A progressividade do IPTU, do IPVa e da contribuição ao SAT: o tributo como sanção de ato ilícito

AutorFernando Gomes Favacho - Michel Haber Neto
CargoDoutorando e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. - Mestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP.
Páginas162-173

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Dado o caráter extrafiscal de toda exação tributária, em especial com o fito de desincentivo a certas ações dos Contribuintes, o tributo tem enorme relevo nas políticas públicas e no conceito estatal de justiça. E, por outro lado, a questão arrecada-tória das multas faz com que a Administração acabe contando com este recurso financeiro, deixando assim de ser extraordinário para se tornar previsível e até necessário. Ainda que ambos incentivem condutas e também arrecadem dinheiro aos cofres públicos, tributos e multas são separáveis por um critério: a (i) licitude da hipótese normativa.

Vem-se tecer considerações sobre esta linha ténue que separa o tributo da multa, e demonstrar a aplicabilidade de tal (falta de) distinção em três casos específicos: a) a progressividade constitucional do fPTU; b) o desconto no IP VA para o contribuinte não infrator; e c) a progressão da Contribuição ao Seguro de Acidente do Trabalho (SAT).

Cremos que, mesmo com nossa curta amostra (com três tributos1 de entes federados diferentes) é possível a verificação da tendência, legal e jurisprudencial, do tratamento da exação tributária como sanção de ato ilícito.

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1. Critérios para a definição do conceito de tributo

Iniciemos a análise do tema com lição basilar de Geraldo Ataliba,2 que criou um interessante instrumento para o reconhecimento do tributo: "Toda vez que se depare o jurista com uma situação em que alguém esteja colocado na contingência de ter o comportamento específico de dar dinheiro ao Estado (ou a entidade dele delegada por lei), deverá inicialmente verificar se se trata de: a) multa; b) obrigação convencional; c) indenização por dano; d) tributo".

Notemos que, em todos os quatro casos, há a ocorrência de um fato que, no consequente da norma, obriga alguém a levar dinheiro aos cofres públicos.

O primeiro critério a utilizarmos para diferenciar e localizar cada instituto é o da licitude caracterizadora do fato ou, em outras palavras, a faculdade do cidadão de realizar a conduta. São oriundas de fato lícito o tributo e a obrigação convencional. Opostamente, a multa e a indenização. A diferença entre o tributo e a obrigação convencional é que, no primeiro, há uma prévia instituição legal. Já no segundo, o sujeito contribuinte participa diretamente de um acordo com o Estado: é, por exemplo, uma obrigação oriunda de contrato. Também há diferença específica entre a multa e a indenização. Pois bem: a indenização é uma recomposição, um ressarcimento. Deve buscar a situação do status quo ante. A multa, por sua vez, deve piorar a situação anterior para o sujeito praticante do ilícito.

O teste de reconhecimento acima exposto forma um conjunto em que só os tributos podem ser elementos. Desta forma, completamos os ditames do CTN quanto aos requisitos da norma tributária: "Ari. 3e. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" (grifos nossos).

Tributo, em uma definição de conceito, é uma norma que tem como antecedente uma hipótese não vedada por outra norma, e que implica por imposição legal uma relação jurídica modalizada como obrigatória, qual seja, o dever do contribuinte de levar dinheiro ao Fisco. A cobrança mediante atividade administrativa plenamente vinculada nada mais é que o regime jurídico3 a ser adotado para exigência do sujeito ativo. Por isso, reconhecemos alheios à estrutura interna do tributo.

2. Sanção de ato ilícito

O Direito é um conjunto de normas cuja conduta oposta deve levar a um ato coercitivo como sanção.4 Este ato de sanção faz parte do dever jurídico ao qual é acometido o homem. Sem sanção não há norma jurídica.

Para Norberto Bobbio,5 de um fato pode decorrer uma sanção punitiva (pena) ou incentivadora (prémio). Descartamos, de pronto, a "sanção-prêmio", consequência de um fato lícito, que poderia ser chamada somente de "prémio". Sanção só o é de ato ilícito, o que para nós demonstra redundância da expressão "sanção de ato ilícito".

Hans Kelsen6 diz ser a sanção uma rea-ção da comunidade jurídica a uma determinada conduta humana considerada socialmente nociva. O autor admite outros atos de coerção no Direito, mas só serão sanções aquelas decorrentes de um ato ilícito, que é: "Uma

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determinada ação ou omissão humana que, por ser socialmente indesejável, é proibida pelo fato de a ela ou, mais corretamente, à sua verificação num processo juridicamente regulado se ligar um ato de coerção, pelo fato de a ordem jurídica a tornar pressuposto de um ato de coerção por ela estatuído".7

Dito que toda sanção é de ato ilícito, vamos às elucidações dos termos. Paulo de Barros Carvalho,8 reto na ânsia pela desam-biguação das palavras, explicita: sanção é a consequência, e coação é a execução forçada da sanção. Acordamos a utilização de tais termos. E como consequência, sanção comporta ao menos duas acepções jurídicas, expostas por Aurora Tomazini de Carvalho,9 quais sejam: "Em sentido amplo, pode ser entendida como toda relação prescrita no consequente de uma normajurídica cuja hipótese descreve a inobservância de uma conduta imposta por outra regrajurídica, e em sentido estrito, pode ser entendida como a relação jurídica prescrita no consequente da norma secundária que impõe coativamente, por órgão jurisdicional, o implemento da conduta não observada, pelo sujeito passivo, estabelecida em uma norma primária" (grifos nossos).

Utilizamos, doravante, a primeira acepção (sentido amplo), é dizer, como consequência da inobservância de uma conduta imposta por outra regrajurídica.

3. "Que não constitua sanção de ato ilícito"

A ressalva do CTN existe para distinguir o tributo da multa pecuniária: onde há multa, há um fato que tem como hipótese o descumprimento de uma norma. Pode ser, por exemplo, oriunda do descumprimento de uma norma que ordene a entrega de um tributo no prazo (multa moratória), ou mesmo que ordene sejam declarados todos os rendimentos auferidos (multa por sonegação de receita). O tributo e a multa são normas atingidas por outras normas de forma diferente: no nosso pensar, a multa pode serconfiscatória, mas o tributo não (art. 150, IV, da Constituição10). Ainda que tanto o tributo quanto as multas tributárias se submetam ao mesmo regime de constituição, discussão administrativa, inscrição em dívida ativa e execução (art. 113, § P, do CTN), tais exações não se equivalem.

A renda auferida por um cassino é tributada porque renda auferida é hipótese tributária do Imposto de Renda, independente de ter sido auferida ilicitamente. Nem o tributo se torna sanção, ou substitui a sanção, porque exige um valor do cassino. O art. 157 do CTN acrescenta que "a imposição de penalidade não ilide o pagamento integral do crédito tributário". Neste sentido, Paulo Roberto Andrade:11 "O 'falso problema' suscitado pelo art. 3a estaria em fazer uma ressalva sobre um aspecto que, na ideologia do Código, é indiferente à tributação, qual seja, a licitude ou ilicitude do fato tributado. Enxergariam um falso problema aqueles que confundem os dois momentos de análise do

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problema: tributação do ato ilícito e tributação no ato ilícito".

O art. 3e do CTN é também norma destinada aos legisladores: qualquer instituição de tributo que tenha como antecedente previsto um fato ilícito será ilegal.

A progressividade da alíquota para de-sestimular o consumo de cigarros, por exemplo, não possui natureza de sanção jurídica,12 posto que a venda e consumo de cigarro não é ilícito. Contudo, como dizemos adiante, há ilegalidade no aumento do IPVAcujahipótese que implica a majoração é a infração de uma lei de trânsito.

Quando se descumpre a legislação tributária, é aplicada uma sanção de natureza pecuniária, mas que não se confunde com tributo. Trata-se de multa (penalidade) pela ofensa perpetrada. É o caso, por exemplo, de quando o contribuinte deixa de pagar tributo devido no prazo (norma extrínseca à regra--matriz de incidência tributária).

Pagam-se tributos porque o sujeito passivo agiu em conformidade com a lei. Daí a característica de licitude da prestação tributária. Em verdade, tributos e multas possuem semelhança maior no Direito Financeiro, onde ambos são receitas públicas e possuem fim público.

Em suma: não ser sanção de ato ilícito significa que (1) o ilícito não pode ser fato jurídico de uma obrigação tributária e (2) o montante devido não pode ser dimensionado em razão da ilicitude como, por exemplo, a definição de uma alíquota maior para o Imposto de Renda relativamente advinda do jogo do bicho. Comparando-se com o princípio da anterioridade tributária, salvo ressalva constitucional, o tributo não pode ser criado nem aumentado em virtude de ilícito.

Se a renda é adquirida ilegalmente, ainda assim é uma ilicitude subjacente que não afasta a tributação. De forma diversa entendeu o Ministro Nilson Naves:13

"Crime contra a ordem tributária (não configuração). Denúncia (imperfeição material). Exposição dos fatos (defeito). Subsun-ção do fato à norma (não ocorrência). Ação penal (não prosseguimento).

"1. Em havendo duas denúncias, não se admite, quanto ao mesmo fato, descrição diferente para a caracterização do crime, o que, na espécie, ocorreu.

"2. Falta aptidão material à denúncia que não logra enquadrar a conduta descrita na especificidade do tipo legal constante na norma.

"3. Na hipótese, não se pode falar em supressão ou redução de tributo, porque não havia tributo exigível; se houvesse, estar-se--ia tributando o ilícito, o que é inadmissível, evidentemente.

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