Problemática do art. 515, § 3º, do CPC – extinção do processo sem julgamento do mérito recurso per saltum

AutorJ.E. Carreira Alvim
CargoMembro do TRF-2<sup>ª</sup> Região; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP)
Páginas80-92

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1. Considerações preliminares

O art. 515, que não foi de todo alterado --, mas apenas acrescido de um § 3 º pela Lei n. 10.352/01 --, diz, no seu caput, que a apelação devolve ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada, consagrando o aforismo tantum devolutum quantum appellatum, que se liga, de ordinário, ao poder dispositivo da parte, que informa também o direito recursal.

A regra geral é esta: somente o que tenha sido objeto de impugnação pelo recorrente fica devolvido (remetido) ao tribunal; não o que tenha merecido a sua concordância, ainda que implícita. O que não foi objeto de recurso transita em julgado.

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Registra CRUZ E TUCCI, 1 reportando-se a Barbosa Moreira, 2 que a hipótese consagrada no § 3º do art. 515 não é nova, pois, no direito reinol (Ordenações Filipinas), em que provida a apelação contra sentença terminativa, ao tribunal competia, em vez de mandar “tornar o feito ao juiz de que foi apelado”, ir “por ele em diante e julgá-lo finalmente” (Ord. Filip., L. III, Títu. LXVIII, princ.). Este é o conceito da apelação como novum iudicium, 3 em que se permitia ao tribunal julgar o mérito quando provido o recurso interposto contra sentença definitiva. 4 A orientação do direito filipino (Ordenações Filipinas) era preexcluir a possibilidade de duas apelações numa mesma causa e numa mesma relação processual, possibilidade que, apesar de inerente à sistemática do Código de Processo Civil de 1973, não impede que, em face de determinadas circunstâncias – orientação firme dos tribunais sobre a matéria de direito – possa o tribunal julgar desde logo a lide, como dispõe o novo § 3º do art. 515 desse mesmo Código.

O objetivo destas considerações é lançar luz sobre um tema que tem provocado interpretações as mais diversificadas, chegando-se até mesmo a afirmar que teria a reforma consagrado a possibilidade da reformatio in peius, sem se dar conta que se trata apenas de uma variante do recurso per saltum.

2. Direito intertemporal - Transição entre a velha e a nova lei

Problema dos mais cruciais na transição das velhas para as novas leis se prende à determinação da regra legal aplicável, não havendo na doutrina uniformidade a respeito.

O sistema mais prestigiado pelo direito processual civil é o do isolamento dos atos processuais, segundo o qual a lei nova não atinge os atos processuais já praticados, nem seus efeitos, mas aplica-se aos atos processuais pendentes a seremPage 82praticados. 5 Este sistema tem contado com a adesão da maioria dos processualistas, e foi expressamente consagrado pelo art. 1.211 do CPC. 6

Vê-se, assim, que a norma processual não tem efeito retroativo, provendo para o futuro, ou seja, para atos processuais ainda não realizados ao tempo em que teve início a sua vigência. Os atos anteriores não são atingidos pela nova lei, e, aos processos pendentes, aplica-se a lei nova. 7

Como, em matéria processual, também devem ser respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, o fato de ser o processo uma série coordenada de atos que se desenvolvem no tempo, torna-se delicada a solução dos conflitos temporais de leis processuais. 8

Os atos processuais já concluídos por ocasião da entrada em vigor da lei nova sofrem qualquer influência desta, da mesma forma que os atos processuais a serem praticados depois da sua vigência obedecem às novas disposições. O problema está naqueles atos que transitam das antigas para as novas disposições, porque aí é que surge o problema da lei aplicável. Nesta hipótese, enquadra-se o § 3º do art. 515 do CPC, que se projeta na teoria dos recursos.

Tendo o juiz extinguido o processo sem julgamento do mérito, antes da vigência da Lei n. 10.352/01, ou seja, de 26.03.02, aplica-se o disposto no § 3º do art. 515?

O § 3º do art. 515 é uma regra sobre recurso, pois autoriza o tribunal, nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito, a julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento.

A regra intertemporal sobre recurso --, que é um ato processual complexo, envolvendo atividades tanto do juízo a quo quanto do juízo ad quem -- não conta com a unanimidade da doutrina, havendo pelo menos duas correntes a respeitoPage 83desse intrincado tema: a) uma sustenta que o recurso se rege, inteiramente, pela lei vigente ao tempo da prolação da decisão recorrível, aplicável, assim, ao procedimento recursal; 9 b) outra sustenta que o recurso se rege, quanto ao seu cabimento, pela lei vigente na data da prolação da decisão (lei velha), e, quanto ao procedimento, pela lei em vigor no dia em que tenha sido interposto (lei nova). 10

Em sede jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça 11 vem prestigiando a segunda corrente, entendendo que, se o recurso não foi suprimido, não há razão para que prevaleçam as regras anteriores de procedimento, distinguindo, assim, entre regras de cabimento e regras de procedimento.

No caso do § 3º do art. 515, a solução mais recomendável é a aplicação das novas disposições -- permitindo-se o julgamento do mérito -- a todas as apelações, mesmo as interpostas antes da vigência da Lei n. 10.352/01, segundo as antigas regras, mas que não tenham sido ainda julgadas, por ocasião da entrada em vigor das novas regras.

Essa orientação resulta da própria motivação do acréscimo do § 3º ao art. 515, pois, não teria sentido que duas apelações interpostas de sentenças idênticasmormente as sentenças ditas repetitivas -- uma viesse a ser julgada no mérito, e outra não, pelo simples fato de ter sido proferida antes e depois da vigência da Lei n. 10.352/01. 12

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3. Problemática do art 515, § 3º, CPC – Extinção do processo sem julgamento do mérito e recurso per saltum

A Lei n. 10.352/01 mais não fez que acrescentar um § 3 º no art. 515, para atender a uma situação que, na vigência da lei anterior, não tinha o menor propósito, e já me preocupava, não apenas como doutrinador, mas, sobretudo, como julgador, na minha atividade judicante.

Muitas vezes, a causa se encontrava madura para receber julgamento de mérito, mas o juiz, por faz ou por nefas, resolvia acolher uma preliminar ligada ao processo (pressuposto processual) ou à ação (condições da ação), ou até mesmo uma prescrição de rito (art. 295, IV), e extinguia o processo sem julgamento do mérito. Chegando a apelação ao tribunal, verificava este que tinha todas as condições para julgar de vez o mérito, mas, para não suprimir um grau de jurisdição, 13 via-se na contingência, de anular a sentença, restituindo os autos ao juízo recorrido, a fim de que proferisse julgamento de mérito. Cumpria-se, assim, o formalismo processual.

O preceito em questão foi editado justamente para permitir que situações como estas permitam ao tribunal julgar de imediato o mérito (a lide), sem restituir os autos à inferior instância, mesmo porque, qualquer que seja a decisão lá proferida, a que virá a prevalecer, em havendo recurso (e quase sempre o há), é a decisão do tribunal. Trata-se de mais um ensaio do recurso per saltum, em que prescinde-se da decisão inferior, proferindo o próprio tribunal a decisão da causa.

Tem-se acoimado o § 3º do art. 515 de “ponto mais negativo de toda a reforma processual” (CRUZ E TUCCI), 14 com o que não concordo, nem concordam LUIZ porque o entendimento daquele pode ser diverso da jurisprudência predominante no tribunal, e a prolação da sentença não terá nenhuma utilidade.

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RODRIGUES WAMBIER e TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, 15 que aplaudem a alteração do texto, prevendo a possibilidade de que, sendo o processo extinto sem julgamento de mérito, pelo juízo a quo, sob determinadas condições, afaste a preliminar e decida o mérito.

Afirma também, sem razão, CRUZ E TUCCI que o preceito inscrito no § 3º do art. 515 infringiria o duplo grau de jurisdição,16 estando em contradição com o disposto no art. 520, caput, do CPC, no que é contraditado por LUIZ e TERESA WAMBIER, 17 nestes termos:

“A primeira dúvida que surge, evidentemente, diz respeito à constitucionalidade desse dispositivo.

O intérprete pensa imediatamente na pergunta que e comumente formulada: é o duplo grau de jurisdição princípio constitucional? Salvo engano de nossa parte, esta questão...

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