Privatizações e relação entre interesses públicos primários e secundários - as alterações na legislação societária brasileira

AutorOtávio Yazbek
Páginas100-110

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I - Introdução

Em todo o mundo os processos de privatização geraram imensos desafios de ordem jurídica e institucional. Tanto as estruturas próprias do Estado social quanto aquelas herdadas do modelo de Estado liberal clássico, que são sobretudo garanti-doras de direitos, não se mostraram de todo adequadas às peculiaridades de tais processos, impondo-se uma série de transformações nos regimes jurídicos vigentes para determinadas atividades.

O termo privatização será tomado, para os fins deste ensaio e sem maiores questionamentos, como a transferência do poder de controle de empresas estatais (em-presas públicas e sociedades de economia mista) ou de bens públicos para agentes privados.2 Não é relevante, tendo em vista os fins pretendidos, indagar quanto à natureza da atividade económica desenvolvida pela empresa pri vatizada, se serviço público ou atividade económica em sentido estrito.

O objetivo mais imediato deste trabalho é a análise de algumas das alterações carreadas à legislação acionária brasileira, em especial por força da Lei 9.457, de 5.5.1997. Não serão discutidas em grandes detalhes tais mudanças, mas muito mais as suas motivações. O objeto deste ensaio é, pois, a chamada política do direito.

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II - Os fins das privatizações e o fortalecimento do mercado acionário

No Brasil, a Lei 9.491, de 9.9.1997, que atualizou a Lei 8.031/90, instituidora do Programa Nacional de Desestatização, enumera, nos incisos do seu art. 1°, os ob-jetivos fundamentais deste programa, que são: "I - Reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; II - Contribuir para a reestruturação económica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida; III - Permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada; IV - Contribuir para a reestruturação económica do setor privado, especialmente para a modernização da infra-estru-tura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos seto-res da economia, inclusive através da concessão de crédito; V - Permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais; VI- Contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa" (grifamos).

Também em outros países as privatizações têm, dentre seus fins, o fortalecimento dos mercados de capitais, procurando-se incentivar o desenvolvimento das atividades empresariais a partir desta forma específica de recurso às poupanças individuais, reputada o mecanismo ideal de financiamento.3 Desta maneira, na maior par-te destes países foram criados mecanismos destinados a atrair pequenos investidores e a estimular a aquisição de parcelas do capital das empresas a serem privatizadas por grupos de funcionários, dentre outras medidas.4

Deve-se destacar, porém, que o fortalecimento dos mercados de capitais ocupa,

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originariamente, um papel de importância secundária dentre as motivações que levaram aos processos de privatização. Sua consideração dá-se apenas em um momento posterior, derivada de uma das consequências naturais da transferência de atividades à iniciativa privada, que é a valorização das estruturas de mercado, como adiante se verá.

Com efeito, o discurso privatizante surge com a ampla crise que, ainda nos anos 70, assolou as finanças públicas de diversos países, acompanhada por uma consequente degeneração na prestação de'servi-ços públicos. Ressurgem, neste quadro, as políticas económicas mais ortodoxas. Desta maneira, os discursos governamentais voltaram-se para questões fiscais e orçamentarias, tendo em vista a necessidade de redução dos déficits públicos e, já posteriormente, de melhoria na prestação dos serviços de utilidade pública. Trata-se de um movimento de reforma do Estado, com a redefinição de suas funções.5

Com a consequente valorização da iniciativa privada, alçada ao papel de principal investidora em setores de infra-estru-tura, adquirem maior importância, dentre outras, as políticas de, promoção da concorrência e eficiência. O mesmo vale para p desenvolvimento dos mercados de capitais. Ocorre que, apesar da relativa uniformidade deste quadro, cada país acabou priorizando alguns aspectos em detrimento de outros.

No Brasil, até em razão da inflação crónica que há muito assolava o país, o problema do déficit público assumiu posição de destaque/associado à defesa da estabilidade da moeda. Desta maneira, a preocupação com o crescimento do mercado de capitais restou em posição secundária, havendo sido priorizadas, nos últimos tempos, medidas nem sempre congruentes com as necessidades deste mercado, ou mesmo prejudiciais, ao seu desenvolvimento, o que explica como as vias efetivamente seguidas e os resulta-dos obtidos acabaram diferindo de forma tão acentuada das intenções declaradas no inc. VI do art. 1°Lei 9.491/97.

Cumpre, neste momento, tecer algumas considerações acerca da Lei 6.404/76, que rege as sociedades por ações, e do seu papel na criação de estruturas institucionais de um mercado de capitais que se pretendeu implantar no país.

III - As bases da legislação societária brasileira

A Lei 6.404, de 15.12.1976, é fruto de um momento histórico bastante característico, estando diretamente relacionada ao modelo económico consolidado no II Plano Nacional de Desenvolvimento (IIPND). Este sistema de planejamento teve suas di-retrizes e prioridades aprovadas pela Lei 6.151, de 4.12.1974, havendo sido fixada sua vigência, inicialmente, para os exercícios de 1975 a 1979. Seu efetivo período de vigência, porém, foi menor do que aquele inicialmente pretendido, uma vez que, quando da própria promulgação do Plano, ocorria um marcado agravamento da situação económica brasileira, tornando inviável a consecução dos objetivos fixados.

Em muitos pontos, o II PND espelhava as discussões da década anterior, quando pareceu de meridiana clareza que o processo de desenvolvimento do Brasil passava pela criação de um sistema financeiro bem estruturado e de um forte mercado de capitais, capazes de financiar o crescimento da atividade empresarial no país. Àquela época, o subdesenvolvimento afigurava-se para muitos, em boa parte, como um problema crónico no processo de "formação de capital". Impunha-se pois, a criação de mecanismos institucionais capazes de sanar tais problemas, estimulando a canalização das poupanças individuais para o financiamen-. to da atividade empresarial.6

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Daí decorre, por exemplo, a legisla-, ção instituidora do Sistema Financeiro Nacional, nomeadamente as Leis 4.595/64 (que dispõe sobre a política e as institui- ções monetárias, bancárias e creditícias, criando o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central), 4.728/65 (que disciplina o mercado de capitais, estabelecendo medidas para o seu desenvolvimento) e 6.385/ 76 (que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários, criando, ainda, a Comissão de Valores Mobiliários-CVM), dentre inúmeros outros diplomas. Impunha-se também,, dentro deste movimento, a reforma da legislação acionária brasileira ante a obsolescência do Decreto-lei 2.627/40, que regulava as sociedades anónimas àquela época.

Depois de longos debates7 foi promulgada á Lei 6.404/76. O novo diploma acionário, integrado naquele quadro mais amplo de reformas institucionais, visava, conforme uma série de artigos publicados pêlos autores do Anteprojeto na imprensa, criar um "modelo de companhia adequado à organização e ao funcionamento da grande empresa privada, requerida pelo estágio atuaída economia brasileira".8

Com á Lei 6.404/76 foi fixado o conceito, ainda hoje vigente, de companhia aberta, com à criação de toda a sistemática de funcionamento das companhias desta natureza, modeladas para a captação de recursos em bolsa. Dentro desta tendência, foram outorgados determinados direitos e garantias aos acionistas minoritários, providências necessárias para a atração de novos investidores e a criação de um mercado acionário forte.

É com este espírito que foram criados, dentre outros institutos, a oferta pública de aquisição de ações, constante dos arts. 254 e 255 da Lei 6.404/76, e a possibilidade de exercício de direito de retirada em caso de tomada de determinadas decisões pela as-sembléia-geral. Tais pontos serão novamente referidos mais adiante.

IV-A Lei 9 457/97

Com o advento do Programa Nacional de Desestatização, algumas daquelas garantias outorgadas aos acionistas minoritários começaram a ser questionadas, em especial por aumentar os custos das priva-tizaçÕes tanto para o Governo como para os principais interessados na aquisição das empresas. Tais questionamentos ganharam destaque com a chegada do momento em que se realizaram as privatizações de empresas dos setores elétrico e de telecomunicações, que precisariam ser submetidas a uma série de operações societárias antes da sua venda.9

Os empecilhos representados por alguns dos direitos outorgados aos acionistas minoritários foram afastados por meio da promulgação da Lei 9.457/97, que alterou diversos dispositivos das Leis 6.404/ 76 e 6.385/76. É verdade que nem todos os dispositivos afetados por esta nova legislação relacionavam-se diretamente às necessidades da desestatização.10 Algumas des-

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tas alterações, porém, atingindo em especial os institutos da oferta pública de...

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