Princípio do direito de recusa do obreiro

AutorCléber Nilson Amorim Junior
Ocupação do AutorAuditor Fiscal do Trabalho na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Maranhão. Especialista em Segurança e Saúde no Trabalho pela Universidade Estácio de Sá
Páginas102-119

Page 102

"Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o operário, é a liberdade que oprime, e a lei que liberta." Abade Lacordaire

O princípio do direito de recusa do obreiro tem como finalidade proteger o trabalhador de consequências injustificadas caso julgue necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ela envolve um perigo iminente e grave para a sua vida ou saúde. Assim sendo, o trabalhador não pode ser penalizado pelo empregador por estar exercendo o direito legítimo de defesa de sua vida e que é decorrência natural do princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador.

Neste capítulo é apresentado o fundamento da racionalidade do exercício do poder de mando do capitalista em relação aos seus empregados, a natureza jurídica desse poder e os limites do seu exercício no estado democrático de direito, no qual se situa o direito de recusa e a necessidade de sua efetivação prática.

4.1. Autoridade e subordinação: a justificação contratualista

A origem da teoria contratualista remonta às doutrinas jurídicas e políticas do iluminismo, nascida no contexto histórico da Revolução Burguesa. Nesse contexto, soergue-se a trilogia Revolução Industrial, Iluminismo e Contratualismo como modelos icônicos de uma nova racionalidade. Como resultado do avanço tecnológico, de uma complexa dinâmica econômica e social e do esgotamento do modo de produção feudal - baseado nos métodos de organização do trabalho, de produção manufatureira e nos vínculos de vassalagem - eclodem os conceitos de liberdade política e igualdade formal necessários à nova dinâmica das relações sociais capita-listas, cujo cerne é o contrato de compra e venda da força de trabalho.151

A propriedade privada e o contrato são o núcleo dessa concepção e são figuras jurídicas em que se plasmam a vontade e a razão humana, que agora subjugam o universo. Dentre todos os filósofos clássicos da ilustração, é John Locke o que melhor revela a concepção de direito de propriedade como derivado da razão natural. Segundo o pensador, a razão natural aceita e vê como inquestionável o

Page 103

direito à vida e à autoconservação extraída dos bens colocados pela natureza à disposição do homem.152

Essa concepção funda-se numa ideia de índole manifestamente antropocêntrica, a de que todas as riquezas do universo foram criadas por Deus para suporte e comodidade da vida humana, eixo em torno do qual o universo se movimenta. Ninguém tem originalmente um exclusivo domínio privado sobre nenhuma destas coisas tal como são dadas no estado natural. Ocorre, entretanto, que, como ditos bens estão aí para uso dos homens, deve haver necessariamente algum meio de apropriar-se deles, o que, por um lado, justifica a instituição da propriedade privada.

Por outro lado, a propriedade privada é fundamentada pelo próprio trabalho, enquanto valor universal e fenômeno que produz a transformação da natureza em proveito do próprio homem. Qualquer coisa que ele retira do estado em que a natureza a produziu e a deixou, e a modifica com seu labor e acrescenta a ela algo que é de si mesmo, é, por conseguinte, propriedade sua. 153

O mundo moderno representa a glorificação do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade operária. 154

A fonte de todas as obrigações passa a ser o arbítrio do homem. O que a lei reconhece e ao que dá validade e vigor jurídico é a concorrência de consentimentos expressados em forma legal, de modo que todo acordo que reúna tais condições é um contrato válido e eficaz, e seu cumprimento pode ser reclamado e conseguido ante os tribunais.155 Forja-se a ideia de que a restrição da liberdade é resultado de uma dada racionalidade: o indivíduo já não se submete como escravo a seu proprietário, ou como servo ao suserano. Ele é apenas sujeito de uma convenção, de algo instituído no plano das ideias por um cálculo de conveniências.

O ordenamento positivo é agora um contrato do tipo social que é o instrumento de libertação da escravidão156 e passa a ser tomado como fonte das relações obrigacionais entre capital e trabalho e, portanto, como força geradora do fenômeno dos poderes diretivos e do estado de sujeição a eles correspondente. A subordinação ao contrato implica um juízo de valor das partes que o realizam: a aceitação do interesse plasmado no acordo de vontades em detrimento do seu interesse individual.

As relações de poder nascem do concerto de vontades entre as partes, de onde decorre a polaridade débito-responsabilidade, em que consiste o vínculo

Page 104

contratual.157 Ao realizar-se o negócio jurídico bilateral, obriga-se o trabalhador à prestação de uma atividade específica e, igualmente, a um dever geral de fidelidade, isto é, de acatamento às futuras determinações do empregador no sentido de estabelecer o conteúdo concreto da prestação.

Paralelamente aos deveres, são pactuadas as cláusulas penais aplicáveis em face do inadimplemento de uma das partes. O núcleo central da fundamentação localiza-se no campo da autonomia privada, em cujos domínios é representada a vontade humana.

A origem da doutrina contratualista estende-se aos séculos XVII e XVIII, nos primórdios da experiência jurisprudencial do liberalismo nascido do paradigma da Revolução Industrial, coincidindo com o protagonismo adquirido pelo contrato na sociedade burguesa. O contrato regula a vida e a morte, atua em todos os âmbitos da vida, desde o casamento, visto como contrato matrimonial, até o próprio contrato social que fundamenta a legitimidade do Estado, passando pela sucessão e por todos os demais atos civis e alcançando, até mesmo, os de soberania estatal, como nas relações do governo com os que lhe prestam serviços como funcionários. Na esteira deste protagonismo, o contrato acaba por penetrar em um território antes defeso à autonomia privada, as relações econômicas de produção.

A essencial peculiaridade material da vida jurídica moderna, especialmente a privada, é a enorme importância adquirida pelo negócio jurídico e, sobretudo, pelo contrato, como fonte de pretensões coativamente garantidas.158

As primeiras justificações contratualistas têm um papel instrumental de legitimação dos mecanismos de sanção adotados na práxis dos novos modelos de organização da produção capitalista. Como exemplo podem-se citar as decisões da Corte de Cassação Francesa, que negava tutela jurisdicional à pretensão deduzida por trabalhadores em face do aviltamento salarial produzido pela imposição de multas aplicadas por empresas diante de infrações de natureza simples. Baseado no conceito de intangibilidade do conteúdo do contrato - do qual decorre a ideia de que esse conceito enverga força de lei entre os contratantes -, aquele alto tribunal atribuía à prospecção exercitada pelo juiz um caráter meramente tangencial, supondo ser a ele vedada a cognição da racionalidade intrínseca do pacto firmado pelas partes.159 Dessa forma, o órgão jurisdicional reduzia-se a mero protetor de conteúdo, pactuando e consagrando a adoção de um mecanismo de autotutela privada cujo núcleo duro, a sanção disciplinar, era e é, até nossos dias, comparável em natureza e função à sanção penal cuja natureza é repressiva e cuja função é intimidativa e de prevenção.160

Page 105

O contrato de trabalho tem por objeto uma série de comportamentos objetivamente idôneos a influir o mundo externo em proveito de terceiro, diferenciando-se, assim, de todos os demais contratos que se referem ao direito sobre as coisas e dos que se referem a transações tradicionais. O seu resultado se enquadra na organização objetiva da empresa e faz parte integrante do seu resultado final, que é adquirido pelo empresário a título original. 161

Para Max Weber, o poder de caráter racional-legal é a base elementar sobre a qual se erigem as relações capitalistas de produção. Na composição do tipo ideal de dominação legal ou burocrática, ele dá ênfase ao estudo da relação estabelecida pelo trabalhador que está ligado por contrato à empresa capitalista.

Ao sintetizar didaticamente seus três tipos ideais de dominação, Weber faz referência expressa ao intercâmbio jurídico entre capitalista e operário como protótipo da autoridade do tipo burocrática. O poder tradicional é lastreado no hábito inveterado, como no caso dos vínculos entre a criança e o pai. O poder carismático pode ser simbolizado no liame entre o membro de uma comunidade religiosa e seu profeta. E o poder legal é representado pela relação contratual entre trabalhador e empresa. O traço mais característico deste último é o fundamento racional da relação, a impessoalidade da sujeição, que não se estabelece em face de um profeta dotado de poderes sobrenaturais ou de um chefe de família a quem se dedica uma devoção advinda de uma consciência imemorial, mas, sim, em virtude de um dever de disciplina, que é formal, racional e objetivo.162

Nesse sentido, a disciplina é expressa em instruções e ordens de serviço relacionadas ao trabalho e implica, também, a submissão a uma autoridade, numa relação de dominação. Neste caso, dominação é uma relação de autoridade marcada por um elemento específico: a aceitação. Já a disciplina denota uma ideia especial de sujeição, de obediência, sendo definida como a probabilidade de encontrar obediência pronta, simples e automática para um mandato por parte de um conjunto de pessoas, em virtude de práticas nelas arraigadas. Sendo assim, na relação disciplinar, via de regra, não há resistência nem oposição, pois os sujeitos aos quais se dirige o comando encontram-se racionalmente predispostos a submeter-se à determinação.163

Weber sabe e deixa claro que esta aceitação não quer dizer exercício pleno de livre...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT