O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito

AutorRoberta Corrêa de Araújo Monteiro
CargoJuíza do Trabalho - TRT 6a Região. Mestre e Doutoranda em Direito Público
Páginas135-153

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1. Introdução

A compreensão do alcance e significado do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana no contexto da ordem jurídico--constitucional brasileira é essencial para a efetividade dos direitos fundamentais e para consolidação do Estado Democrático de Direito.

Essa a razão pela qual analisa-se no presente artigo a dignidade humana como princípio fundamental da Constituição Federal de 1988 e suas múltiplas manifestações e implicações. A incursão nesta temática justifica-se ainda pela sua relevância não apenas na esfera jurídica, mas também no plano existencial, visto que acima de tudo, refere-se à própria condição humana.

Para tanto, buscar-se-á demonstrar como o conceito de pessoa e de dignidade revela-se no processo histórico como representativo de uma específica concepção de mundo prévia às várias filosofias alojadas em cada uma delas.

Chamar-se-á a atenção também para o fato de que termos como "estado", "democracia" e "dignidade humana " adquiriram configurações conceituais inteiramente distintas ao longo da história, de modo que para compreendê-los na atualidade, faz-se necessário colocá-los em relação com a continuidade ou com a descon-tinuidade das estruturas políticas, económicas e sociais de cada momento.

O contexto social, filosófico, político e jurídico em que emergiu o fenómeno do neoconstitucionalismo e a mudança de paradigmas juridico-teóricos que dele resultou, elevou a dignidade humana ao status de princípio constitucional, demandando uma nova postura do Estado voltada a sua proteção, promoção e concretização.

O reconhecimento da força normativa da constituição e da eficácia normativa dos princípios consittucionais será abordado como pressuposto teorético à defesa da imediata aplicação e implementação das normas definidoras dos direitos fundamentais do cidadão, especialmente dos direitos sociais, por meio dos quais a dignidade da pessoa humana avulta e se concretiza.

É preciso ter em mente que os direitos reconhecidos como fundamentais no ordenamento constitucional pátrio são vinculados, intrinsecamente, à cláusula ordenadora da dignidade da pessoa humana e, sendo assim, recebem o automático reconhecimento de garantia substancial, valor social primário e princípio constitucional supremo.

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A vinculação da sociedade e dos poderes públicos às diretrizes constitucionais promotoras da dignidade da pessoa humana realça o papel jurídico-político do Poder Judiciário na garantia e salvaguarda da máxima eficácia possível das normas constitucionais, sobretudo as definidoras de direitos fundamentais.

As ideias expostas no presente estudo destinam-se ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor fundamental a ser realizado no Estado Democrático de Direito, dotado de imperatividade e aplicabilidade imediata, demandando uma interpretação jurídica e uma intervenção judicial de viés concretizador.

Para tanto, importa compreender a posi-tivação do princípio da dignidade humana não só como uma consequência histórica e cultural, mas como valor que por si só agrega e se estende a todo sistema constitucional, político e social.

Tal constatação demanda uma nova compreensão do direito, que leve em consideração as propostas democraticamente erguidas pelo texto constitucional de 1988 e que seja capaz de implementá-las de forma satisfatória, voltando--se para o respeito à vida digna não só das gerações existentes, mas também das gerações futuras.

Esse compromisso é da sociedade e do Estado e deve ser assumido a partir da proposta de uma cidadania digna e ativa a ser construída pelo Estado Democrático de Direito.

2. A construção e evolução do conceito de pessoa e de dignidade da pessoa humana

O direito é historicamente determinado e só pode ser bem compreendido dessa forma. Isso requer um olhar para história como um caminho para a compreensão do direito hoje. Daí por que analisar a evolução do conceito de dignidade humana torna-se premissa necessária à compreensão de como este conceito se apresenta e se consolida no atual cenário constitucional brasileiro como pilar central do Estado Democrático de Direito.

O reconhecimento e a proteção da dignidade humana pelo direito ligam-se indissoluvelmente à evolução histórica das ideias a respeito do que é ser pessoa e dos valores que lhe são inerentes, as quais foram também decisivas para influir no modo pelo qual o direito reconhece e protege essa "dignidade".

Necessário se faz, portanto, remontar-se a questões fundamentais da existência humana a fim de observar como se construiu, através dos tempos e dos pensamentos, a ideia contemporânea de pessoa e de dignidade.

2.1. A tradição grega e a concepção de pessoa e dignidade na antiguidade

Filosoficamente, é na tradição grega que encontramos as primeiras noções que serviram de fundamento para a compreensão tanto da pessoa humana quanto da sua dignidade, embora neste período ainda se apresentassem como noções vagas e imprecisas, inexistindo um conceito de pessoa ou outro objetivamente análogo a ele.

Na antiguidade clássica, a ideia de pessoa não apresentava um sentido ontológico. A palavra latina personci corresponde ao grego prósopon, que designava no teatro a máscara correspondente ao tipo de personagem que cumpria ao ator representar ou interpretar.

A dignidade humana na antiguidade clássica relacionava-se com os atributos externos do indivíduo, sua posição social. Daí por que existiam pessoas mais ou menos dignas em vista da posição social que ostentasse. Não era, portanto, concebida como valor inerente ao homem, ao seu ser. Ademais, prevalecia uma visão orgânica de mundo, que superava a noção de vida individual e segundo a qual as partes estão em função do todo.

A ideologia que norteava o funcionamento das polis gregas era fundamentada na crença de uma ordem perfeita, em que o poder emanava dos deuses, do cosmos ou da natureza.

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Por isso, no pensamento clássico a polis figurava como realidade ontológica superior às pessoas que a habitavam, inexistindo a noção de uma singularidade valorizadora do ser humano enquanto ser em si, desconectado do contexto social da polis.

Com a tragédia grega operou-se um afastamento dessa concepção, visto que ela toma como objeto o próprio homem e este adquire um viés de autonomia, florescendo o seu espírito reflexivo e criador.

O herói trágico aproxima-se do homem real, expondo os dilemas e as contradições nas quais se envolvem os seres humanos e as situações conflitantes que os impelem para a ação.

Embora em um primeiro momento a tragédia grega se alimente do mito, é ela que vai possibilitar a passagem da mitologia para a filosofia, deflagrando a transição de uma visão de mundo mitológica para uma visão de mundo filosófica, a partir da qual o saber consubstanciado no mito tradicional é suplantado pelo saber lógico, racional.

Isso resulta em uma mudança paradigmática por meio da qual são estabelecidos os primeiros passos na direção da ideia de pessoa enquanto ser dotado de autonomia e com finalidade em si mesmo.

Esse cenário se desenha no período que Fábio Comparato1 aponta como sendo o eixo histórico da humanidade, compreendido entre VIII e II a. C, no qual foram arquitetadas diretrizes fundamentais da vida que continuam em vigor até os nossos dias.

É, contudo, nos séculos VI e V a. C, com os autores pré-socráticos como Parmênides e Heráclito que a pergunta pelo ser tornou-se evidente. Com Heráclito foram criados os fundamentos da concepção dialética do mundo, com a sua teoria do eterno devir na esteira da qual ganhou corpo o movimento denominado sofística, que se baseava no convencionalismo, no relativismo e no homem empírico.

É inegável que os juízos sofísticos foram de fundamental importância para a construção do pensamento ocidental, inaugurando um paradigma diferente na filosofia que passa a ter como ponto central o homem e seus problemas práticos e particulares, sendo considerado este como um ser que age e participa da vida da cidade.

Ocorre, portanto, segundo o clássico esquema de Windelband2, uma virada onde o determinismo cosmológico dá lugar ao antropocentrismo. Os sofistas foram responsáveis por uma revolução cultural e humanista que se delineou em virtude da crise do pensamento filosófico.

A expansão económica e militar das cidades--estado gregas, o desenvolvimento cultural e político desencadeado pela descoberta de um novo mundo no oriente, a formação de uma consciência nacional e a irrupção das massas na vida pública fez surgir novas inquietações e desafios em face dos quais a filosofia da natureza revelou-se impotente.

Os sofistas captaram essa inquietação e contribuíram para o abandono da filosofia da natureza. Assim, enquanto a tradição grega ensinava que a polis era superior ao indivíduo, os sofistas negavam essa superioridade e situavam o homem como elemento principal, elevando-o...

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