A progressão de regime prisional como exigência funcionalistateleológica do sistema de Execução penal

AutorPaulo César Busato
CargoPromotor de Justiça do Estado do Paraná
Páginas387-416

    O autor é Promotor de Justiça do Estado do Paraná, Professor de Direito Penal na Universidade Estadual de Ponta Grossa e Doutorando em Problemas Actuales del Derecho penal, pela Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. E-mail: pbusato2002@yahoo.com

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1. Introdução

As presentes observações pretendem propor a análise de um problema, já exaustivamente debatido, desde um prisma quiçá diferente do rumo que tomou a discussão a seu respeito.

Não se retoma aqui a questão da constitucionalidade ou inconstitucionalidade, a intenção do legislador ou questões atinentes à lei penal no tempo ou interpretação legislativa.

Em contrapartida, a proposta inclui prestar atenção à Execução penal como um fenômeno que faz parte de um todo, como uma das facetas do instrumento de controle social que supõe o emprego do Direito penal. A partir desse reconhecimento, se pretenderá o emprego de perspectivas largamente difundidas no âmbito daPage 389 teoria do delito, em especial a orientação das proposições dogmáticas segundo critérios político-criminais, às decisões de Execução penal, àquela que nos ocupa neste caso, a progressão de regime como exigência em todas as hipóteses de prisão, tratese, ou não, de crime hediondo.

Para tanto, se inicia por uma proposição de organização do sistema de imputação segundo uma perspectiva interativa da teoria do delito, do processo penal e da execução penal; em seguida, se apresentará os conflitos do moderno direito penal e como eles refletem nas distintas perspectivas do sistema de imputação, inclusive no âmbito da execução; finalmente, se apresenta a proposta de uma orientação político criminal das proposições de execução penal, plasmadas em um exemplo: o da imprescindibilidade da progressão de regime de cumprimento de pena.

2. Execução penal: um dos três pilares da responsabilidade penal

Falar de atribuir a alguém a responsabilidade penal pela uma prática delitiva implica em muito mais que falar em Direito penal, simplesmente. A dimensão da idéia de imputação é, pelo menos, tríplice.

De um lado, é exigência do moderno Estado social e democrático de direito a obediência estrita a princípios como o de legalidade, de intervenção mínima, de culpabilidade e todos os demais que decorrem destes, o que conduz, entre outras coisas, à necessidade do estabelecimento de um sistema de imputação coerente para com estes princípios1.

A Dogmática jurídica desde há muito segue empenhada em oferecer um sistema, internamente ajustado, obediente a estes princípios e cada vez mais desenvolvido em sua especificidade conceitual.

Ocorre que, malgrado o notável avanço que se conseguiu nesta área, o sistema de imputação segue sendo objeto, com razão, de considerações desairosas desde o ponto de vista criminológico2.

Evidentemente, o polifacético ponto de vista da Criminologia não atribui o fenômeno estigmatizante e socialmente seletivo exclusivamente à Dogmática jurídico-penal, senão muito mais aos cânones obedecidos por sua aplicação.

De qualquer modo é certo que a “Justiça Penal” – assim considerada o controle social exercido mediante aplicação de regras que regulam a reação estatal à prática delitiva – segue maculada pela impressão dePage 390 seletividade, de brutalidade e de ineficiência.

Convém, pois, deitar os olhos alguns instantes sobre este paradoxal fenômeno que constitui o expressivo desenvolvimento da Dogmática jurídico-penal não ter logrado atingir um grau de respeito social e científico correspondente.

2. 1 Responsabilidade penal e silogismo aristotélico

Perfeitamente ciente de que esta não será a única razão pela qual a “Justiça penal” enfrenta o referido problema, gostaria de chamar a atenção uma incongruência interna ao próprio sistema de responsabilização penal. Bem sei que quiçá as mazelas penais sejam derivadas muito mais do âmbito externo do que do âmbito interno daquele, não vejo como podemos pretender angariar o respeito que merece o controle social exercido pela instância penal conquanto permaneçamos hipocritamente desviando os olhos das chagas expostas com que nos apresentamos a público.

Por isso, convém começar pela elaboração de um pequeno silogismo aristotélico a respeito da reação social, expressa pelo sistema de controle penal á prática de um delito3, com o fito de demonstrar que “norma, sanção e processo são, pois, os conceitos fundamentais de todas as formas de controle social”4.

Nesse exercício, aparece como Premissa Maior a matéria própria do processo de criminalização primária, quer dizer, o estabelecimento dos tipos penais e do intrincado sistema geral de imputação. É deste modo que o Estado prevê que “se” determinada pessoa realize uma determinada conduta, dentro de certas condições, e ausentes de outras, “então”, haverá, em tese, a ocorrência de um crime. Se desenvolve, aqui, todo o aparato sistêmico do Direito penal material.

Como Premissa Menor, aparece o processo de criminalização secundária, ou seja, o procedimento de levar uma hipótese dada, em concreto, a ser reconhecida como uma das figuras hipotéticas apresentadas na premissa maior, quer dizer, o Processo Penal, propriamente dito, pelo qual determinada pessoa é reconhecida como autora de determinada prática delitiva.

A Conclusão, então, logicamente, é que como o indivíduo que concretamente realizou um comportamento teve este comportamento reconhecido como criminoso, aparece, para o Estado, o direitoPage 391 subjetivo de apartá-lo e impingir a ele as chamadas conseqüências jurídicas do delito, através da Execução penal.

Deste modo, não há mais remédio do que reconhecer que o procedimento pelo qual o Estado exerce seu controle social na esfera penal engloba, em um único evento, o Direito penal material, o Direito penal processual e a Execução penal. Espera-se, portanto, uma relação coerente e proporcional entre estas distintas estruturas.

Conforme já destacado, a Dogmática jurídico-penal do último Século alcançou um grau de desenvolvimento estelar, ocupando claramente o centro das atenções dos penalistas.

De outro lado, o Processo penal, cujas dificuldades não caberá relatar no estreito âmbito destas observações, também goza de um certo status científico. Se é certo que seu nível de desenvolvimento teórico ainda não é comparável ao Direito penal material, certamente isso deve-se menos à falta de evolução do Processo penal5 e muito mais à sua colocação histórica dentro de uma perniciosa identificação com o processo civil, no intento de forjar uma “Teoria geral do processo”, sem ter em conta que a realidade do processo penal dista muito, em todos os aspectos, do processo civil.

Porém, no que tange ao âmbito da Execução penal, parece existir uma inércia quase absoluta de interesse de aprofundamento científico, rompida somente por poucas iniciativas agradavelmente lúcidas e impetuosas6.

2. 2 A importância da execução penal

Convém notar que nosso pequeno exercício de silogismo aristotélico conduziu a revelar como conclusão justamente a Execução penal. Convém ter presente que a conclusão é a parte mais importante do silogismo e, no entanto, aparece, no âmbito da Ciência penal, como a parte cujo aprofundamento teórico quando existe, é relegado a um segundo plano, à sombra do Direito penal material (principalmente da teoria do delito) e do Direito processual penal.

Não me refiro aqui tão somente à questão legislativa. Certamente não será novo ouvir dizer que a Lei de Execuções Penais brasileira tem índole liberal e é muito bem desenhada, de acordo com os mais modernos padrões científicos relacionados com a teoria da pena.

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Também seria extremamente redundante, escapando claramente a pretensões dogmáticas, repetir argumentos que sempre vem sendo uma e outra vez esgrimidos contra a falta de foco entre a realidade da execução e sua teoria.

A inexistência de investimento social na questão prisional, a falta de consideração política, o descaso para com a situação do preso e pior agora, as inovações legislativas constantemente recrudescentes da condição do cidadão submetido à sanção penal, tem sido amplamente comentados pelos juristas com evidente e intensa indignação. Tudo isso é absolutamente importante, e também verdadeiro.

Mas a preocupação que aqui se pretende expressar não caminha sobre essa linha. A indignação dos penalistas sérios existentes neste país é legítima, mas ela se volta para fora, contra as instâncias sociais externas ao âmbito do desenvolvimento científico jurídico-penal; contra a classe política, contra a atividade legislativa, contra a manipulação dos meios de comunicação de massa, contra a falta de consciência social. O que se pretende, com este pequeno esboço, é volver o olhar para dentro, é perscrutar as entranhas do estudo dogmático jurídico-penal, com o objetivo de enxergar nosso próprio descaso para com a Execução penal no que refere ao aprumo técnico de suas discussões. A proposta é verificar como deixamos de empregar os argumentos teóricos mais...

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