O Povo Xukuru frente ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos/Xukuru People in the Inter-American Human Rights System.

AutorJúnior, Jayme Benvenuto Lima

Introdução

A busca incessante do Povo Indígena Xukuru de Ororubá pelo reconhecimento de seu direito sobre a demarcação de suas terras ancestrais representa um dentre tantos movimentos (1) que deram vida à expectativa que Ulysses Guimarães lançou sobre a Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, no ato de sua promulgação em 5 de outubro daquele ano: "A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar" (GUIMARÃES, 1988) (2).

A presença indígena em torno da Constituinte certamente contribuiu para isso. Não se tratou de um movimento espontâneo e altruísta dos constituintes em relação aos indígenas, algo movido por um sentimento de retratação histórica. Manuela Carneiro da Cunha descreve a atuação necessária e fundamental de entidades e personagens nesse esforço. Comissão Pró-Índio de São Paulo, Conselho Indigenista Missionário, União das Nações Indígenas, Instituto Socioambiental, Ailton Krenak, José Affonso da Silva, Dalmo Dallari e outras.

A Comissão Pro-Índio de São Paulo, na sua fundação em 1978, reuniu vários voluntários, entre eles um grupo de antropólogos da USP e da Unicamp, como Lux Vidal, Araci Lopes da Silva, Dominique Gallois, eu mesma, entre outros; Carlos Alberto (Beto) Ricardo, antropólogo que havia largado a docência na Unicamp para se dedicar a uma ong, então chamada Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), e que mais tarde viria a ser o Instituto Socioambiental (ISA). Havia também um médico da Escola Paulista de Medicina, Rubens Santilli, e um rapaz que - desconfiado que era e querendo saber a que vínhamos - demorou muito a se declarar índio, Ailton Krenak, que teria um papel importantíssimo na Constituinte; além de advogados defendendo causas indígenas, como Carla Antunha Barbosa e Marco Antônio Barbosa, que se valiam muito dos conselhos e da assessoria de Dalmo Dallari, professor titular da Faculdade de Direito da USP. Durante uma época, a advogada Eunice Paiva também participou. Rosa Penna era a secretária. Publicávamos um boletim, artigos em jornal, e tínhamos longuíssimas reuniões discutindo casos. (CUNHA, 2018). De acordo com Lopes, A primeira presença expressiva indígena na Constituinte aconteceu em abril de 1987, cheia de simbolismo, durante a apresentação da chamada "Proposta Unitária", que tratava a respeito dos direitos indígenas (BASTOS LOPES, 2014).

Em torno do Plenário, 40 lideranças, Krahô (GO), Krenak (MG), Kayapó (PA/MT), Xavante (MT) e outros grupos xinguanos (MT) dirigiram- se para acompanhar a sessão (LACERDA, 2008). Entre os presentes na antessala do presidente Constituinte, Ulisses Guimarães, aguardaram no local, os caciques Celestino (Xavante), Aritana (Kamaiurá), além de Ailton Krenak (presidente da UNI), Marcos e Jorge Terena (ambos funcionários do Ministério da Cultura) (CIMI-PORANTIM, 1987). Anterior, porém ao desfecho da audiência, o grupo liderado pelos Kayapó ocupou a antessala do gabinete; onde os Gorotire e Txukarramãe iniciaram cantos de saudação e hospitalidade, acompanhados de alguns passos de dança. De acordo com o jornal Porantim (1987), no momento em que "Ulysses Guimarães abriu a porta e viu a manifestação, nada conseguiu falar. Parou boquiaberto e ficou olhando. Um cocar foi depositado em sua cabeça e o documento da "Proposta Unitária" posto em suas mãos" (CIMI, 1987, p. 03). Na ocasião, os índios fizeram discursos em que rememoraram o massacre da sua população e os assassinatos recentes contra os povos indígenas.

Todo esse esforço político em torno da Constituinte permitiu a existência de uma normativa jurídica favorável ao reconhecimento das culturas indígenas como legítimas de serem ostentadas e vividas sem mais o esforço do Estado pela integração forçada (3), bem como o reconhecimento das terras ancestrais como usufruto de cada povo indígena. Mudanças jurídicas aconteceram, como as resultantes dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, os quais garantem protagonismo aos indígenas na luta por garantirem direitos ancestrais (4). De fato, outras mudanças também aconteceram. Em Pesqueira, Pernambuco, o Cacique Xicão liderava a retomada de terras indígenas xukurus de invasores não-índios.

O artigo citado de Manuela Carneiro da Cunha tem um viés muito bem apontado para um registro de memória. De uma forma muito mais simples, este artigo também segue essa linha. O objetivo geral é fazer um resgate do trâmite do litígio do Povo Xukuru de Ororubá contra o Estado brasileiro em sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O objetivo específico é apontar o núcleo da tese jurídica construída no âmbito da litigância junto à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos e refletir sobre ela, naquilo presente ou ausente na argumentação, passados 4 (quatro) anos desde a apresentação do Relatório de Mérito (5).

A metodologia consiste em uma parte descritiva sobre o caso e suas circunstâncias locais, o trâmite processual e os atos das partes envolvidas no litígio. Uma segunda parte, analítica, baseia-se na seguinte pergunta: uma outra tese jurídica com base na ancestralidade seria viável?

Para tanto, o artigo foi dividido em quatro partes: 1. Da Apresentação do Caso ao Relatório de Admissibilidade; 2. Da Admissibilidade ao Relatório de Mérito; 3. Da Estratégia Jurídica Adotada; e 4. Conclusões.

1. Da Apresentação do Caso ao Relatório de Admissibilidade

2002, mês de outubro, dia dez (6). O Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Movimento Nacional de Direitos Humanos - regional Nordeste (MNDH-NE), apresentaram uma comunicação à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH) em favor do Povo Xukuru e em favor do Cacique Marquinhos e de Dona Zenilda, mãe do cacique e viúva do Cacique Xicão.

Foi apontada, em princípio, a violação dos artigos 1, 2, 8, 21 e 25 da Convenção Americana de Direitos (7) e feito o pedido de medidas cautelares para preservação da vida e da integridade física do Cacique Marquinhos e de Dona Zenilda, ambos sob ameaça de morte no contexto do recrudescimento em relação ao movimento de retomada das terras indígenas ancestrais pelos fazendeiros não-índios da região.

Além da comunicação à CIDH, no mesmo dia, os peticionários enviaram comunicação à Representante Especial do Secretário-Geral da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, Senhora Hina Jilani, e ao Relator Especial sobre a Situação dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, Senhor Rodolfo Stavenhagen, em relação às violações de direitos humanos e sobre o processo de criminalização pelo qual passavam os indígenas do Povo Xukuru, no município de Pesqueira, Pernambuco.

Os peticionários trabalharam com uma dupla estratégia de atuação no sistema internacional. Para o sistema global, uma instância marcadamente de soft power (8), a comunicação funcionou, como ainda funciona, como lançador de luzes sobre fatos e atores antes invisibilizados (9). De outro lado, a comunicação também foi apresentada ao sistema interamericano, uma instância de hard power, cujo ápice se materializa com a decisão vinculativa e irrecorrível da Corte Inter-americana de Direitos Humanos. As duas instâncias, assim usadas, podem ser provocadas simultaneamente porque apenas a inter-americana gera litispendência internacional (10).

Este ponto de partida nas instâncias internacionais do sistema global e interamericano, com efeito, tem antecedentes seculares, que devem ser trazidos como parte da contextualização de todo o problema jurídico de reconhecimento do direito de propriedade. Afinal, o Povo Xukuru tem recebido promessas de demarcação de suas terras ancestrais há mais de 140 anos. Esse é o tempo que o povo Xucuru guarda a concretização da promessa feita pelo governo brasileiro no reconhecimento ao legítimo acesso à terra, território físico e metafísico intimamente ligado às suas tradições e crenças. Por ocasião da Guerra do Paraguai (1864-1870), os Xukurus receberam a promessa do Império brasileiro de, caso participassem efetivamente do esforço de guerra, aumentando assim o contingente militar brasileiro, teriam demarcadas suas terras. (11 12)

Em 1997, essa informação já era de conhecimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

45. O caso típico é o dos Xukurus de Ororuba, no município de Pesqueira, Estado de Pernambuco, a 220km do Recife. De acordo com a tradição local, seus membros aceitaram lutar como militares do Exército brasileiro na Guerra do Paraguai, em troca de terem suas terras reconhecidas, o que não aconteceu. Isso não aconteceu até 1992 quando o Presidente Itamar Franco homologando o estudo da FUNAI, que identificou 26.800 hectares como terras ancestrais dos Xucurús, uma área equivalente a um quinto em relação à área que eles ocupavam antes da conquista. Mas, de fato, os índios ocupam apenas 12% dos 26800ha. O restante pertence a 281 fazendeiros e madeireiros, cuja maioria contra índios como trabalhadores. Há aproximadamente seis mil Xucurús. Atualmente, a terra está sendo demarcada pela FUNAI em meio a um clima geral de insegurança e com orçamento mínimo (13). Apesar da promessa de meados do século XIX feita pelo governo de Dom Pedro II, foi efetivamente o governo republicano que procedeu ao procedimento demarcatório das terras, já no final da década de 1980. Nesses quase 40 (quarenta) anos de um anti-célere procedimento de demarcação, várias perdas irreparáveis foram contabilizadas por parte do Povo Xukuru.

A demora excessiva do Estado brasileiro em concluir a demarcação das terras Xukurus ensejou a retomada forçada pelos indígenas, sob a liderança do Cacique Xicão. Em resposta às ações violentas dos fazendeiros e madeireiros não-índios, o povo Xukuru não realizou a saída espontânea das terras identificadas como indígenas ancestrais ao mesmo tempo em que se instalou uma atmosfera de insegurança e vinganças por meio da prática de assassinatos através de emboscadas contra os indígenas e contra aqueles que os defendiam. Destacamos aqui quatro...

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