Política económica, legislação societária e aplicação do direito da concorrência no Brasil

AutorOtavio Yazbek
Páginas136-149

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I - Introdução

O presente trabalho tem por objeto a análise das relações entre direito societário e direito concorrencial. Seu pano de fundo é a problemática mais larga da política económica. A discussão central deste estudo diz respeito à compreensão das condições materiais de aplicação da legislação antitruste no Brasil, sendo tomada tal legislação como integrante do conjunto de políticas públicas implementadas pelo Estado moderno no exercício das suas funções.

Para tal, deve-se partir de alguns dados fundamentais, brevemente referidos a seguir. Vale iniciar por algumas considerações acerca das razões da política antitruste norte-americana (posto que esta é uma das principais referências, para o tratamento da matéria no Brasil, ainda que não a única). Estas considerações serão seguidas por algumas notas para a definição, também em caráter preliminar, do conceito de "política económica" adotado neste trabalho.

II- Considerações preliminares sobre o antitruste nos Estados Unidos

Em uma breve generalização, pode-se afirmar que o desenvolvimento do sistema antitruste nos Estados Unidos, paradigma da maior parte das legislações que vieram a tratar da matéria, decorre do processo de formação do capitalismo naquele país. Não que as análises sobre o assunto não apresentem divergências, muito pelo contrário (Salgado, 1997, 12 e ss.). A despeito, porém, de tais divergências (abrindo mão, portanto, de maiores refinamentos teóricos) pode-se discorrer acerca de alguns lineamentos interessantes para uma análise comparativa entre o caso norte-americano e o caso brasileiro.

Usualmente, o ano de 1890, quando foi promulgado o Sherman Act, é tomado como marco inicial da política antitruste nos Estados Unidos. O assunto já gerava polémicas há mais de uma década, havendo tornado premente uma questão verdadeira-

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mente ontológica, quanto à manutenção do próprio liberalismo norte-americano, que privilegiava a concorrência como ideia associada à de livre iniciativa. Tal sistema vinha sendo ameaçado, àquela época, parecendo eminente a sucessão por um novo modelo económico, marcado pela acentuada concentração dos agentes económicos.1

O processo de concentração industrial nos Estados Unidos inicia-se como decorrência do aquecimento da economia norte-americana, na segunda metade da década de 1860, em razão das contingências próprias de uma economia em crescimento acelerado, com grande necessidade de inversão de capitais. Pode-se, então, verificar a ascensão deste novo modelo de capitalismo, a colocar-se no lugar do modelo liberal individualista que tradicionalmente norteava a prática económica naquele país.

Durante os anos seguintes, o processo de concentração industrial foi se acentuando, na medida em que se tornava cada vez mais difícil o ingresso de novas empresas nos mercados existentes. A concentração era estimulada, ainda, pela necessidade de defesa contra os riscos decorrentes das práticas de concorrência predatória que vinham sendo levadas a efeito por diversos setores.2 Quase que concomitantemente evo-luíam os mecanismos institucionais de concentração, que passaram de meros gentle-men agreements, em um primeiro momento, a formas mais complexas, como os trusts, capaz de outorgar maiores garantias nas relações internas.

A este processo começaram a reagir, ainda na década de 1860, diversos grupos, como os consumidores, agricultores e pequenos e médios empresários. Tal mobilização, fundada nos princípios do modelo do capitalismo tradicional norte-americano e na consideração do poder dos trustes como fonte de diversos males, a pouco e pouco foi ganhando peso político, em um processo que culminou com a promulgação do Sherman Act, cujo regime foi aprimorado no correr deste século com o Clayton Act, de 1914, ano da criação da Federal Trade Commis-sion, e com outros diplomas posteriores.

Ainda hoje, muitos dos conflitos de ordem teórica e política, referentes à necessidade de implementação de uma prática antitruste, permanecem vivos. Se naquela época, porém, tratava-se de implantar ou não mecanismos de controle, hoje as questões dizem respeito a formas de interpretação e parâmetros de aplicação da legislação concorrencial.

De qualquer maneira, pode-se afirmar, ainda que genericamente, que os diplomas norte-americanos de controle da concorrência integram-se à estrutura própria do capitalismo naquele país. Tais diplomas legais, cujas formas de aplicação foram bastante aprimoradas neste século, atendem a necessidades reais, estando imbricados no processo de formação económica e no ideário político norte-americanos.

III - A evolução da legislação concorrencial no Brasil e a Lei 4 137/62

No Brasil, o antitruste tem raízes muito diversas daquelas que teve nos Estados

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Unidos. Com efeito, a industrialização brasileira é um processo tardio e em boa parte induzido. A conformação das estruturas de mercado deriva, dentre outros fatores económicos e sociais, do fato de que a indústria no Brasil esteve, desde seu início, ligada aos capitais decorrentes das atividades de monocultura exportadora, desde então prevalecendo, portanto, altos índices de concentração económica (Salomão Filho, 1997, 44). Tal concentração ab initio, porém, não se afigurava necessariamente como um mal.

Surge o antitruste no Brasil, na verdade, tendo em vista não tanto o controle das atividades dos agentes detentores de poder económico, mas antes um marcado caráter nacionalista, posto que os grandes grupos internacionais eram considerados como a maior fonte de perigo para a nascente e ainda muito frágil indústria brasileira. Tal peculiaridade, coerente com as tendências nacionalistas presentes na vida política e económica brasileira desde os anos 1940, individualiza, de nascedouro, o regime das primeiras leis brasileiras dedicadas à matéria.3

As preocupações acima referidas consolidaram-se em um número bastante grande de diplomas legais esparsos. De uma forma ou de outra, porém, estas normas encontravam guarida, por interpretações mais ou menos extensivas, no art. 148 da Constituição Federal de 1946, bem claro ao estatuir que: "A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder económico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros".

Com base neste dispositivo foi elaborado o primeiro diploma voltado especificamente para a repressão ao abuso do poder económico: a Lei 4.137, de 1962. Fruto do Projeto de n. 122, de 1948, de autoria do então deputado Agamemnon Magalhães, que foi objeto de acalorados debates no Congresso Nacional, em razão não apenas dos interesses envolvidos, como também das concepções diversas de desenvolvimento e de sistema de mercado.4

Considerando as inovações nele trazidas, é natural que o texto de lei aprovado fosse criticado em diversos pontos. Em alguns momentos, tais críticas representavam uma mais ou menos justa preocupação quanto à incorporação de inovações trazidas pelo novo diploma ao sistema jurídico nacional (em especial quanto à estrutura e poderes do Conselho Administrativo de Defesa Económica - CADE). Havia também, na referida lei, falhas técnicas, das quais a mais alardeada dizia respeito justamente à falta de uma conceituação do que seria "abuso do poder económico". A despeito destas críticas, algumas inegavelmente procedentes, tratava-se de um diploma legal formalmente adequado, coerente com o desenvolvimento da matéria em outros países (Carvalho, 1986, 15).

Ocorre porém que, na prática, a Lei 4.137/62 e as estruturas por ela criadas nunca chegaram a ter plena eficácia. Os números são eloquentes: até 1975, o CADE julgara apenas 11 processos, havendo declarado em apenas um deles a existência de abuso do poder económico; até 1983, foram instaurados apenas 75 processos; por vezes o Conselho passou mais de dois anos sem, sequer, a mera instalação de reunião plenária (Forgione, 1998, 116; Carvalho, 1986, 21).

As razões para tal inoperância são de diversas ordens. Podem ser identificados alguns indícios, por exemplo, na pouca aceitação e nas ressalvas impostas à aplicação da Lei 4.137/62 pelo Poder Judiciário, ou nas seguidas reformas que alteraram as es-

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truturas administrativas e prerrogativas do CADE colocando-o sob a égide de órgãos diversos da administração pública federal ou mesmo restringindo suas competências.5

Como bem esclarece um antigo Pro-curador-Geral do CADE, a destacar os seguidos percalços para a implantação de uma política antitruste no Brasil, "na verdade, o Conselho Administrativo de Defesa Económica foi apenas tolerado como um mal cuja extirpação geraria críticas perfeitamente evitáveis. Os mais notórios corifeus do movimento de 31 de março sempre o acolheram com desconfiança, sobretudo à vista dos vastos poderes de que a sua missão legal exigia estivesse investido. Um órgão dessa envergadura, armado para atuar num sistema económico de feição autenticamente capitalista, teria de ser, necessariamente, a menina dos olhos de um governo veramente interessado na defesa da livre competição" (Carvalho, 1986,16 e ss.). E, após críticas ainda mais incisivas, encerra o referido autor, asseverando que "(...) a lei do CADE é prestável, não está obsoleta e o Conselho só não funcionou a plena carga porque os governos revolucionários não o...

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