A problemática dos ganhos de chance promovidos pela recomendação médica em tratamentos sem efeito discernível nos pacientes
Autor | Ricardo Reigada Pereira |
Ocupação do Autor | Advogado, Linklaters LLP |
Páginas | 81-158 |
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A PROBLEMÁTICA DOS GANHOS DE
CHANCE
PROMOVIDOS PELA RECOMENDAÇÃO
MÉDICA EM TRATAMENTOS SEM EFEITO
DISCERNÍVEL NOS PACIENTES1
Ricardo Reigada Pereira(*)
Prólogo: a origem da inquietação” Every experience is a paradox in that it means
to be absolute, and yet is relative; in that it somehow always goes beyond itself and yet
never escapes itself”
(T. S. Eliot, in Eliot’s dotoral dissertation in philosophy – 1916)
E
StE tExtO
tem origem numa reexão sobre artigos de natureza médica
relativos a certo tipo de tratamentos ministrados a pacientes com câncer.
Em tais artigos sublinha-se, com particular ênfase, a falta de ecácia ou a
desnecessidade de muitos desses tratamentos no âmbito de certas patolo-
gias cancerígenas, concluindo-se pela inexistência de qualquer efeito discer-
nível nos pacientes que são sujeitos a tais procedimentos terapêuticos.
Em concreto, há duas realidades distintas que pela sua reiterada e cres-
cente utilização têm suscitado particular perplexidade. Por um lado, vários es-
tudos recentes vieram atestar a inecácia da quimioterapia em determinados
tipos de câncer. Por outro lado, diversos outros estudos vieram questionar
1 O presente texto corresponde, na sua essência, ao relatório apresentado na disciplina de
Economia Política – dedicada ao tema da Análise Econômica da Responsabilidade Médi-
ca – no âmbito do Mestrado Cientíco em Ciências Jurídico-Econômicas na Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, sob regência do Professor Doutor Fernando Araújo.
(*) Advogado, Linklaters LLP.
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RICARDO PINHA ALONSO / LUIZ FERNANDO KAZMIERCZAK (
Orgs.)
a razoabilidade dos tratamentos que comumente resultam do diagnóstico
do carcinoma ductal “in situ” (CDIS), um câncer benigno da mama geralmen-
te detectável apenas através de mamograa. Acontece que, não obstante
estes contributos cientícos, a comunidade médica continua amplamente
a proceder à prescrição e administração dos tratamentos em questão. Esta
circunstância parece assim representar, de um ponto de vista terapêutico,
um paradoxo.
Um contexto médico deste tipo convoca pois, de forma imediata, o
problema dos custos que o tratamento implica para o paciente. Custos es-
ses – monetários e não monetários – especialmente signicativos no caso
dos tratamentos em questão. Assim, a acrescer à respectiva falta de ecácia
dos tratamentos há igualmente que sublinhar os custos – diretos e indiretos
– em que incorre o paciente, incluindo o grau de toxicidade dos mesmos.
A prescrição médica desses tratamentos tem nessa medida de ser con-
frontada com o elenco de razões que pode explicar, em abstrato, a circuns-
tância de os mesmos continuarem a ser objeto de recomendação médica.
Realidade particularmente estranha face à não evidência cientíca – muito
ao contrário – da ecácia dos mesmos. Cumpre assim perguntar, sem mais,
o que pode então explicar que existam cuidados médicos desnecessários ou
desapropriados a serem tão amplamente administrados pelos prossionais
de saúde?
É exatamente esta contradição – enquanto genuína contradição “tera-
pêutica” – e suas causas que serão objeto de análise neste texto.
4.1. Introdução: O ganho de
chance
terapêutico e a indução da procura
“Le possible est donc le mirage du présent dans le passe”
Bergson, “Le possible et le réel”, in La pensée et le mouvant (1934)
A justicação médica para a necessidade de um determinado trata-
mento, incluindo o direcionado às patologias cancerígenas, assenta nos ga-
nhos de chance que o mesmo visa tornar possível. Ganhos de chance que
consistem (i) na prevenção de uma patologia, ou (ii) na diminuição de uma
patologia já diagnosticada ou, nalmente, (iii) na diminuição da perda de
utilidade evitada devida ao prolongamento da vida ou de uma melhor saúde
durante o tempo de vida restante.
Tratamentos que não gozem de qualquer tipo de efeito discernível no
paciente – isto é, que não tenham sido objeto de qualquer conrmação da
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EStUDOS CONtEMPORâNEOS DE BIOétICA E BIODIREItO 83
respectiva ecácia na evidência empírica médica – não podem prometer
cienticamente qualquer ganho de chance. Quanto a eles há, isso sim, a cer-
teza de um custo certo no presente (e potencialmente no futuro). No contex-
to de incerteza que domina todo o setor dos cuidados de saúde esta é talvez,
sem mais, a única certeza do paciente. Em suma, estamos aqui perante uma
tipologia de casos onde se revela agrante a desnecessidade do recurso ge-
neralizado (àqueles) cuidados médicos.
A natureza especialmente problemática deste tipo de situações vem
desde logo sublinhada no texto que é habitualmente identicado como es-
tando na origem da disciplina da economia de saúde, o artigo de 1963 de
Kenneth Arrow2. Na realidade, logo aí se armava, ainda que no contexto
da problemática dos seguros de saúde, que “(…) medical care will always be
undertaken in any case in which the expected utility, taking account of the probabilities,
exceeds the expected medical costs”3.
A recomendação médica de tratamentos relativamente aos quais ne-
nhum ganho de chance tenha sido cienticamente identicado – ou seja, em
que toda a evidência médica disponível testemunha no sentido do efeito
não discernível do tratamento no paciente – é pela sua natureza suscetível
de ser enquadrado pelo instituto da responsabilidade civil. Em Portugal, a
responsabilização civil deste tipo de condutas surge prevista no artigo 485º,
n. 2 do Código Civil.
Acontece, no entanto, que certos tratamentos direcionados para deter-
minadas patologias cancerígenas continuam a ser amplamente recomenda-
dos, isto não obstante a inexistência de evidência empírica da sua ecácia e,
em certa medida, do próprio efeito preventivo da responsabilidade civil. A
explicação estaria, a priori, na matriz e nas características próprias do setor
da saúde4, o que tornaria este setor mais suscetível ao surgimento deste tipo
de situações.
Nesses termos, (i) a incerteza e sua relação com o bem saúde, (ii) a
assimetria informativa entre os agentes, (iii) o papel das instituições sem
ns lucrativos, (iv) os juízos éticos que muitas das posições neste domínio
reetem, (v) as externalidades que resultam das patologias e dos problemas
de apropriação na produção da informação, ou (vi) o papel do Estado no
setor criariam, para o efeito, um ambiente propício à emergência de alguns
fenômenos peculiares em termos econômicos. Aspectos que têm impacto
2 Arrow, K (1963), 941-973.
3 Arrow, K (1963), 965.
4 Arrow, K (1963), 948-954.
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