Primitive Communism and capitalist transition in the thought of Rosa Luxemburg/Comunismo Primitivo e transicao capitalista no pensamento de Rosa Luxemburgo.

AutorAlvares, Lucas Parreira

O Sapato

Em 1919, a revolucionaria Rosa Luxemburgo foi assassinada em Berlim. Ela foi arrebentada a coronhadas de fuzil pelos assassinos, e depois jogada nas aguas de um canal. No caminho, perdeu o sapato. Alguem recolheu esse sapato, jogado na lama. Rosa queria um mundo onde a justica nao fosse sacrificada em nome da liberdade, nem a liberdade sacrificada em nome da justica. Todos os dias, alguem recolhe essa bandeira. Jogada no barro como o sapato.

(Eduardo Galeano, "Os filhos dos dias", 2012)

  1. Introducao (1)

    Mulher, judia, e deficiente. Com sua trajetoria negligenciada no desconhecido pensamento socialista da Polonia--pais historicamente periferico na Europa--Rosa Luxemburgo teve sua importancia ofuscada pelos fatos e catastrofes globais da primeira metade do seculo XX. Rosa nao foi, em primeiro lugar, uma renomada teorica: antes de mais nada, foi tambem integrante de dois partidos socialistas; educadora popular; internacionalista convicta; jornalista polemica; e oradora de alto nivel (DILGER, 2015, p. 9).

    No ambito teorico, e conhecida por ter sido pioneira do socialismo democratico em virtude da sua defesa a autonomia dos trabalhadores em detrimento ao burocratismo das organizacoes politicas (LOUREIRO, 1999, p. 28). Suas mais renomadas obras sao voltadas para os estudos economicos (2) e teoria socialista (3), alem de sua valiosa contribuicao para a concepcao estrutural partidaria (4). Entretanto, esse trabalho pretende se debrucar sobre uma vertente do pensamento de Rosa Luxemburgo que, ainda que nao tenha sido analisada com evidencia por nenhum de seus trabalhos especificos, serviu de fundamento para nortear seus principais textos: a transicao para o Capitalismo, suas consequencias instantaneas, e seus efeitos futuros.

  2. O Comunismo Primitivo

    Semanas antes de ser presa e covardemente assassinada, Rosa Luxemburgo, em um fatidico discurso no congresso inaugural do Partido Comunista Alemao, afirmou que e so exercendo o poder que a massa aprende a exercer o poder (LOUREIRO, 1991, p. 13), ou seja, que a educacao, tanto pregada pelos marxistas ortodoxos de seu tempo, so poderia alcancar seu auge quando o oprimido fosse o proprio agente de sua acao. Ficou entao conhecida como pioneira de um socialismo tendo na democracia, sua caracteristica basilar. Mas uma segunda inovacao de Rosa se estabelece ao momento em que ela compreende o capitalismo como um fenomeno imperialista, promovendo a ideia de uma alianca entre a luta anticolonial dos povos colonizados e a luta anticapitalista do proletario moderno, como uma convergencia revolucionaria entre o antigo e o novo comunismo (LOWY, 2015, p. 94). Em outras palavras, Rosa foi a primeira marxista a compreender o capitalismo como um sistema mundial, se tornando a primeira teorica a dar lugar permanente, na civilizacao ocidental, aos paises de periferia do capitalismo, nao meramente em funcao da necessidade das colonias como fontes de acumulacao primitiva do capital, como tambem, a necessidade de manutencao das colonias como elemento imprescindivel para o desenvolvimento do capitalismo mundial (LOUREIRO, 2015).

    Na literatura marxista, prevaleceu a nocao de que o Imperialismo seria um mero estagio do capitalismo. Nao em Rosa Luxemburgo, como afirma Paul Singer (1991), que, para a Polonesa, o Imperialismo surge como um elemento central do capitalismo, pois desde seu inicio o capitalismo precisou capturar mercados externos para ter a razao de ser da propria expansao, expandindo-se via Estado, e transformando economias naturais nao mercantis em economias de mercado. Assim, compreendendo o Imperialismo como fundamento do Capitalismo, distanciamos da abordagem--especialmente juridica e sociologica --de que a Modernidade se inicia apos revolucao francesa com a consolidacao do Estado de Direito e das principais instituicoes modernas. Distanciamos da concepcao estrita de que o Capitalismo se porta apenas como um processo de producao, e nos aproximamos de uma nocao do Capitalismo como um fenomeno cognitivo, tendo como centro a Europa, e como margem as territorialidades coloniais perifericas.

    Desse modo, duas obras de Rosa Luxemburgo tidas como "economicas" trazem aspectos historicos da transicao moderna como fundamento de analise. Em Introducao a Economia Politica, Rosa demonstra seu surpreendente interesse pelas sociedades de comunismo primitivo; ja em A Acumulacao do Capital, ela discute as consequencias do Imperialismo para essas proprias comunidades pre-capitalistas (LOWY, 2015). Na primeira obra, Rosa se encanta com o funcionamento igualitario das markas germanicas (5), evidenciando a harmonia presente entre os povos e se surpreendendo com a "economia natural" daquela sociedade:

    Todos trabalham em conjunto para todos e decidem a respeito de tudo. De onde provem e em que se fundam essa organizacao e esse poder da coletividade sobre o individuo? Do comunismo do solo, ou seja, da posse em comum do mais importante meio de producao pelos trabalhadores (6). (LUXEMBURGO, 1974, p. 83).

    Rosa (1974) se surpreende tambem com as experiencias de comunismo primitivo na America do Sul, principalmente presentes na experiencia peruana, que tambem eram chamadas de markas por parte dos historiadores. Entretanto, para Rosa, a especificidade das markas peruanas sobre as germanicas reside no fato de que nelas tratava-se de uma regiao conquistada, onde havia se estabelecido uma dominacao estrangeira--a do imperio Inca sobre os Quechuas (p. 84). Esse solido sistema de exploracao, no entanto, deixou no passado a vida interna da marka, assim como seus mecanismos comunistas democraticos. Porem, apesar dos vicios presentes na civilizacao Inca, Rosa tambem admirava alguns elementos daquela sociedade pre-capitalista, como a atuacao dos delegados dos "clas" de Cuzco, organizados sistematicamente de maneira democratica (p. 85). Configura-se entao, uma condicao de sobreposicao entre duas sociedades--Quechuas e Incas--organizadas primitivamente de modo comunitario, que encontravam-se em uma relacao de servidao e exploracao. Por mais que esse fenomeno possa parecer inconcebivel pela contradicao interseccional entre os principios de Igualdade e Fraternidade, para Rosa e exatamente nessa circunstancia que obtemos a prova de que ha pouca relacao entre os mecanismos comunistas originarios com o processo "civilizatorio" da sociedade capitalista (p.85). Assim, a sociedade comunista originaria nao conhecia nenhum principio generalizado a todos os homens. Sua igualdade e solidariedade surgiam das tradicoes, dos vinculos sanguineos e da propriedade comum dos meios de producao. O fundamento do comunismo originario para Rosa nao era sua renuncia por uma questao dos principios abstratos de igualdade e liberdade, mas sim a real necessidade de desenvolvimento da cultura humana. Foi o proprio desamparo dos homens frente a natureza em sua volta que os impuseram a viver e trabalhar juntos na luta pela propria existencia (p. 86).

    Com o imperialismo explorador no ambito intercontinental, ou seja, com o inicio do processo de colonizacao, Rosa afirma que a populacao da America do Sul se deparou com um metodo de conquista completamente novo e desconhecido pela civilizacao Inca. Embasada pela literatura do brutal relato de Bartolome de Las Casas (7) em Brevissima relacao de destruicao das indias (8), Rosa (1974, p. 88) condena a colonizacao europeia em relacao aos povos originais como um "espetaculo que partiam o coracao desses miseraveis seres, completamente nus, esgotados de fome, em que o unico direito era poder estar em pe", antes da punhalada pelas costas que os assassinavam inumanamente. Para ela, os maus tratos concedidos aos indios, como a escravidao imposta, o estupro as mulheres indigenas por parte dos europeus e a reducao do ser humano ao preco de acucar--ou ao "fosforo sueco", como ela explicita--foi "alem de qualquer coisa imaginavel", pois ate a morte, naquela circunstancia, poderia significar uma "libertacao para os indios" (p. 89).

    Podemos compreender entao a perspectiva singular que Rosa traz ao marxismo ocidental, nao so voltando seu olhar ao comunismo primitivo como uma civilizacao mais igualitaria que a moderna, como tambem a inclusao da perspectiva periferica na analise economica do capitalismo moderno. Analisando esse pensamento de Rosa, Michael Lowy tenta desvendar seu interesse acerca das comunas primitivas percebendo um traco dual: se por um lado ela busca no passado a decomposicao do "intocavel" carater eterno da propriedade privada, por outro:

    Rosa Luxemburgo ve o comunismo primitivo como um ponto de referencia historico precioso para criticar o capitalismo, desvelar seu carater irracional, reificado, anarquico e trazer a luz a oposicao radical entre valor de uso e valor de troca. Assim sendo, o objetivo de Rosa Luxemburgo, pelo menos ate certo ponto, consiste em encontrar e salvar do passado primitivo tudo que possa prefigurar o socialismo moderno (LOWY, 2015, p. 89).

    Coube entao a Mario Pedrosa (1979, p. 69)--que tambem entendia que o Imperialismo era o primeiro ato de nascimento do capitalismo--classifica-la como a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT