Intervenção contemporânea do Estado brasileiro: positivação dos ideais neoliberais trabalhistas

AutorCésar Bessa; Andreana Dulcina Platt
Páginas235-255

César Bessa. Mestre em Direito Negocial pela UEL/PR. Professor do Departamento de Direito Público da UEL/PR. e-mail: bess@sercomtel.com.br

Andreana Dulcina Platt. Doutora em Educação pela UNICAMP/SP. Professora do Departamento de Educação da UEL/PR. Graduanda em Direito pela PUC/PR. Pós-Graduanda em Direito pela UEL/PR. e-mail: adplatt@uel.br

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Introdução

O presente estudo versa pela análise aos hodiernos mecanismos neoliberais à organização do Estado brasileiro que se dá por meio de um confronto às históricas conquistas expressas no Código trabalhista. Para tanto, resgataremos historicamente as bases da caminhada neoliberal e suas entranhas no corpo estatal, e, após, refletiremos de forma mais acurada sobre o programa que se encaminhou nos últimos quatro anos e que diz respeito precipuamente ao “desconto em folha nos salários dos trabalhadores”, a “jornada de trabalho aos domingos pelos comerciários” e o óbice que se cria aos “sindicatos e o acesso à justiça”.

1 A trajetória da saga neoliberal: revisitação ao modo de produção capitalista e sua implicação no espaço estatal

Ao discutir sobre os elementos que compõem a trajetória do movimento político-econômico neoliberal, entendemos como pertinente revisitar os elementos que determinaram as condições para seu “acolchoamento” nas diversas nações, assim como a compreensão daquilo que se chamou de “neoliberalismo periférico” quando tratarmos especificamente do caso brasileiro (TAVARES, 1997).

1. 1 A Reestruturação “Necessária”

Após inúmeras revoluções políticas originadas da consolidação do modelo na produção capitalista, desde a introdução do primeiro grande invento tecnológico que multiplicou as possibilidades da geração de produtos (máquina a vapor) e por produção de escala industrial, há de se falar também na consolidação de uma formação social do tipo capitalista (SINGER, 1998).

O formato não pacífico das conquistas civis pela nova classe que surgia – a dos operários das fábricas – implicava na “total destruição” de outras esferas de trabalhadores originais à produção agrícola e artesanal, debilitando seus conhecimentos ao vulgo de “desqualificados” ou “semiqualificados” quando estes possuíam direitos econômicos e políticos por atividades atribuídas a mestres e oficiais. Apenas o exemplo dessa ruptura na composição social entre os indivíduos e seus conhecimentos, na organização de sua existência e o novo modelo que aglutina uma nova lógica de produção (em resposta a esta mesma existência, do consumo e de conhecimentos que urgem em serem aprendidos, de modo que os trabalhadores incorporem habilidades para a manipulação dos maquinários), já é suficiente para que compreendamos a sua repercussão na ampla esfera social.

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Podemos falar, portanto, que um dos elementos que produz a crise do sistema capitalista está na esfera da recomposição dos direitos dos trabalhadores com vistas a melhores condições de trabalho e ganhos, frente ao acúmulo estupendo das empresas. Estes, para garantir minimamente sua dignidade frente a exploração de sua mão-de-obra pelas classes dominantes e do empresariado que se beneficia da mais valia expropriada, intensificam ao longo da história, as lutas para conquista e ampliação de seus direitos civis, como relatado acima por Singer (1998).

Segundo Singer (1998), o modelo de produção capitalista tem ao longo de sua história produzido seguidas crises, que urgem por reestruturações com o objetivo de realinhar a produção – e sua variedade, o consumo, o acúmulo de ganhos e a sua ampliação a mercados cada vez mais específicos e “distantes”. Podemos descrever que o Estado, em suas funções precípuas, foi o que pacificou esses momentos de crise com o uso de sua estrutura político-jurídica.

Enquanto marcos históricos da sociedade moderna têm-se registrado até então, o volume de três grandes crises mundiais do sistema capitalista: a) crise do modelo de produção clássico ou a Primeira Revolução Industrial, b) Crise do modelo taylorista/fordista de produção (anos 30), c) Introdução do modelo toyotista de produção (anos 70). Tais crises originaram o movimento daquilo que a literatura denomina de “reestruturação do modelo de produção”. Porquanto o capital ser reconhecidamente um “processo”1, ele visa a realimentação não só do próprio capital, mas de um modo de vida social, ou seja, ele interpenetra na condição de existência dos indivíduos, por meio dos produtos que distribui ao consumo, promovendo novos desejos e necessidades (HARVEY, 2000). A reestruturação produtiva é uma forma de revitalização ao processo capitalista que, segundo o autor citado, diz respeito a:

[..] regras internalizadas de operação (que) são concebidas de maneira a garantir que ele (capitalismo) seja um modo dinâmico e revolucionário de organização social que transforma incansável e incessantemente a sociedade em que está inserido. O processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa [..], explora a capacidade de trabalho e do desejo humanos, transforma espaços e acelera o ritmo da vida. Ele gera problemas de superacumulação para os quais há apenas um número limitado de soluções possíveis. (HARVEY, 2000, p. 307, grifos nosso).

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Para Huberman (1986) e Dias (1999), é preciso esclarecer que a reestruturação produtiva é reconhecidamente um remédio às crises de supra-acumulação e que serve em dada época histórica e em determinado espaço, de tal sorte que os aspectos infra-estruturais quanto supra-estruturais estejam concordantes, a ponto da existência dos indivíduos não ser objetivada de outra possibilidade, partindo do imaginário popular. Conforme Soja (1993, p. 193), num sentido ampliado, a reestruturação vem a ser uma “freada” ou recomposição por “mudança em direção a uma ordem e a uma configuração significativamente diferente da vida social, econômica e política”. Pressupõe, também, que a antiga ordem esteja “esgarçada para impedir os remendos adaptativos convencionais e exigir, em vez deles, uma expressiva mudança estrutural”. Foi o que ocorreu com toda a ordem econômica mundial, desde o período da Primeira Revolução Industrial, quando não somente o modo de produzir e distribuir os produtos destacadamente se alterou, mas também na organização social que tal alteração demandou.

Segundo Singer (1998, p. 11), a crise da década de 1930, no pós-guerra, opera com uma importante singularidade: a presença forte do Estado em resgate a economia. É a fase do “capitalismo dirigido”, iniciado com a tomada da social-democracia nos governos de economias centrais, como a Suécia. Neste período, o Estado foi denominado de “Bem-Estar Social”, compensando os baixos salários com “benefícios”, negociando com centrais sindicais, estabelecendo, assim, uma inovadora articulação entre mercado e Estado, com vistas ao “pleno aproveitamento dos recursos”.

O último período destacado, neste breve resgate histórico ao processo de reestruturação produtiva, vem a ser a crise da década de 1960-1970. Celebrado enquanto um período de grande prosperidade, o capitalismo mundial teve significativos ganhos, principalmente na recolocação dos indivíduos ao mercado de trabalho ocasionado por uma “quase estabilidade estrutural” (SINGER, 1998). Essa ampliação de direitos se estende para importantes revoluções, principalmente no campo da cultura e da política. A crise se apresenta com o confronto dos fundamentos capitalistas (que independente do formato do estado, nunca se alteram) que se recrudescem pela oposição agora material do denominado “socialismo real”. O autor lembra que no período conhecido com o “Welfare State”, houve a possibilidade da expansão de empresas multinacionais (principalmente Estados Unidos) em vários espaços do planeta, concebendo-se aquilo que denominávamos como “globalismo dirigido” (SINGER, 1998).

A produção capitalista urge por uma readequação, uma vez que a pressão inflacionária decorrente dos “conflitos distributivos” demandava uma novaPage 239 oxigenação por meio da abertura de mercados – livres do dirigismo estatal. Nesta “onda”, o Estado é “demonizado” e a ordem mundial exige que em níveis macroeconômicos as teses econômicas de Friedman fossem amplamente desenvolvidas, aplicando-se aos mercados locais a flexibilização, que, no campo da indústria propriamente dita se organizava pelo desenvolvimento tecnológico e logístico do modelo “toyotista”.

O modelo toyotista significa o conjunto de procedimentos industriais, denominados também de produção “just in time”2 (ou “em tempo”), no qual a organização da empresa, em seus diferentes pontos (da produção à distribuição do produto para consumo), supera seu antigo modelo de estocagem, vedete do processo anterior. Segundo Harvey (2000, p. 140-141), o modelo de “acumulação flexível” demanda uma nova referência que se apóia:

[...] na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. [...] a acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de desemprego “estrutural” [...], rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais [...] e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista.

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