Procedimento Arbitral, Hipossufi ciência e Acesso à Justiça

AutorHelena Bimonti - Augusto Lewin
CargoGerente jurídica, pós-graduada em Processo Civil, mestranda em Direito Civil e professora assistente (PUC-SP) - Procurador jurídico concursado no Poder Legislativo de Taboão da Serra, atualmente exerce o cargo de confi ança de Procurador Geral Municipal
Páginas30-39

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I Introdução

A tualmente a opção pela arbitragem tem se destacado nas mais variadas disputas que envolvem direitos patrimoniais disponíveis, na medida em que se observa uma crescente demanda de discussões contratuais e busca de reparação de danos, com a consequente saturação do Poder Judiciário.

O procedimento, contudo, embora praticado há muito tempo pela humanidade, recebeu atenção legislativa apenas recentemente, razão pela qual nem sempre se vê livre de questionamentos.

Um dos pontos controversos, de alta relevância, diz respeito à possibilidade (ou não) de utilização da jurisdição estatal como meio de garantir o acesso à justiça pela parte que, por motivos super-venientes ao compromisso arbitral, se tornou hipossuficiente, ao não ter condições de arcar com os custos inerentes à arbitragem.

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O estudo do tema se mostra essencial, na medida em que ainda há lacuna no direito sobre o assunto, que envolve a colisão de princípios fundamentais do ordenamento jurídico: a segurança jurídica da parte que optou pela arbitragem versus o acesso à justiça pela parte hipossu-ficiente (por motivos alheios à sua vontade).

Em outras palavras: o aceite da jurisdição estatal pode afetar a parte contrária, que não tem por que ver seu direito de apreciação arbitral tolhido por conta da hipossu-ficiência da parte. Por outro lado, o não aceite pode mitigar o direito da parte hipossuficiente ao acesso à justiça, sem que haja culpa sua.

Não se pretende fazer uma panaceia sobre o tema no presente artigo; o que se busca é trabalhar o problema atualmente constatado e sugerir medidas que, ao menos au-xiliem, ainda que superficialmen-te, na compreensão de cada caso concreto, e na tomada de decisões futuras pelo Judiciário diante do problema apontado.

Em um primeiro momento, será exposto o conceito do que se entende por meios alternativos de soluções de confiitos, bem como apresentada a evolução histórica, de modo a demonstrar a antiguidade da adoção a estas práticas, que remonta há séculos.

Posteriormente, após a apresentação de alguns dos principais meios atualmente utilizados, restringir-se-á o estudo apenas à arbitragem, ao se analisar brevemente os seus elementos constitutivos, para em seguida demonstrar as vantagens de sua utilização.

Por fim, se adentrará no proble-ma acima referido, com aprofundamento do estudo acerca do tema, e das possíveis soluções e impactos de cada uma em nosso ordenamen-to jurídico, para ao final ser apre-sentada a conclusão dos autores.

II Meios alternativos de solução de confiitos

É indiscutível que o homem nasceu para viver em sociedade, ao se completar com outros de sua espécie. Contudo, como consequência da vida em sociedade, surgem naturalmente os confiitos, sejam eles individuais, coletivos ou difusos.

Ao longo do tempo, a humani-dade continuamente se preocupou em aperfeiçoar as maneiras de pa-cificação desses confiitos: inicial-mente a forma aceita de se fazer justiça, baseava-se na conhecida Lei de Talião ("olho por olho, dente por dente"), em que a vingança era proporcional ao dano, e feita pelas próprias mãos dos atingidos.

Em um segundo momento, o modelo de autotutela1 foi substituído pela heterocomposição, na qual a vítima se via ressarcida pela indeni-zação fixada por um árbitro escolhi-dos pelas partes. Foi neste momento que o Estado passou a intervir nas relações entre particulares, obrigando a adoção desta espécie de arbitragem quando as partes não se compusessem sozinhas, inclusive ao indicar o árbitro, se necessário.

O estabelecimento do juízo estatal, por sua vez, se deu quando os magistrados da Roma antiga chamaram para si a responsabilidade de solucionar litígios "em nome do Estado". Surgiu então a jurisdição em sua feição clássica, em que há uma atuação estatal soberana, ao proferir decisão dotada de coerção. Desde então, as soluções de con-fiitos vieram sendo submetidas ao poder estatal.

Nada obstante, há nos dias atuais, um cediço descompasso entre o instrumento processual e a célere e segura prestação da tutela por parte do Estado-juiz, o que se deve a inúmeras razões.

Cite-se, como exemplo, o qua-dro diminuto e insuficiente de servidores, que além de ocasionar a morosidade do andamento processual, implica qualidade das decisões, proferidas sem a análise adequada do caso concreto.

A este respeito, Ovídio A. Baptista da Silva bem discorre:

Para quem visualiza o sistema pela perspectiva de um operador forense, seu funcionamento não se mostra apenas insatisfatório. Mostra-se assustador. Como era de supor, a extraordinária litigiosidade que caracteriza nosso tempo, obriga os magistrados a padronizarem suas decisões, praticando ficom maior ou menor vocação para o normativismo abstra-to fiuma jurisdição "pasteurizada", sem compromisso com o "caso" 2 .

Ainda, deve-se atentar para o costume litigante do ser humano, que se acentua mais a cada dia. A sociedade se mostra mais questionadora, o que não é ruim até certo ponto. Contudo, o problema surge quando isto descamba para uma série de demandas desmotivadas.

É crescente o uso do meio processual e da máquina judiciária para discussões óbvias e desnecessárias, em que por vezes sequer existiram efetivos danos (é impossível não fazer menção à famosa "indústria do dano moral").

Há ainda diversos outros fatores que contribuem com a famigerada crise do Poder Judiciário, como o intuito protelatório da grande maioria dos litigantes, que abarrotam os tribunais com recur-sos manifestamente infundados.

Não se pretende, contudo, esgotar as causas do problema no presente estudo, mas atentar pura e simplesmente para sua existência, pois em razão dela surgiu a necessidade de se procurar vias alternativas de soluções, que não passassem pela judicial.

Vale dizer, foi necessário buscar novos rumos que pudessem, facultativamente, ser percorridos pelos jurisdicionados, para obter

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soluções mais céleres e adequadas dos seus problemas, e que colocassem o direito como algo não tão litigioso.

Surgem então, dentro deste contexto, os meios alternativos de solução de confiitos, cuja ex-pressão traduz a inglesa "alternative dispute resolution", criada no sistema norte-americano, em que há uma utilização bem mais intensa.

Popularmente, são formas de resolução de confiitos não impos-tas pelo Poder Judiciário, o qual pode até participar do procedi-mento, mas não da decisão final.

A classificação se dá entre meios autocompositivos e heterocompositivos: os primeiros são aqueles em que as próprias partes envolvidas chegam a um consenso de maneira independente; e os segundos, aqueles em que há a presença de um terceiro imparcial (que não um juiz estatal) que auxilia na busca do consenso.

Ainda que a decisão final não seja dada por um magistrado, tem havido certa preocupação do Poder Judiciário (e dos demais poderes) com o incentivo às soluções alternativas de confiitos, que em nada diminuem o prestígio estatal, mas tão somente auxiliam na diminuição do número de litígios em andamento nos tribunais.

O Conselho Nacional de Jus-tiça, para exemplificar, editou em 2010 a Resolução 125, que implementou a política judiciária nacional com vistas à boa qualidade dos serviços e à disseminação da cultura de pacificação social, ao determinar a criação, pelos tribunais, de "núcleos permanentes de métodos consensuais de solução de confiitos".

Na mesma linha, o novo Código de Processo Civil de 2015 inovou, ao prever a mesma responsabilidade em seus artigos 3º e 165º3. Por fim, a reforma le-gislativa alterou substancialmente em 2015 a Lei de Arbitragem (9.307/96). No mesmo ano ainda foi promulgada a Lei de Mediação (13.140/15). É notável, portanto, a atenção que o tema vem a receber do próprio poder público.

Não há como se elencar todos os métodos alternativos em um parágrafo, posto que eles não se restringem a um rol taxativo; muito pelo contrário, é plenamente possível a criação, pelas partes, de um procedimento próprio, com regras por elas estabelecidas.

Há, contudo, aqueles que têm ocupado espaço maior de utilização e divulgação, como, por exemplo, mediação, conciliação, dispute boards. O foco do presente artigo é o procedimento de arbitragem, o qual, pelas suas características, carrega consigo inúmeras vantagens, que serão melhores analisadas no tópico seguinte.

III Arbitragem - Breve considerações

Como mencionado anterior-mente, a arbitragem, na prática, é tão remota quanto a própria humanidade: há notícias da utilização tanto na Roma antiga quanto na mitologia grega4.

Nas palavras de Francisco J. Cahali, equivale a "um instituto contemporâneo às relações so-ciais, através do qual as pessoas indicam um terceiro imparcial para resolver seus confiitos"5.

Contudo, em que pese a prá-tica ser antiga, ficou adormecida durante anos, com o monopólio estatal das decisões, razão pela qual o procedimento hoje ainda se encontra em amadurecimento.

Legalmente pode-se dizer que já era permitido na própria legislação civil (artigos 1.037 a 1.048 do revogado Código Civil de 1916), mas veio em boa hora a lei especial acerca do tema (Lei 9.307/96); que desde então passou a ser difundido na realidade jurí-dica brasileira, e foi oficialmente autorizado nas alterações legais posteriores6.

No cenário atual, o Brasil já ocupa a liderança na utilização de arbitragem entre os países da América Latina, e, globalmente considerado, ocupa a 4ª posição7.

Os motivos para esse crescimento são as diversas vantagens propiciadas às partes, que, segundo Marcus Sherman, "incluem a celeridade, a economia, o conhe-cimento específico do prolator da decisão, a privacidade, a maior informalidade e a definitividade da decisão sem...

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