Proposta de reformulação do livro III do CPC: Algumas reflexões

AutorLaura Oliveira Vidon
Páginas226-249

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1 Considerações iniciais

Em outubro de 2006, foi publicado na Revista de Processo, em sua edição de número 140, artigo do ilustre Ministro aposentado Athos Gusmão Carneiro1, no qual o eminente processualista apresenta um esboço de Anteprojeto do Código de Processo Civil acerca do Livro III (Do processo cautelar), depois de expor considerações sobre as razões que motivaram a proposta legislativa.

Segundo a proposta apresentada, a denominação do Livro III passaria a ser "Da Tutela de Urgência", tendo seu Título I a epígrafe "Das Medidas Cautelares e Antecipatórias", e seu Título II, a nomenclatura "Dos Processos de Urgência".

O presente trabalho tem por objetivo examinar o esboço legislativo em comento, a fim de verificar se o tratamento normativo proposto atende à premente necessidade de o ordenamento processual brasileiro dispor, de maneira sistemática e uniforme, sobre a tutela de urgência.

Conforme mencionado em nosso outro trabalho2, as tutelas cautelar e antecipatória devem ser compreendidas como integrantes de um gênero comum de tutela jurisdicional, o da tutela sumária cautelar de urgência, informada pelos aspectos caracterizadores da cautelaridade, quais sejam: a provisoriedade e a instrumentalidade, tal como preconizado porPage 227José Roberto dos Santos Bedaque3, apoiado, sobretudo, nas lições de Calamandrei e de Proto Pisani.

Consideradas indispensáveis à configuração de uma tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva, às tutelas antecipatória e cautelar deve ser dedicado um tratamento legislativo que as reconheça estrutural e funcionalmente semelhantes, e que repute de somenos importância as diferenças conceituais existentes entre as medidas. Mais do que mudanças pontuais na legislação processual, já era hora de os operadores do direito se debruçarem sobre a necessidade de um regime jurídico único para as tutelas sumárias cautelares de urgência.

Conforme ressaltado por Leonardo Greco4, a dinamicidade da vida atual faz com que se firme uma nova tendência, no sentido de os jurisdicionados preferirem uma rápida solução do litígio, fundada em cognição incompleta, do que a busca pela certeza. Embora se refira à tutela antecipada, o atento comentário do ilustre processualista pode ser estendido à categoria das tutelas sumárias cautelares de urgência, como se vê adiante:

"Tal vez sem muita convicção dos que a idealizaram, a tutela antecipada passa a sofrer os efeitos e a constituir o instrumento de uma profunda mudança de paradigma na concepção da função que a administração da justiça deve desempenhar na solução dos conflitos entre os indivíduos. Aproximando-se dos países da common law, também o processo dos países da civil law passa a dar grande relevo à f unção pacificadora da administração da justiça, exercida através de decisões provisórias, em muitos casos muito mais importante do que a tardia revelação da certeza do direito das partes agasalhado pelo ordenamento jurídico. Mais proveitosa do que a busca dessa certeza é a rápida solução do litígio através de uma cognição menos segura, todavia mais expedita. A celeridade ganha expressamente foros de direito fundamental e induz o direito processual a criar procedimentos de cognição sumária, aptos a tutelar todas as espécies de situações jurídicas através de suficientes juízos de probabilidade, para que a busca da nem sempre alcançável certeza, através de um procedimento de cognição exaustiva que dificilmente conduzirá a um juízo diverso, não submeta a parte que tem razão a um injusto retardamento no acesso à tutela do seu direito".

Ante essa nova tendência, acreditamos que a reunião das providências cautelar e antecipatória sob um mesmo gênero contribuirá para que o ordenamento processual brasileiro seja dotado de instrumental capaz de responder, eficazmente, aos anseios fortemente manifestados pelos jurisdicionados por uma tutela que tenha plena aderência à realidade social.

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Não temos dúvida de que esse instrumental somente será propiciado através do estabelecimento de um tratamento legislativo que efetivamente vise sistematizar as tutelas sumárias cautelares de urgência.

Antes de se analisar propriamente o esboço legislativo sugerido, faz-se necessária uma breve abordagem da tutela cautelar à luz do direito comparado, bem como do sistema vigente em 1939 e do existente a partir de 1973, além de serem descritas as notas essenciais da providência cautelar.

Por oportuno, importante assinalar que celeridade não é sinônimo de urgência, conforme ensina o insigne Leonardo Greco5. A busca de um processo célere significa apenas o desejo de a tutela ser concedida no menor tempo possível. Visa-se apenas a acelerar a prestação jurisdicional, não havendo fundamento numa situação objetiva de perigo.

Para que delimitemos bem o objeto de nosso estudo, vale destacar, com arrimo na valiosa lição do referido jurista,6 que a tutela da situação de urgência pode ter vários fundamentos, como as características específicas dos sujeitos postulantes (ex.: idosos – art. 71 do Estatuto do Idoso, entidades públicas – v.g. o art. 816 do CPC); a relevância do direito substancial em questão (ex.: procedimentos do mandado de segurança e ação de alimentos), e o perigo iminente de lesão grave ou de difícil reparação, que justifica a tutela cautelar.

Assim, ao nos referirmos, no presente artigo, à tutela de urgência, fazemos menção estrita à proteção jurisdicional de natureza cautelar (provisória e instrumental) que visa conjurar o periculum in mora.

Desse modo, compreendemos a tutela de urgência, de raízes constitucionais fincadas no artigo 5º, XXXV7, enquanto proteção jurisdicional que evita que o decurso do tempo venha a prejudicar a solução definitiva do litígio, mediante a conservação de coisas ou pessoas, bem como pela antecipação provisória dos efeitos da tutela definitiva8. Assim, referir-se-á à tutela cautelar como cautelar conservativa e, à tutela antecipada, como cautelar antecipatória. Para nós, a tutela antecipatória fundada no periculum in mora (art. 273, I, CPC) é de natureza cautelar, vez que cumpre requisitos ontologicamente cautelares (instrumentalidade e provisoriedade).

No entanto, ainda que se rejeite a natureza cautelar da antecipação dos efeitos práticos da tutela final, não se pode negar que há grande afinidade entre as referidas medidas, sendo fortemente positivo que haja uma unificação na disciplina normativa que disponha sobre as mesmas.

Não é outro o entendimento de Leonardo Greco, ao pontuar que, ao tutelar as situações de perigo, "a tutela cautelar e a tutela antecipada tendem a unificar-se sistematicamente, beneficiando-se uma e outra dos princípios e regras que à primeira vista poderiam parecer afetar apenas a uma delas”9.

É tendo em mente tais considerações que serão feitas algumas reflexões sobre o esboço de Anteprojeto elaborado pelo incansável Athos Gusmão Carneiro.

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2 A tutela cautelar
2. 1 A tutela cautelar no direito comparado

Como antecedentes da tutela cautelar, a doutrina10 indica os interditos romanos, expedidos pelos pretores, que, em geral, determinavam ordens de proibição.

Nesse ponto, importante destacar que se deve à doutrina processual italiana o pioneirismo no desenvolvimento científico da tutela cautelar. Foi no início do século XX, mediante as valiosas lições de Chiovenda - o primeiro a atribuir autonomia à função cautelar, que as luzes foram voltadas para a providência cautelar. Piero Calamandrei, em sua magistral obra denominada Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari, de 1936, foi um dos principais artífices da sistematização das medidas cautelares, conforme ensina Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho11. Anos antes, em 1926, Carnelutti elaborou o que ficou conhecido como "Projeto Carnelutti" que, à semelhança do sistema austríaco, deixava ao juiz a escolha da via cautelar adequada. 12

Visualizam-se no direito alienígena moderno, em matéria de tutela cautelar, dois grandes grupos: o primeiro, identificado pelo direito inglês e alemão, que se limitam a consagrar o poder cautelar genérico, sem referências a tutelas específicas, que se compreendem naquele; e o segundo, em que há a previsão de um poder cautelar genérico e medidas específicas, a exemplo do ordenamento italiano e português, tal como o nosso regime atual. Na França, embora haja meios específicos de cautelares, há dois institutos (ordonnance de refere e ordonnace sur requéte) de grande relevância prática, pelos quais se veicula o poder cautelar geral.13

Numa breve análise de como o direito comparado tutela a situação de urgência, chega-se à conclusão de que tal proteção é garantida, em regra, por um único dispositivo, mediante o qual é possível postular medidas de caráter conservativo e provisoriamente satisfativo. É o que se vê na Espanha, com o art. 1428 da Ley de Enjuiciamento Civil, emPage 230Portugal, mediante o art. 381, 1º (em vigor desde 1997), na Itália14, com base no art. 700 do Codice di Procedura Civile, e na Alemanha, ante o disposto no §940 da ZPO. Ademais, o Código de Processo Civil Modelo para Iberoamérica, de 1988, disciplina o poder geral de cautela no artigo 280, por meio do qual é possível a concessão de medidas antecipatórias.15

Assim, diferentemente do que ocorre entre nós, a...

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