Propriedade privada e 'cidade pública' na Itália. Um (longo) trajeto ainda não concluído

AutorGiovanni Allegretti, Enrico Zampetti
CargoLicenciado em Arquitetura (1996) e Doutorado em Planeamento Urbano, Territorial e Ambiental (2000) pela Universidade do Florença, Itália. Atualmente é investigador sénior do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, e faz parte do Núcleo 'DECIDe'. As suas áreas principais de pesquisa incluem a participação dos cidadãos na gest...
Páginas565-602
Revista de Direito da Cidade vol. 12, nº 2. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2020.49862
______________________________________________________________________
Revista de Direito da Cidade, vol. 12, nº 2. ISSN 2317-7721. p p.565-602 565
Propriedade privada e "cidade pública" na Itália. Um (longo) trajeto ainda não-concluído.
Private Property and "Public City" in Italy. A (Long and) Still Uncomplete Path.
Giovanni Allegretti1
Enrico Zampetti2
RESUMO
Focado no contexto italiano, o artigo trata de um elemento essencial ao Direito da Cidade,
garantido pela Constituição de 1948: o princípio da função social da propriedade. Para isso,
analisa quais instrumentos urbanísticos tornaram-se centrais na sua efetivação, e quais direção
e uso estão tomando, na doutrina e nas experimentações de planejamento urbano.
Metodologicamente, explora a doutrina e a jurisprudência, a partir de uma perspectiva
histórico-sociológica que pretende ler a complexa e contraditória trajetória desta matéria
dentro de um âmbito de transformações políticas marcadas por tentativas, mais ou menos bem-
sucedidas, de combinar a dimensão privada da propriedade com sua projeção pública. A análise
evidencia que não se conseguiu alcançar, na legislação, um equilíbrio entre estas duas
dimensões, cuja tensão manteve-se nas ambiguidades que marcam os dois instrumentos
(equalização urbana e desapropriação simplificada) hoje mais usados num quadro que pretende
ultrapassar as contradições de um planejamento urbano baseado no zoneamento e no uso da
desapropriação para fins de utilidade pública. Apostar na hibridização destes instrumentos com
outras inovações faz parte do “caminho dialético” de transformação cultural de um país onde a
1 Licenciado em Arquitetura (1996) e Doutorado em Planeamento Urbano, Territorial e Ambiental (2000)
pela Universidade do Florença, Itália. Atualmente é investigador sénior do Centro de Estudos Sociais (CES)
da Universidade de Coimbra, e faz parte do Núcleo "DECIDe". As suas áreas principais de pesquisa incluem
a participação dos cidadãos na gestão das transformações territoriais e nos Orçamentos Participativos
municipais (Europa, América Latina, Asia e África), temas sobre os quais tem inúmeras publicações. ORCID
iD: https://orcid.org/0000-0001-6234-5168 URL:
https://ces.uc.pt/pt/ces/pessoas/investigadoras-es/giovanni -allegretti E-mail:
giovanni.allegretti@ces.uc.pt
2 Jurista, professor associado de Direito Administrati vo e doutor em Direito Público pela Universidade de
Siena. Pesquisador sênior no setor disciplinar c Direito administrativo no Departamento de Ciências
Políticas e Internacionais da Universidade de Siena. ORCID iD: https://orcid.or g/0000-0003-2363-
4543?lang=en CV: https://www.dispi.unisi.it/it/dipartimento/docenti/pro fessori-ordinari-professori-
associati-e-ricercatori/enrico-zampetti E-mail: enrico.zampetti@uni si.it
Revista de Direito da Cidade vol. 12, nº 2. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2020.49862
______________________________________________________________________
Revista de Direito da Cidade, vol. 12, nº 2. ISSN 2317-7721. p p.565-602 566
efetivação da função social da propriedade passa, sobretudo, pelo poder judiciário e as
autoridades locais, alternando momentos de preocupações com o aumento dos problemas
socioeconômicos, e outros (prevalentes) marcados por uma renovada atenção às liberdades
individuais dos cidadãos.
Palavras-chave (PT): Função social da propriedade; consumo de solo; cidade pública; direito
urbanístico; instrumentos legais
ABSTRACT
Focused on the Italian context, the art icle deals with an essential element of t he Right to the City,
guaranteed by the 1948 Constitution: the principle of the social function of property. Thus, it
analyses which planning instruments have become central in its implementation, and which
direction they are following, in the doctrine as in the experiments of urban planning.
Methodologically, it explores doctrine and jurisprudence, from a historical-sociological perspective
which intends to read the complex and contradictory trajectory of the topic within t he scope of
political transformations marked by more or less successful attempts to combine the private
dimension of property with its public one. The analysis shows that a balance between these two
dimensions was not achieved in the legislation. Thus, their tension permeates the ambiguities of
the two main tools (equalization and simplified expropriation) which are most used today in a
framework that wants to overcome the contradictions of a zoning-based planning approach and
the use of expropriation for purposes of public utility. Betting on t he hybridization of these
instruments with other innovations is part of t he “dialectic path” of cultural transformation in a
country where the realization of the social function of property passes, above all, through the
judiciary and local authorities, alternating moments of concern with the increase in socioeconomic
problems, and others (which look prevalent) marked by renewed attention to the individual
liberties.
Keywords (EN): Social function of property; land consumption; public city; urban law; legal tools
1. Introdução
A literatura sobre Direito à Cidade, no contexto italiano, é ainda escassa, especialmente no
que diz respeito à análise concreta dos instrumentos e das políticas que tem vindo permitir a
Revista de Direito da Cidade vol. 12, nº 2. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2020.49862
______________________________________________________________________
Revista de Direito da Cidade, vol. 12, nº 2. ISSN 2317-7721. p p.565-602 567
concretização desse direito. De fato, na Itália, o próprio conceito de Direito à Cidade ainda não
entrou na linguagem dos especial istas do direito. Ele está mais presente dentre os filósofos, os
geógrafos e os urbanistas, enquanto no debate político é substituído por outras referências (como
a valorização e defesa dos bens comuns -GARCIA e ALLEGRETTI, 2014). Mas – paradoxalmente – é
no âmbito do direito que foram produzidos estudos específicos sobre elementos
internacionalmente considerados centrais do Direito à Cidade, como é o caso da “função social da
propriedade urbana” e dos instrumentos que t em contribuído para traduzir em ações concretas a
proteção deste princípio constitucional. O presente texto pretende apoiar-se nestes estudos de
âmbito jurídico, para contextualizar as suas conclusões numa perspetiva histórico-sociológica1.
Com este intuito, a primeira seção do artigo (tópico 2) propõe uma visão panorâmica da
complexa e problemática trajetória da legislação italiana sobre uso e ordenamento do território.
Nomeadamente, destacam-se as tentativas - mais ou menos bem-sucedidas - de com binar a
dimensão privada da propriedade com sua projeção pública, claramente prefigurada na
Constituição (art. 42), com o uso da fórmula "função social da propriedade”. Especial atenção é
dada à proposta de reforma do então ministro Sullo, que nunca entrou em vigor devido aos
conflitos entre as fo rças políticas e também dentro do próprio governo da época: ela, em suas
intenções, visava alcançar uma m ais eficaz coordenação entre construção e urbanização do
território, também para garantir a função social da propriedade. Outros exemplos dizem respeito à
chamada “lei-ponte” e, mais recentemente, às técnicas de equalização urbana destinadas a definir
os usos do território com outras ferramentas, além das t radicionais ligadas ao chamado
zoneamento.
Na segunda seção do artigo (tópico 3), são aprofundadas - de um ponto de vista
explicitamente jurídico – duas ferramentas do variado e heterogêneo panorama de instrumentos
para a efeitivação da função social da propriedade urbana: a propria equalização, já acima
mencionada, e o instituto da “desapropriação simplificada”. No conjunto, eles se tornaram centrais
no contexto da atual desapropriação, assim como para "remediar" a ocupação ilegítima de área
urbana realizada pela administração pública, quando existem razões de interesse comum a serem
protegidas. A escolha desses dois institutos jurídicos decorreu do fato de que, melhor do que
outros, eles podem exemplificar claramente, no estado atual do sistema, a tensão entre a dimensão
pública e privada da propriedade, esculpida na Constituição italiana. Desses dois instrumentos,
aprofundam-se alguns aspectos críticos relacionados com a vibrante tensão entre as garantias do
direito de propriedade, entendido em sua dimensão privada, e a “cidade pública”, entendida por

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT