Presentes! Hoje e sempre: as noções de justiça de afetados por crimes de estado e o uso de métodos alternativos de solução de conflitos

AutorIsabella Markendorf Marins
Páginas109-183
PRESENTES! HOJE E SEMPRE: AS NOÇÕES DE JUSTIÇA
DE AFETADOS POR CRIMES DE ESTADO E O USO DE
MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
ISABELLA MARKENDORF MARINS
Resumo
Busca-se abordar a questão dos crimes de Estado relativos à violência
estatal, procurando compreender se os afetados por esses, quais sejam as
próprias vítimas, seus familiares e amigos, a partir de suas noções do que
seria uma justiça efetiva, acreditariam ser capaz de ser implementado um
modelo de resolução de conflitos através de uma ótica que não seja a do
Direito Penal – e consequente utilização do sistema carcerário – brasileiro.
Basicamente, acreditariam tais indivíduos que suas percepções estão sen-
do abarcadas pelo modelo de resolução já posto ou, na realidade, creem
que o sistema penal não está sendo capaz de satisfazer suas necessidades
enquanto vítimas, familiares, amigos, entre outros?
O presente trabalho nasce, portanto, da necessidade de refletir as
propostas alternativas de resolução de conflitos de modo mais concreto,
sob a ótica dos diretamente afetados pelo cometimento de crimes perpe-
trados por agentes do Estado, buscando trazer um protagonismo para as
vítimas e seus conhecidos, ao abordar as noções de justiça de tais indiví-
duos e como esses enxergam se o sistema penal brasileiro atende a suas
expectativas.
Palavras-chave
Crimes de Estado; Vítimas; Métodos Alternativos; Justiça
Abstract
This study aimed to address the issue of State crimes related to State vio-
lence in order to understand whether individuals affected by these crimes,
namely the victims themselves, their families and friends, would believe
that, based on their perceptions of what would be effective justice, it is
possible to implement a model for conflict resolution from a perspective
other than that of Criminal Law – and consequent use of the Brazilian pri-
son system. Basically, do such individuals consider their perceptions to be
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embraced by the current resolution model or, in fact, do they believe that
the penal system is unable to satisfy their needs as victims, relatives, and
friends, among others?
The present study therefore emerges from the need to reflect on alter-
native proposals for more concrete conflict resolution from the perspec-
tive of individuals directly affected by crimes committed by State agents in
order to assign a protagonist role to the victims and their family and friends
by addressing the perceptions of justice of these individuals and whether
the Brazilian penal system meets their expectations
Keywords
State Crimes; Victms; Alternative Methods; Justice
“Eles tiraram um pedaço de mim. Já tem onze anos, mas para mim,
foi ontem. Eles arrancaram meu filho, eles me dilaceraram.”
Frase dita por Marizete Siqueira Rangel, mãe de menino assassinado por policiais depois
de sair de uma casa de show, em trecho do filme Nossos mortos têm voz, de 2018
1. INTRODUÇÃO
No dia 06 de maio de 2021, os moradores do bairro do Jacarezinho, na
região Norte do Rio de Janeiro, ao invés de iniciarem mais uma quinta-fei-
ra, foram acordados ao som de tiros e helicópteros policiais. A data ficou
marcada como sendo o dia da maior chacina da cidade do Rio de Janeiro,
deixando 28 mortos.1 Apesar de trágicas, essas situações, como as do Ja-
carezinho, não são raras no cotidiano carioca, afetando os moradores de
regiões consideradas violentas e “fábricas de marginais”2 à luz de uma vi-
são institucionalizada racista e elitista, que faz com que o devido processo
legal seja ignorado e a polícia deva buscar “mirar na cabecinha”.3
No dia 16 de junho de 2021, um mês após o ocorrido, mais um caso
se sucedeu, apontando para uma realidade das favelas da frequência da
violência. Em um tipo de operação conhecida como troia, em que policiais
1 GORTAZÁR, Naiara Galarraga. “Não vai embora, vão me matar!”: a radiografia da ope-
ração que terminou em chacina no Jacarezinho. El País. 2021. Disponível em: https://
brasil.elpais.com/brasil/2021-05-13/nao-vai-embora-vao-me-matar-a-radiografia-da-
-operacao-que-terminou-em-chacina-no-jacarezinho.html. Acesso em: 28/06/2021.
2 Expressão utilizada pelo ex-governador Sérgio Cabral. MUNOZ, Daniel. Cabral apoia
aborto e diz que favela é fábrica de marginal. Folha. 2007. Disponível em: https://
www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm. Acesso em 05/12/20212.
3 Expressão utilizada pelo ex-governador Wilson Witzel. PENAFFORT, Roberta. A po-
lícia vai mirar na cabecinha e... fogo’, afirma Wilson Witzel. UOL. 2018. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2018/11/01/a-policia-vai-
mirar-na-cabecinha-e-fogo-afirma-wilson-witzel.htm. Acesso em: 05/12/20212.
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DE ESTADO E O USO DE MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
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realizam uma espécie de emboscada para atacar “supostos criminosos”,
Kathlen Romeu, uma jovem grávida de 24 anos foi executada no Com-
plexo do Lins. A modelo foi alvejada a tiros por policiais que estavam de
tocaia a espera de alegados traficantes na região.4
Paralelamente, mesmo quando prisões (e não mortes) de investiga-
dos são realizadas durante essas operações policiais, a fim de que possam
se defender das práticas pelas quais foram acusados, o sistema judiciário
não está alheio ao filtro que faz com que o encarceramento tenha uma cor
e uma classe. Não obstante a relevantíssima problemática da existência de
um sistema de justiça que tem um olhar enviesado ao exercer seus traba-
lhos, as prisões são uma brutalidade por si só.
O sistema carcerário brasileiro tem se apresentado há anos como
estando em constante crise, tendo sido, inclusive, declarado pelo Supremo
Tribunal Federal, na ADPF 347, como um “estado de coisas inconstitucio-
nal”, tendo em vista a violação contínua de direitos fundamentais em face
da população carcerária brasileira.
O ministro Marco Aurélio, relator do caso, assinalou em seu voto que
uma parcela majoritária dos detentos está submetida a
condições como superlotação, torturas, homicídios, violência
sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças
infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potá-
vel, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência
judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, bem como amplo
domínio dos cárceres por organizações criminosas, insuficiên-
cia do controle quanto ao cumprimento das penas, discrimi-
nação social, racial, de gênero e de orientação sexual.5
É importante trazer a noção de que o impacto da violência funciona
como uma faca de dois gumes, tendo em vista que os policiais que partici-
pam de incursões em comunidades pertencem, em muitos casos, à mesma
classe social e racial de suas vítimas. Por outro lado, os mortos e detidos
são, para o sistema investigatório e instrutório dois lados de uma mesma
moeda, na qual a seletividade do sistema penal mostra-se evidente.
Importante destacar, que os casos de violência e letalidade policial
mencionados – aqui entendidos como expressão de uma criminalidade
estatal – serão analisados ao longo do trabalho também a partir do que
ocorreu na ditadura militar, de maneira a identificar as continuidades
4 FRANCO, Luiza. Caso Kathlen: “troia”, a controversa tática policial que pode estar por
trás de morte de jovem grávida no Rio. BCC. 2021. Disponível em: https://www.bbc.
com/portuguese/brasil-57496191. Acesso em: 22/11/2021.
5 ADPF 347 TPI-Ref, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXAN-
DRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/2020, PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-165 DIVULG 30-06-2020 PUBLIC 01-07-2020.

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