A Prisão em Flagrante no Projeto de Reforma Total do Código de Processo Penal: o que Muda e o que Ainda Pode Mudar para Garantir Maior Eficácia aos Direitos Fundamentais do Imputado

AutorCleopas Isaías Santos
CargoMestrando em Ciências Criminais (PUC/RS). Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu (Universidade de Coimbra). Professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais (Faculdade São Luís/MA)
Páginas38-45

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Dentre as transformações ocorridas no âmbito da dogmática jurídica, a chamada constitucionalização do direito consolidou um dos mais significativos processos de reestru-turação dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, ao reconhecer, como princípio interpretativo, a supremacia das Cartas Constitucionais, em razão da qual toda a ordem jurídica tornou-se aberta à irradiação ou filtragem das normas constitucionais1 e, de modo particular, dos direitos fundamentais por elas garantidos. Desta forma, não é possível desconhecer estes influxos também no âmbito do processo penal, especialmente porque é nesta esfera que esses direitos podem ser ofendidos ou ameaça-

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dos de lesão de forma mais potencializada.

Como exemplo dessa possibilidade, tem-se a prisão em flagrante, que, tal como configurada, mostra-se, sem sombra de dúvida, dentre todas as formas de prisão, como a que exige maior cuidado por parte dos operadores do direito e mesmo do legislador, pois é a única (civil)2 que não depende de prévia autorização judicial3, sendo, como regra, formalizada pela autoridade policial, o que representa, de certa forma, uma flexibilização dos direitos fundamentais do imputado. Além disso, seu fundamento é a visibilidade, a evidência da prática de um injusto típico, especificamente na hipótese prevista no art. 538, I do Projeto de Lei do Senado (PLS) 156/09 ("está cometendo a infra-ção penal"). Contudo, este fundamento sempre foi precário, e esta precariedade tem sido demonstrada com mais rigor pela neuroci-ência, especialmente em virtude do seu caráter alucinógeno4 e das variadas influências que o observador sofre no instante em que aquela situação ocorre5. Essas e outras razões justificam a investigação desta modalidade prisional com o olhar interessado e inarredável dos direitos fundamentais. Ei-la, pois.

O PLS 156/09, elaborado por uma comissão de juristas6, sob a presidência do ministro Hamilton Carvalhido, com o fim de realizar a tão desejada reforma total do CPP, reservou, com acerto, um livro próprio (Livro III), com mais de cem artigos (art. 513 a art. 626), para tratar das medidas cautelares, provocando várias alterações nas já existentes e trazendo novas previsões, entre as quais a referência expressa ao princípio da tipicidade das medidas cautelares (art. 514)7, cujas principais consequências são a inexistência das "medidas cautelares inominadas" e do assim cha-mado "poder geral de cautela" do juiz, como, aliás, já reivindicava a melhor doutrina8.

Nesta oportunidade, entretanto, serão analisadas sumariamente apenas as principais mudanças introduzidas pelo PLS 156/09 na prisão em flagrante, a qual, inobs-tante sua natureza de medida pré-cautelar9, foi tratada, tal como a preventiva e a temporária, dentro do referido Livro III (Das Medidas Cautelares), mais especificamente do art. 537 ao art. 543, inserida, portanto, no capítulo da prisão provisória (Capítulo I); e, ao final, serão propostas alterações no PLS 156/09, referentes à mesma matéria, na tentativa de se conciliar a tensão entre a eficácia da investigação criminal e a garantia dos direitos fundamentais do imputado.

2. Principais mudanças
2.1. Dever de esclarecimento dos direitos e garantias do imputado: ênfase aos direitos ao silêncio e a assistência de advogado ou defensor público

Não obstante a previsão na CF/88 (art. 5o, LXIII) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)10, ratificada pelo Brasil, através do Decreto 678/92, o PLS 156/09 estabelece (art. 534) o dever de informação ao preso, no ato da prisão, de um rol de direitos que ele possui.

Esta exigência reiterada justifica-se especialmente pela falta de tradição da doutrina e jurisprudência pátrias de conformarem as regras infraconstitucionais à Constituição e, principalmente, aos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil11. Porém, se dúvidas ainda existiam acerca da força normativa daqueles estatutos, bem como sobre a necessidade de obediência a eles, o Projeto buscou saná-las, ao prever, expressamente, já no artigo inaugural, que "o processo penal reger-se-á, em todo o território nacional, por este Código, bem como pelos princípios fundamentais constitucionais e pelas normas previstas em tratados e convenções internacionais dos quais seja parte a República Federativa do Brasil".

Desta forma, o preso deverá ser informado dos seguintes direitos (art. 534), entre outros: a) permanecer em silêncio; b) saber a identificação dos responsáveis por sua prisão; c) receber um exemplar do mandado judicial, salvo em flagrante delito, quando deverá receber a nota de culpa; d) fazer contato telefônico com familiar ou outra pessoa indicada, tão logo seja apresentado à autoridade policial; e) ser assistido por um advogado de sua livre escolha ou defensor público; f) ser recolhido em local separado dos presos com condenação definitiva. Além disso, antes do seu interrogatório, inclusive no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante, o investigado deverá ainda ser informado (art. 65): a) do inteiro teor dos fatos que lhe são imputados; b) de que poderá entrevistar-se com seu defensor, em local reservado; c) de que suas declarações poderão eventualmente ser utilizadas em desfavor de sua defesa; d) do seu direito de permanecer em silêncio; de que seu silêncio não importará confissão nem poderá ser interpretado em prejuízo de sua defesa.

O parágrafo único do art. 534, antes referido, determina ainda que as informações previstas nos incisos I (direito ao silêncio)12 e V (assistência de advogado ou defensor público)13 deverão constar em todos os atos de investigação e de instrução criminal que requeiram a presença do investigado ou acusado, sob pena de nulidade. Com isso, fica claro que o Projeto teve

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maior preocupação com o direito de defesa do imputado (pessoal negativa e técnica), razão pela qual serão feitas algumas considerações sobre esses direitos.

Embora com previsão na Constituição e em tratados e convenções internacionais14, como referido, as raízes do direito ao silêncio, ou direito de permanecer calado, segundo Lauria Tucci, "remontam a vários séculos passados, com mais amplo desenvolvimento no ius commune e no processo penal canônico, em que se assentava no regramento 'nemo tenetur prodere seipsum, quia nemo tenetur dete-gere turpitudinem suam'”15. E é a partir dessa identificação histórica que o citado autor defende que este direito consiste tanto na proteção ao silêncio do imputado quanto na defesa contra sua autoincrimina-ção16, ou contra a obrigatoriedade de produção de provas contra si mesmo.

Este posicionamento, entretanto, não é pacífico. Entendendo que o direito ao silêncio não implica o de não autoincriminação, por todos, está Sérgio Moro, o qual, em interessante artigo sobre a colheita compulsória de material biológico, conclui, após densa argumentação, que "inexiste no Direito Brasileiro, e em geral no Direito Comparado, um direito genérico de não produzir prova contra si mesmo, motivo pelo qual ele não constitui óbice válido à colheita compulsória de material biológico para exame genético em casos criminais"17.

Compreende-se que cabe razão à primeira doutrina, pois, do contrário, admitir-se-ia que o direito ao silêncio só tem aplicação nos casos de formação de provas a partir da oitiva do imputado, ou seja, numa perspectiva de silêncio apenas como a recusa em pronunciar palavras, calar-se, emudecer, concepção que se mostraria extrema-mente reducionista e contrária ao princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Desta forma, entende-se que, além da mencionada faceta, o direito ao silêncio possui outra, decorrente da primeira, qual seja, a da não obrigatoriedade de o imputado participar da constituição de provas que lhe prejudiquem, embora possa fazê-lo espontaneamente, ou possam ser produzidas sem a sua participação.

Neste sentido, posiciona-se Aury Lopes Jr., ao asseverar que

"O direito ao silêncio é muito mais amplo e inscreve-se na dimensão do princípio do nemo tenetur se detegere. Conjugando-se com a presunção constitucional de inocência, bem como com a necessária à matriz inquisitória, é elementar que o réu não pode ser compelido a declarar ou mesmo participar de qualquer ativi-dade que possa incriminá-lo ou prejudicar sua defesa. Mais, frise-se: a recusa não autoriza qualquer presunção ou mesmo indício de culpa."18 (grifos no original)

E conclui o autor: "destarte, o imputado não pode ser compelido a participar de acareações, recons-tituições, fornecer material para realização de exames periciais (exame de sangue, DNA, escrita etc.) etc."19

Quanto ao direito de defesa técnica, este consiste na irrecusável assistência do imputado por um advogado, público ou não, em todas as fases do procedimento, desde a pré-processual até o fim da execução da pena.

Embora a atual disposição do CPP (art. 306, § Io) não trate com clareza, o que pode conduzir o intérprete e aplicador do direito à equivocada compreensão de que é dispensável a assistência de defensor técnico no momento da lavra-tura do auto de prisão em flagrante, o Projeto em comento sana este problema, senão vejamos.

Já no art. 3o do PLS 156/09, fica clara a opção do legislador pela aplicação desse direito em comento, quando preve que "todo processo realizar-se-á sob o contraditório e a ampla...

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