matérias12e a tese perfilhada por aquela em defesa da competência exclusiva da UE no Parecer 2/2015 relativamente à totalidade das matérias cobertas pelo acordo UE/Singapura. A Comissão enveredaria, destarte, por uma hábil estratégia de recuo, no CETA, propugnando a entrada em vigor provisória do acordo apenas relativamente às matérias da competência exclusiva da UE.13Nesta medida, a entrada em vigor definitiva do Acordo CETA irá depender da ratificação de todos os parlamentos nacionais e regionais dos vários Estados-Membros (cerca de 38), sendo que, sublinhe-se, cada um destes parlamentos disporá de “poder de veto” para chumbar o acordo na íntegra, invocando, para o efeito, razões de competência nacional.14

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Entretanto, em outubro de 2016, sucede-se um conjunto de situações que aumentaram a pressão em torno da celebração do Acordo CETA: a 5 de outubro, o Conselho aprova uma Decisão no sentido da entrada em vigor provisória do Acordo CETA.15Porém, a 13 de outubro, o Tribunal Constitucional Federal Alemão pronuncia-se, num processo com carácter de urgência, em sentido favorável à entrada em vigor do acordo CETA a título provisório mas sujeita a certas condições.16Como mais significativas dessas condições, salientamos a entrada em vigor limitada às competências exclusivas da UE17e à possibilidade de a Alemanha poder denunciar unilateralmente o Acordo CETA no caso de a decisão final do TC vir a ser desfavorável à entrada em vigor definitiva do acordo, uma vez que este irá pronunciar-se, posteriormente, no que se refere, nomeadamente, ao Tribunal de Investimento.18

As tensões em torno do Acordo CETA atingem um pico a 18 de outubro de 2016, quando o Parlamento Regional da Valónia (Bélgica), recusou dar o seu consentimento ao Governo belga para a ratificação do Acordo. A assinatura seria adiada, por duas semanas, vindo a ocorrer a 28 de outubro de 2016, após a Comissão ter negociado diretamente com aquela pequena região.19Daqui resultou, entre outros pontos, o compromisso de que o CETA será acompanhado de um instrumento de cariz obrigatório no sentido de que não incluirá qualquer mecanismo privado de arbitragem.20

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A saga continua quando, a 21 de dezembro de 2016, a Advogada Geral Sharpston apresenta as Observações no âmbito do Parecer 2/2015 (supra), no sentido da competência mista do Acordo UE/Singapura, por razões que são, assim o entendemos, mutatis mutandis, aplicáveis ao Acordo CETA. Assim, no caso de o TJUE vir a partilhar o entendimento da Advogada Geral e se pronunciar pela competência mista do acordo UE/Singapura, tal decisão constituirá um “padrão” aplicável ao feixe de Acordos em negociação, com todo o peso institucional que isso acarreta, nomeadamente, a necessidade de aval dos cerca de 38 parlamentos nacionais e regionais dos vários Estados-Membros, para a entrada em vigor definitiva desse conjunto de acordos.21

A 15 de fevereiro de 2017, o Acordo CETA mereceu parecer favorável do plenário do Parlamento Europeu, possibilitando, assim, a entrada em vigor provisória na parte referente à competência exclusiva da EU. O Acordo aplicar-se-á provisoriamente a partir do primeiro dia do segundo mês após a data em que ambos os lados tenham notificado a outra parte de que completaram todos os passos internos necessários,22o que os membros do Parlamento Europeu calculam que ocorra a partir de 1 de abril de 2017.

3 Polémica em torno da entrada provisória em vigor dos acordos comerciais – considerações de iure condendo

O Tratado regula a entrada em vigor provisória dos acordos internacionais no artigo 218º, nº 5 do TFUE, determinando: “O Conselho, sob proposta do negociador, adota uma decisão que autoriza a assinatura do acordo e, se for caso disso, a sua aplicação provisória antes da respetiva entrada em vigor”.23A este respeito, importa referir, em primeiro lugar que, a obtenção do parecer favorável por parte do PE para a entrada em vigor provisória dos acordos comerciais não resulta do Tratado mas da prática institucional, precedente iniciado com o Acordo UE/Coreia do Sul (supra), prática que consideramos merecedora de acolhimento constituinte numa futura revisão dos Tratados. Em termos práticos, as disposições que são consideradas “aptas” a entrar em vigor são plenamente eficazes e, nessa medida, a concordância do PE é absolutamente essencial.

Por outro lado, importa sublinhar que o Tratado é omisso quanto à entrada em vigor provisória “parcial” do acordo, o que permite duas interpretações possíveis: ou adotar a máxima a maiore ad minus (quem pode o mais pode o menos), de onde retiramos a possibilidade de entrada provisória apenas de uma parte do

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acordo;24ou a interpretação segundo a qual a fragmentação dos acordos quanto à sua vigência não terá sido desejada pelos redatores dos Tratados que terão entendido os acordos como um todo.25Ora, tendo em consideração a recente vaga de entradas em vigor provisórias de acordos de comércio da UE cujo critério para eleição das “partes ou disposições” do acordo à vigência prévia tem sido a fronteira competencial (competências exclusivas da UE versus mistas)26e, tendo em consideração as controvérsias que tal fronteira coloca,27seria conveniente, de iure condendo, introduzir no Tratado critérios que permitissem, por um lado, disciplinar tal escolha, onde, entre outras, notamos a dificuldade de identificação das competências nacionais por omissão de listagem no corpo do Tratado,28e, por outro lado, a inclusão de previsão que regule as consequências da não ratificação por um ou mais Estados-Membros: ou o “chumbo” integral do acordo, ou em alternativa, a convolação da provisoriedade em vigência definitiva da parte referente às competências exclusivas da UE. A convolação deverá ser sujeita a parecer favorável do Parlamento Europeu, a quem incumbirá, também neste momento, a verificação do artigo 21º do TUE.

A este respeito, cumpre referir que, desde o Tratado de Lisboa que a PCC passou a estar sob a égide das disposições gerais relativas à “Ação Externa da União”29onde se inclui o artigo 21º do TUE que estabelece que a União deve “promover em todo o mundo: a democracia, o Estado de Direito … a dignidade humana …” (nº 1), mas também, “assegurar um elevado grau de cooperação em todos os domínios das relações internacionais” (nº 2), a fim de, inter alia,(d) apoiar o desenvolvimento sustentável, nos planos económico, social e ambiental dos países em desenvolvimento, tendo por objetivo erradicar a pobreza; (e) incentivar a integração de todos os países na economia mundial, inclusivamente através da eliminação progressiva dos obstáculos ao comércio internacional; (f) contribuir para o desenvolvimento de medidas internacionais para preservar e melhorar a qualidade do ambiente e a gestão sustentável dos recursos naturais à escala mundial, a fim de assegurar um desenvolvimento sustentável”.30

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A verificação do cumprimento destes requisitos deve imperar ao longo de todo o processo...

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