Produção Antecipada de Provas

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas2566-2578

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1. Nota introdutória

As normas processuais não apenas distribuem, entre os litigantes, a carga da prova quanto aos fatos que alegarem (CLT, art. 818), como fixa o momento e o lugar em que as provas devem ser produzidas. Daí havermos sustentado a existência de uma disciplina probatória, imposta por lei, a fim de evitar que as partes se ponham a produzir provas quando e da forma como bem entenderem, instaurando, com isso, um tumulto no procedimento.

Tais momentos e lugares, como é certo, variarão segundo a natureza do fato probando e o correspondente meio a ser utilizado.

Essa disciplina legal quanto à produção da prova, contudo, só encontra razões lógicas para a sua atuação prática quando se tratar de processo já em curso, não fazendo sentido, pois, quando for o caso de processo cautelar de antecipação de prova, onde, principalmente, o que se antecipa é o momento em que a prova deveria ser obtida.

Diversos são os motivos legalmente invocáveis pela parte para solicitar a antecipação do momento de elaboração da prova: as testemunhas (ou o litigante contrário) que se encontram acometidas de grave enfermidade ou que estão na iminência de se ausentar (da comarca, do País), em caráter definitivo ou por tempo excessivamente prolongado, de tal modo que a ter de aguardar o instante oportuno para ouvi-las, no processo principal, poderia dar-se de já se encontrarem mortas ou ausentes. É de convir que, nesta última hipótese, o interrogatório da parte adversa ou a inquirição das testemunhas poderia ser feita mediante carta precatória ou rogatória, segundo a ausência fosse da comarca ou do País; o procedimento moroso e embaraçante que para isso deveria ser adotado (máxime quando a ausência for do País), todavia, recomenda a utilização da medida cautelar de antecipação da prova.

Em outras situações, como a de exame pericial tendente a apurar a existência, ou não, de insalubridade ou de periculosidade, a necessidade da antecipação da prova pode estar relacionada ao fato de o estabelecimento a ser examinado pelo perito encontrar-se em vias de ser desativado ou submetido a uma profunda reestruturação, de modo que a aguardar-se o instante oportuno, no processo principal, para obter-se a prova, poderia conduzir a uma frustração dos objetivos do autor, porquanto desativado ou reestruturado o estabelecimento já não seria possível verificar a presença de supostos agentes insalubres ou perigosos — cabendo ao juiz, em consequência, nessa ocasião, indeferir o requerimento apresentado pelo autor, diante da manifesta impraticabilidade do exame pericial pretendido (CPC, art. 420, parágrafo único, III).

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Sempre, portanto, que a parte julgar imprescindível produzir antecipadamente a prova de que necessitará para fundar as suas pretensões no processo principal, deverá valer-se do procedimento acautelatório traçado pelos arts. 846 a 851 do CPC, desde que presentes os pressupostos da aparência de bom direito e do perigo na demora.

Quando a antecipação da prova é requerida no curso do processo principal, diz-se que é incidental (CPC, art. 847); vindo a ser impetrada antes do ajuizamento da ação de mérito, terá feição essencialmente “preparatória” (idem). Em ambos os casos, porém, ela não perderá o seu caráter de providência acautelatória típica, dotada de procedimento específico.

Ao tempo em que estava a viger o CPC de 1939, a doutrina denominava de ad perpetuam rei memoriam as provas produzidas antecipadamente, pois a sua finalidade era (como hoje ainda é) perpetuar, conservar o meio de prova de que a parte se utilizaria com vistas ao processo principal, já em curso ou a ser instaurado.

2. Escorço histórico O direito estrangeiro

A origem da prova ad perpetuam remonta ao direito romano. Extrai-se essa conclusão pela leitura das “Pandectas”, particularmente do Fr. 40 D. Ad Legem Aquiliam (IX, 2) e Fr. 3, § 5.º, D. De Carvoniano edicto (XXXVII, 10).

Assinala Carlo Lessona que na Novela 90, Capítulo IX, se localiza a verdadeira demonstração da existência da prova para futura memória, embora tendo como pressuposto a lesão já configurada do direito, arrematando o ilustre pensador: “aqui temos, verdadeira e precisamente, a prova para futura memória (...) e, como se vê da premissa de Justiniano, ela teria sido criada pela prática judiciária, que o imperador se limitou a consagrar e tornar real” (Trattato delle prove in matéria civile. 1916, v. 4, n. 365).

De maneira algo generalizada, o direito estrangeiro moderno — atendida a peculiari-dade da legislação de cada país — prevê essa modalidade de prova, como ocorre em Portugal, Alemanha, Áustria, Itália, Espanha, Argentina, Colômbia, sem embargo de outros.

A prova ad perpetuam também estava no texto das antigas Ordenações reinóis portuguesas; ilustremos com o que dispunham, acerca do assunto, as Afonsinas: “E se o auctor, antes da demanda começada, requerer ao Julgador, que lhe sejam perguntadas algumas testemunhas sobre a cousa, que entende demandar, alegando que são muito velhas, ou enfermas de grande enfermidade, ou estão aviadas para se partir para fóra do reino, e que seus ditos têm cerrados para os dar em ajuda de sua prova, e se abrirem e publicarem ao tempo, que com direito se deva fazer, manda-la-ás o Julgador perguntar, sendo ele primeiramente informado da dita velhice ou enfermidade, ou longa absencia, sendo outrossim a parte contrária citada, para ver como juram, em pessoa, se poder ser achada, se não à porta de sua casa, presente sua mulher, ou visinhança, que lho hajam de notificar. E se por parte do réo for feito semelhante requerimento, ainda que as testemunhas não sejam velhas, nem enfermas, nem esperem ser absentes, serão perguntadas em todo

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caso, sendo a parte citada em sua pessoa, ou em sua casa, para ver como juram, e as inquirições cerradas, assim como dito he no requerimento feito por parte ao auctor; porque dito réo não sabe, quando lhe será feita a demanda, nem está em seu poder de lhe ser feita tarde ou cedo; e se assi não fossem perguntadas as testemunhas em todo o tempo por ele requerido, poderiam falecer ao tempo da demanda feita, e perecer seu direito” (Livro 3.°, Título 55, §§ 7.° e 8.°) .

O Regulamento n. 737, de 1850, não se descuidou da matéria, à qual dedicou o Título VII — “Processos Preparatórios e Incidentes”; o seu art. 178 dispunha sobre a produção ad perpetuam da prova testemunhal: “Se alguma testemunha houver de ausentar-se, ou por sua avançada idade ou estado valetudinário houver receio de que ao tempo da prova já não exista, poderá, citada a parte, ser inquirida a requerimento dos interessados, aos quais será entregue o depoimento para dele se servirem quando e como lhes convier”.

Lembra Moacyr Amaral Santos que o antedito Regulamento era omisso quanto ao depoimento das partes, observando, contudo, que a doutrina lastreada nas próprias Ordenações e em Ribas admitia o depoimento ad perpetuam, embora “apenas antes do período probatório, mas depois de intentada a ação, nunca anteriormente a esta” (Prova Judiciária. São Paulo: Saraiva, 1983. v. I, p. 323).

O Regulamento n. 737 também nada continha a respeito da produção ad perpetuam de exames ou perícias; ambos os meios de prova aludidos, porém, eram aceitos pela doutrina e pela jurisprudência, tanto em caráter preparatório quanto incidental. Nesta última hipótese, a prova ad perpetuam era consentida ainda que os autos se encontrassem em segundo grau de jurisdição (“segunda instância”, na linguagem da época).

Tempos depois, os diversos códigos estaduais, inspirados naquele notável Regulamento, previram a prova ad perpetuam; em linhas gerais, os casos de admissibilidade da medida eram semelhantes aos previstos no Regulamento n. 737: permitiam o depoimento dos litigantes somente após o ajuizamento da ação, antes ou depois da dilação probatória; já os exames e vistorias ad perpetuam eram admitidos, inclusive, como medida preventiva.

3. Ação cautelar de antecipação de prova

O pedido judicial de antecipação de prova está contido em uma ação; ação cautelar nominada (ou seja, a que a lei atribui uma denominação específica), a despeito de esse adjetivo não ter previsão léxica. À força de ser utilizado iterativamente pela doutrina e pela jurisprudência, contudo, restou consagrado.

Posta em juízo no curso de um processo (incidental) ou com a finalidade de preparar ou assegurar a prova a ser produzida no processo principal (preparatória), a ação cautelar em questão tem como substrato uma pretensão à segurança com referência à prova. Efetivamente, se a parte fosse esperar o momento oportuno para produzir a prova, no processo principal, é muito provável que o tempo — esse “ministro da morte”, na expressão de Machado de Assis — viesse a baldar-lhe o objetivo, pois a parte contrária e as testemunhas poderiam estar mortas ou ausentes.

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Afirma Theodoro Júnior que a produção antecipada de provas é genuinamente cautelar quando ajuizada em sentido preparatório, “pois satisfaz à necessidade emergencial de evitar ou superar o perigo de se tornar impossível ou deficiente a produção da prova se se tiver de aguardar a propositura da ação principal e a chegada da fase probatória normal” (ob. cit., p. 304). À risca, porém, a antecipação de prova, mesmo quando requerida no curso do processo principal, não perde o seu caráter tipicamente cautelar, porquanto também aí estará presente aquela “pretensão à segurança”, de que falamos há pouco e que constitui o grande elemento de diferenciação das ações cautelares, em confronto com as de conhecimento e de execução.

4. Objeto da ação

Segundo declara o art. 846 do CPC, a produção antecipada de provas pode...

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