Proporcionalidade e igualdade de tratamento na exclusão de sócio por falta grave na sociedade limitada

AutorLuís Felipe Spinelli
Páginas164-179

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1. Introdução

O descumprimento de deveres de sócio (sejam tais deveres estabelecidos pela lei - ou, de um modo mais amplo, deveres impostos pelo ordenamento jurídico -, sejam tais deveres estabelecidos pelo contrato - expressa ou tacitamente) pode levar à exclusão do quotista faltoso. No ordenamento jurídico brasileiro em vigor a exclusão de sócio por falta grave (ou ato de inegável gravidade) na sociedade limitada, que é relevante mecanismo de defesa da sociedade (e, mediatamente, dos demais sócios), pode se operar judicial (art. 1.030, caput, c/c o art. 1.085, do CC) ou extrajudicialmente (art. 1.085 do CC) - isso sem contar a possibilidade de exclusão judicial ou extrajudicial do sócio remisso (CC, arts. 1.004 e 1.058).

E é importante ter em mente que os deveres que recaem sobre os sócios, in concreto, e a eventual exclusão por cometimento de falta grave devem ser ponderados de acordo com os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento - tema objeto deste ensaio.

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Os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento são tidos como estruturantes do direito societário, limitando o exercício de direitos (subjetivos e potestativos) e permitindo coibir seus desvios, funcionando, assim, como mecanismos de proteção dos sócios (tanto da minoria quanto da maioria).1E, neste sentido, também devem ser aplicados no caso de exclusão de sócio por falta grave.

2. Proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, de acordo com o uso corrente, objetiva inibir e neutralizar o abuso do poder, exigindo, no nosso caso, que a exclusão seja remédio compatível com a falta cometida (isto é, que a medida não seja excessiva).2-3

Nesse sentido, a exclusão de sócio por descumprimento de seus deveres é considerada remédio extremo, ultima ratio, somente

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podendo incidir em caso de falta "grave" que traga ou que possa trazer algum dano à socie-dade - mesmo porque o direito à participação do sócio na sociedade da qual faz parte (e, logicamente, seu próprio direito de propriedade das quotas sociais) apenas pode ser alterado ou suprimido sem seu consentimento quando o interesse social for tão relevante, a depender de tal medida. E isso restou positivado pelo nosso Código Civil (v. arts. 1.030 e 1.085) - do mesmo modo que se dá em outros Países: o art. 2.286 do Codice Civile italiano (ao regrar a sociedade simples - e em nome coletivo e em comandita simples) requer gravi inadempienze, enquanto o § 140 do Handelsgesetzbuch alemão (ao regrar a sociedade em nome coletivo e aplicável às sociedades em comandita simples) exige wichtiger Grund.4

Ora, como em qualquer contrato, a resolução por inadimplemento (e a exclusão de sócio por falta grave nada mais é do que

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a adaptação do instituto da resolução do contrato por inadimplemento ao contrato plurilateral) só resta justificada quando o descumprimento do dever pela parte possui importância minimamente considerável.5E diferente não seria no contrato de sociedade...

E "falta grave é (...) apenas aquela que objetivamente tenha essa agudeza (de ‘inegável gravidade’), e não a que, discricionária ou arbitrariamente, assim a pretenda qualificar a maioria".6Logo, a exclusão pela prática de falta grave não pode ser utilizada contra sócio

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que não cometeu falta qualificada como tal.7

Existe a necessidade de equivalência entre a falta cometida pelo sócio (cuja gravidade deve ser avaliada não só pela própria infração perpetrada, mas também pelos seus efeitos)8 e a medida adotada pela sociedade (no nosso caso, sua exclusão) - ou seja: não se pode querer excluir o quotista (medida drástica) por se apropriar de uma mera caneta ou de um bloco de notas da sociedade (conduta que, mesmo que ilícita, é insignificante). O próprio Código Civil assim positivou, reconhecendo que a exclusão é medida extrema, a ser adotada em situações extremas: "A ideia de proporcionalidade (razoabilidade e adequação dos meios aos fins) (...) norteia as exigências (...) de que a exclusão esteja calcada apenas em falta grave qualificada, e não qualquer falta, e que, na medida do possível e daquilo que possa ser exigido dos demais sócios em concreto (o que depende da estrutura real da sociedade), tenham precedência meios de sancionamento menos intensos, desde que capazes de efetivamente eliminar o problema verificado no âmbito interno, restando a exclusão como ultima ratio".9Assim, sendo a exclusão de sócio por falta grave na sociedade limitada (bem como nas outras espécies societárias, logicamente) a última medida a ser tomada, tem-se que cede espaço para outros mecanismos mais brandos que, objetivamente, consigam extirpar o problema do seio da sociedade de modo efetivo (como, e.g., a suspensão do direito de voto ou a destituição do cargo de administrador - a grande questão é que cada medida deve ser analisada de acordo com as circunstâncias do caso concreto, a fim de que se verifique qual a melhor forma para lidar com o descumprimento de um dever por parte do sócio). Nesse sentido, meios mais suaves possuem primazia sobre a exclusão para a solução de eventual controvérsia.10Mas, aqui, não podemos fazer com que, sob o argumento de desrespeito ao princípio da proporcionalidade, se ataque o juízo de conveniência e oportunidade que pauta as deliberações sociais sobre exclusão de sócio, e nem exigir que se imponham um ônus, novas obrigações ou limitações a direitos da sociedade.11Da mesma forma, a sociedade não pode impor medidas que

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levem à privação de direitos ou à imposição de novos ônus ou obrigações sociais aos seus membros (como a supressão do direito de fiscalização ou a realização de exclusão parcial); mas é claro que nada impede que a sociedade e o sócio acordem, respeitados os limites legais, as medidas que considerem mais adequadas.12Ainda, é importante referir que a caracterização da falta grave independe da concorrência de mais de uma falta: é suficiente o cometimento de uma falta considerada grave para que o sócio seja excluído; mesmo assim, é possível que ocorra a concorrência de faltas graves, e isso, logicamente, pode ser levado em consideração pelos sócios quando da deliberação sobre a exclusão. De qualquer forma, até pode ocorrer que determinada falta não seja considerada grave o suficiente para ensejar a exclusão; todavia, a prática de uma série de pequenas faltas pode fazer com que seja necessária a tomada da medida extrema: o conjunto de atos é grave o suficiente para justificar a exclusão do sócio.13Por fim, cumpre frisar que a gravidade necessária para caracterizar a falta que pode ensejar a exclusão de sócio - com a ressalva da hipótese do sócio remisso, cuja gravidade já é predeterminada pelo art. 1.004 do CC14 - somente pode ser verificada in concreto, analisando-se todas as circunstâncias de cada caso.

O desrespeito ao princípio da proporcionalidade faz com que seja anulável a deliberação assemblear, tendo em vista a ilicitude do ato (violação a direito individual de sócio) in concreto, sem esquecer eventual responsabilização civil, se pertinente. No caso de exclusão judicial, a violação do princípio pode acarretar a improcedência da ação. E é nula a cláusula contratual que autorize a exclusão de membro que tenha cometido alguma falta fútil.15

3. Igualdade de tratamento

Rui Barbosa, em seu discurso de paraninfo para os formandos da turma de 1920 da Faculdade do Largo de S. Francisco, em São Paulo, ensinou, reafirmando o pensamento aristotélico, que "a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem".16

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E é claro que o princípio da igualdade17 incide também sobre o direito societário.

O princípio da igualdade de tratamento (Gleichbehandlungsgrundsatz), que é tão pouco trabalhado entre nós,18é "princípio geral das associações privadas de pessoas"19 e incide independentemente de qualquer previsão legal, muito embora, hoje, encontre positivação na Alemanha (no § 53a da Aktiengesetz)20e na Espanha (Ley de Socieda-

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des de Capital, art. 97).21-22No Brasil existe referência à igualdade de tratamento para os acionistas titulares de ações da mesma classe (art. 109, § 1º, da Lei 6.404/1976), enquanto que se infere o princípio, no Código Civil, por meio da interpretação sistemática de várias regras (arts. 1.004, 1.007, 1.008, 1010, § 2º, 1.013, 1.023, 1.055, § 1º, 1.072, caput, 1.081, § 1º, 1.094, VI e VII).23Sustenta-se que o princípio da igualdade de tratamento no âmbito societário tem sua origem no princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5º, caput), pese embora a que com ele não se confunda. É importante salientar que a transposição direta da ideia de isonomia para as relações jurídicas privadas não é possível, e exige adaptações, uma vez que na esfera privada vige o princípio da autonomia privada, o qual permite que os particulares criem posições que não sejam igualitárias - desde que respeitados certos limites, é claro.24171

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No âmbito das associações de pessoas, salvo consentimento, não teria lógica e não seria lícito, tendo em vista a comunhão de escopo, que alguém ingressasse em um ente coletivo (no nosso caso, uma sociedade) e fosse tratado de modo discriminatório, diferente dos demais. Assim, todos os sócios devem ser tratados de modo igual quando existentes as mesmas condições (circunstâncias fáticas)...

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