A prevalência do acordo coletivo de trabalho de empresa no sistema das fontes do direito do trabalho

AutorTúlio de Oliveira Massoni
Páginas149-167

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Túlio de Oliveira Massoni1

Modelos de regulação do trabalho, estado e atores sociais

Interpretar e conhecer o direito do trabalho, além de uma aproximação histórica, envolve também o estudo dos atores sociais e da dinâmica das relações que entre si estabelecem (de conflito e de consenso), da mediação estatal por meio de leis reguladoras do trabalho e das formas de solução dos conflitos coletivos. É desta trama social e política da qual decorre a pluralidade de fontes do direito do trabalho que se cuidará nesta breve introdução.

Tradicionalmente se denominou “relações industriais”o conjunto de normas (formais e informais, gerais ou específicas) que regulam o emprego dos trabalhadores (salário, jornada etc.), assim como os diversos métodos (negociação coletiva, lei etc.) através dos quais se estabelecem as mencionadas normas e podem ser interpretadas, aplicadas e modificadas; métodos eleitos e aceitos pelos atores (empregadores e suas organizações e as representações de trabalhadores, Estado) nos processos de cooperação e conflituosidade, de convergência ou antagonismo. Tais normas, métodos, atores e processos sofrem mudanças no transcurso do tempo, por meio do qual as relações indus-triais vão tendo perfis e características próprias na evolução temporal.

Todo sistema de relações industriais, como mostra Oscar Ermida Uriarte, envolve três grupos de atores sociais (ou interlocutores): 1) os trabalhadores e suas organizações; 2) os empregadores e suas organizações; e 3) os organismos estatais relacionados ao trabalho.2 E deste sistema emerge um complexo de normas para governar e reger a comunidade de trabalho, as quais podem assumir uma diversidade de formas nos diferentes sistemas: convênios, estatutos, ordens, decretos, regramentos, laudos, políticas, práticas e costumes. A forma da norma não altera seu caráter essencial: o de definir o status dos atores e governar a conduta de todos os atores no lugar e na comunidade de trabalho.

Um aspecto central do sistema tem a ver com as regras que regulam a relação conflitual ou negocial entre os atores sociais. E esta regulamentação do sistema pode ser de dois tipos. Assim como a relação entre as partes pode ser negocial ou conflitiva, a regulação dessas relações pode ser estatal (através da lei) ou pode ser autônoma, caso em que não é o Estado que regula, mas as próprias partes por meio da negociação coletiva e outros institutos. Aqui surgem variáveis importantes com vistas a definir e classificar certo sistema de relações industriais de trabalho, já que ele pode ser regulado autônoma ou heteronomamente. O que é melhor? Maior grau de intervenção legislativa na regulação do sistema ou menor grau de intervenção legislativa e maior grau de regulação entre as partes. Neste ponto coloca-se o debate intervencionismo X autonomia, regulação estatal X autorregulação das partes.3

Sendo o conflito, notamente o conflito coletivo, o ponto de partida de todo o sistema, é sobre ele (e seus desdobramentos, mediações e técnicas), e em especial sobre a negociação coletiva de trabalho, que se arraiga todo o edifício laboral, dado que os problemas laborais são normais, e não patológicos, em uma sociedade industrializada, na qual o objeto das relações industriais como técnica é a solução do conflito.

O aspecto característico do contrato de trabalho é que o trabalhador encontra-se submetido ao poder do empregador, mas, ao mesmo tempo, o poder deste último é, por sua vez, coordenado com aquele do trabalho sindicalmente organizado. A regulação do trabalho, portanto, resulta da

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combinação desses processos de subordinação e de coordenação. O conflito entre capital e trabalho é naturalmente imanente em uma sociedade industrial e, por isso, também nas relações de trabalho. Como mostra Otto Khan-Freund, em já clássico estudo, os conflitos de interesses são inevitáveis em toda sociedade. Há regras para a sua composição, mas não podem ser regras para sua eliminação. Devem ser regras aptas a promover a negociação, a promover os acordos e a promover a observância dos mesmos; e devem ser regras destinadas a regular o uso da pressão social e que devam valer para as armas exercitáveis pelas partes em conflito. 4

Há modelos autônomos e modelos heterônomos de relação de trabalho na conformidade do espaço maior ou menor que o Estado reserva para suas leis e para a auto-nomia coletiva dos particulares. Otto Khan-Freund concebe três grandes modelos de regulação do trabalho e que, também, indicam a consequente relação que se estabelece entre lei estatal e contratação coletiva de trabalho.

O primeiro, de tradição da “Common Law”, em que o papel da lei na formação das regras é muito menor, é por alguns denominado absenteísmo estatal ou, ainda, “laissez-faire coletivo”.

O segundo modelo corresponde ao da “legislação reguladora”(regulatory legislation), no qual a legislação estabelece as normas reguladoras do trabalho, atuando de maneira a restringir o poder do empregador e sendo indiferente ao fato de os trabalhadores serem ou não sindicalmente organizados ou em que medida o sejam. Adverte o autor que o desenvolvimento da contratação coletiva (determinando tanto a sua amplitude quanto a sua perspectiva) reduziu o sentido de tal legislação reguladora, inclusive em termos de eficácia desta última.

O terceiro modelo, em contraposição ao modelo regulador, é o modelo “auxiliar”de normatização, tendente a estabelecer as “regras do jogo”, em especial por delimitar uma moldura legal (“legal framework”) da contratação coletiva. A lei tem por tarefa definir o processo formativo das próprias regras oriundas das partes coletivas interessadas e de suas imposições (“enforcement”). É o modelo de maior aplicabilidade hoje nos países democráticos, nos quais a legislação e os poderes públicos incentivam e fomentam a negociação coletiva como forma privilegiada de superação de conflitos coletivos5.

Nos sistemas autônomos ou autorregulados das relações laborais, como no britânico, no norte-americano e no italiano, a negociação coletiva é uma norma basilar que regula todo o sistema. Existe pouca ou nenhuma lei regulando a estrutura sindical, a negociação coletiva, a greve, os direitos de empresários e de trabalhadores; tudo ou a maior parte disso se regula através da negociação coletiva. A negociação coletiva é, portanto, nos sistemas autônomos de relações industriais a norma que estrutura a totalidade do sistema, não sendo necessário dizer nada mais para destacar a sua essencialidade. Diferentemente, nos sistemas intervencionistas ou regulamentaristas e naqueles sistemas em que a regulação do todo do sistema não se confia tanto à autonomia coletiva, a não ser, em menor ou em maior medida, o papel proeminente é confiado ao Estado, que o exerce através da lei. Ainda assim, a negociação coletiva segue sendo um elemento essencial do sistema; não tão essencial como o caso anterior, mas de todo modo importante, porque segue sendo, por mais leis que existam, a forma básica, a forma principal, a forma essen-cial da relação obreiro-patronal. Em outras palavras, põe-se a negociação coletiva a alternativa ao conflito, o modo de solucionar o conflito, a forma principal de relação entre o sindicato e o empresário, seja o empresário individual, seja a associação sindical de empregadores.6

O predomínio do coletivo sobre o contrato individual teve sua gênese no continente Europeu no qual as forças conservadoras e socialistas deixaram pouca margem aos governos liberais e o protagonismo do Estado deu-se através de uma extensa legislação garantista do trabalhador individual. Talvez, por consequência da crise econômica, a legislação do Estado deixou de fixar mínimos, parece haver unanimidade em deixar aperfeiçoar, retocar o edifício. Aflora com toda evidência o maior peso das relações coletivas sobre as individuais, não somente pela sua centralidade nas Constituições, ou porque se acumularam as sentenças de cortes constitucionais nos diversos países, senão porque, ademais, as primeiras são a fonte das segundas: os sujeitos coletivos têm característica de fonte de produção e os acordos coletivos, o de fonte de conhecimento das normas que regulam as condições individuais de trabalho; o valor qualitativo sobrepõe-se, assim, à história, e todo o Direito Sindical chega a ser um “a priori”, um “prius”, da relação individual do trabalho.7

Direito do trabalho: pluralismo de fontes e autonomia privada coletiva

Uma das grandes marcas do Direito do Trabalho, ao lado do princípio protetor, é precisamente o pluralismo jurídico. O direito do trabalho não está adstrito às leis elaboradas pelo Estado. Há também, simultaneamente com

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a elaboração das leis, uma contínua produção de vínculos jurídicos que se origina diretamente da sociedade organizada em grupos.

A noção de autonomia coletiva edificou-se a partir da noção de ordenamento jurídico formulada por Santi Romano8, ao rejeitar a tese reducionista que resume o fenômeno jurídico apenas ao Estado, passando a admitir o ordenamento jurídico sindical, independente do Estado e auto-suficiente de valoração normativa e com unidade intrínseca, mas em contínua correlação com a ordem estatal, atuando até mesmo como fator de renovação desta última.9 Os trabalhadores...

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