Princípios de uma teoria geral dos recursos

AutorLeonardo Greco
CargoProfessor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Páginas5-62

Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Na época em que entrou em vigor o Código de Processo Civil de 1973, o sistema de recursos por ele instituído foi considerado um dos seus aspectos positivos, pela sensível simplificação que representou em relação ao regime anterior. Basta dizer que no regime do Código de 39 havia nada menos de três recursos diferentes contra as decisões interlocutórias (o agravo de instrumento, o agravo no auto do processo e a carta testemunhável), cuja admissibilidade variava por critérios bastante casuísticos, bem como dois recursos diferentes contra a sentença de 1º grau (a apelação e o agravo de petição). Não obstante esse avanço, decorridas mais de três décadas de vigência do Código e após incontáveis alterações, o seu sistema de recursos é apontado por muitos como o grande responsável pela crise da Justiça brasileira, conforme se manifestou a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, ao analisar a Proposta de Emenda à Constituição que deu origem à Emenda Constitucional nº 45/2004.

Não tenho dúvidas de que o atual sistema de recursos é bastante deficiente, se comparado com os de outros países e se avaliados os seus resultados do ponto de vista da qualidade e da credibilidade das suas decisões. Além de estimular o demandismo e a procrastinação, o nosso sistema é exageradamente formalista, criando obstáculos irrazoáveis à apreciação dos recursos e determinando a produção de decisões que, em lugar de aumentarem a probabilidade de acerto e de justiça das que pretendem rever, transformaram o seu julgamento numa verdadeira caixa de surpresas, criadora de situações absolutamente imprevisíveis para as partes e que, a pretexto do excessivo volume de processos, dão pouca atenção às questões fáticas e jurídicas suscitadas e aos argumentos Page 6 dos advogados, procurando cada vez mais encontrar afinidades dos novos casos com outros anteriormente julgados pelo mesmo tribunal ou por tribunais superiores e assim, de forma simplista e absolutamente distante do litígio real, transpor fundamentos destes para aqueles, automatizando os julgamentos.

Desde 1995, sucessivas leis de reforma, a cuja elaboração se dedicaram ilustres juristas, na ânsia de debelar os males decorrentes do aumento do volume de recursos, agravaram ainda mais os defeitos do sistema, especialmente pelo progressivo abandono da colegialidade das decisões recursais e pela crescente invocação da jurisprudência. O sistema de recursos sofre os reflexos de três visões absolutamente deformadas do processo judicial: a dos tribunais superiores, cuja preocupação predominante é com a eliminação da quantidade de processos e de recursos, mesmo com o sacrifício da qualidade e da justiça das decisões; a dos governantes, que se habituaram a utilizar a justiça para procrastinar o cumprimento das obrigações do Estado para com os cidadãos; e a dos próprios jurisdicionados que, quando vencidos, se sentem impelidos a esgotar as vias recursais, porque estas se apresentam como facilmente acessíveis e resultam sempre de algum modo mais vantajosas do que o cumprimento espontâneo das suas obrigações. As reformas até agora implementadas, em regra, não foram capazes de destruir essa cultura demandista por parte do Estado e também dos particulares, tendo sido eficazes apenas na instituição de filtros de acesso às instâncias recursais, que somente beneficiam a consecução das metas quantitativas dos tribunais superiores.

1 - A noção de recurso, suas origens e evolução

A noção de recurso, ou seja, de um remédio que possibilite o reexame de decisões judiciais desfavoráveis, nasceu junto com a racionalidade humana, pois, quando alguém considerava uma decisão injusta, procurava revê-la 1. Muito antes do surgimento de institutos, como a appellatio romana, que moldaram os recursos que atualmente conhecemos, a Antiguidade Clássica conheceu inúmeros outros remédios que, ainda que Page 7 não reformassem ou anulassem as decisões judiciais, possibilitavam ao vencido subtrair-se dos seus efeitos.

Entre os estudiosos do Processo Civil, prepondera a opinião daqueles que consideram o recurso um direito fundamental inerente à natureza humana. Alcides de Mendonça Lima, por exemplo, assevera que a idéia de recurso deve ter nascido com o próprio homem, quando alguém, pela primeira vez, se sentiu vítima de uma injustiça perpetrada pelo julgador ao qual submeteu a sua causa. Sua origem se perde nas épocas mais remotas, no Antigo Testamento, na Grécia e no Egito. As fontes históricas serviriam para demonstrar que a idéia de recurso se acha arraigada no espírito humano, "como uma tendência inata e irresistível, como uma decorrência lógica do próprio sentimento de salvaguarda a um direito já ameaçado ou violado em uma decisão". A circunstância de ter sido acolhido em todas as épocas e por todos os povos permite considerá-lo "como inerente à própria personalidade humana" 2. No Código de Hamurabi (art. 5º), a revisão do erro judiciário determinava sanção pecuniária ao juiz e proibição de exercer a função em outro processo 3.

No Direito romano primitivo, não existiam propriamente recursos, porque as decisões judiciais eram proferidas por juízes privados. Era a chamada ordo judiciorum privatorum. O caráter tipicamente privado do processo em instância única na sociedade romana primitiva rejeitava a idéia de recurso. Havia remédios ou ações autônomas contra a sentença ou contra decretos dos magistrados, de caráter eminentemente inibitório (infitiatio iudicati, revocatio in duplum, restitutio in integrum, intercessio), mas não propriamente recursos como os conhecemos hoje, que substituem uma decisão judicial por outra 4.

A nossa apelação começou a esboçar-se no processo penal e foi estendida ao processo civil no tempo do Imperador Augusto, com a delegação do poder de revisão das Page 8 sentenças a certos magistrados. A hierarquia definiu os diversos graus da apelação, sempre perante um magistrado superior contra a sentença de magistrado inferior 5.

Se a instituição de remédios para propiciar o reexame de decisões judiciais atendia a uma aspiração humana, a sua implementação, desde a Antiguidade até os nossos dias, sempre foi fortemente influenciada pelos interesses políticos dos governantes.

Quando Roma se tornou um Império, pouco antes da Era Cristã, nasceram os primeiros recursos de que a literatura processual tem conhecimento. Isso porque o Imperador precisava ter instrumentos para assegurar o primado de suas leis e de seu poder político sobre toda a extensão territorial que compunha seu Império. Era através dos recursos que se podia controlar a aplicação das leis em todos os recantos do Império; assim, a violação àquelas deveria ser remediada pelo provimento dos recursos dirigidos aos prepostos do Imperador ou, em última instância, a ele próprio.

O sistema recursal, além de ter nascido para assegurar o poder político do Império Romano, possuía outra função: fixar nos povos conquistados a idéia de que a dominação romana era positiva, na medida em que, descontentes com o julgamento proferido pelas justiças locais, eles poderiam dirigir-se ao juiz romano por meio dos recursos. Procuravase, noutras palavras, vender a idéia de que a autoridade romana fazia justiça melhor do que a dos povos conquistados.

Vittorio Scialoja, em seu Processo Civil Romano, observa que a introdução da apelação ocorreu, sem dúvida, mais do que em decorrência de uma específica compreensão do ordenamento judiciário, por uma imposição da hierarquia administrativa 6. A apelação pressupunha uma ordem hierárquica, em que um juiz superior revia a decisão de um inferior.

Posteriormente, surgiu, ainda no Império Romano, a supplicatio, súplica, que era um pedido dirigido ao soberano para que este, em face de uma sentença injusta proferida Page 9 pelo mais alto magistrado romano, o prefeito do pretório, concedesse ao súdito um novo julgamento.

A posterior dominação bárbara fez o direito romano defrontar-se com a realidade da justiça exercida pelas assembléias populares, nas cidades germânicas. Na Justiça germânica, não havia recurso, prevalecendo os julgamentos populares; acima da comunidade, não havia reinos nem impérios, e, portanto, a sua decisão era única e eficaz para todos, inclusive para aqueles que não haviam litigado, inexistindo recursos.

Quando se fundem, a partir do século XII, os direitos germânico e romano, com grande influência do direito canônico 7, ressurgem os recursos romanos, ao lado dos quais aparecem, já originários dos costumes medievais, alguns outros recursos contra decisões interlocutórias, que haviam sido proibidos por Justiniano, como as queixas, que não suspendiam o processo e somente eram cabíveis para decisões capazes de gerar prejuízos graves ou irreparáveis às partes.

No Condado Portucalense, a miscigenação de institutos do Direito visigótico, canônico e costumeiro não reconhecia o direito de revisão das sentenças 8. Somente no início do século XIII, uma lei de D. Afonso II admite pela primeira vez a possibilidade de a...

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