Estados protetores e agressores na sociedade mundial: os efeitos sociais da Covid19 /Protective and aggressive states in the world society: the social effects of Covid19.

AutorTorres, Esteban
  1. A autopreservação social e a transformação do estado (1)

    A partir da transformação da Covid19 em uma pandemia mundial, tornou-se evidente que as ações dos estados se tornaram mais relevantes na determinação da vida social da maioria das nações. Agora, o que não é de todo evidente é porque o aumento de certo estatismo social está ocorrendo, quais características ele adota na atualidade, qual impacto social está tendo e como ele poderia evoluir daqui para frente. Nesse trabalho, sustentarei que a renovada centralidade do estado é principalmente o produto de um fluxo massivo de delegação de poder coercitivo e regulador aos estados e líderes protetores, propiciado por um movimento mundial de autopreservação social (2). Sem essa transferência excepcional de poder social, os estados não teriam capacidade de manobra para implantar uma política de macroproteção.

    A crise sociossanitária produzida pela Covid19 está definindo duas formas estatais gerais: a do estado protetor e a do estado agressor. O estado protetor é aquele que atualmente está levando adiante alguma política antivírus planejada e que o movimento de autopreservação social considera que pode combater em algum grau a ameaça da Covid19. O estado agressor, por sua vez, é aquele que não adota uma política antivírus e que o movimento de autopreservação social considera que minimiza o problema e que não está disposto ou capacitado para combater a ameaça da Covid19. Por sua vez, é possível identificar em um plano objetivo a formação de pelo menos dois tipos de estados protetores: o estado social protetor e o estado liberal protetor. O primeiro é aquele estado que no momento de direcionar seus recursos prioriza a questão sociossanitária, assim como a inclusão econômica dos estratos baixos e a sustentabilidade material dos estratos médios. O segundo, por outro lado, é aquele que prioriza a recomposição geral do mercado e que, geralmente, não oferece uma proteção econômica complementar à proteção sociossanitária. Junto a isso, é possível identificar dois tipos de solução temporária da proteção estatal, que contribuem na definição da forma-estado que está sendo recriada na presente conjuntura: o estado protetor preventivo e o estado protetor tardio. O primeiro tipo de estado é aquele que mobilizou a proteção sociossanitária sob uma lógica preventiva, antes de ter registrado mortos em seu território e em uma situação de contágio incipiente. Já o segundo orientou-se em direção à proteção, uma vez que o país já se encontrava em uma crise sociossanitária mais ou menos avançada. A grande maioria dos estados de proteção preventiva no mundo são estados sociais. Até o momento, como exemplos mais completos dessa forma estatal, podemos destacar a Coreia do Sul, Singapura, Taiwan, Argentina, Portugal e Grécia. Quanto à lista de estados protetores tardios, vemos que está composta tanto por estados sociais como liberais. Entre os estados sociais protetores de reação tardia, destacam-se Alemanha, China, França, Áustria, Dinamarca, Noruega e Suécia (ITUC, 2020). Aparentemente, o único estado periférico que atualmente está adotando uma forma socioprotetora é a Argentina, assumindo, também, uma modalidade preventiva (3). Por sua vez, os estados liberais protetores são claramente a forma estatal dominante nessa conjuntura mundial. Esses últimos assumiram em sua totalidade modalidades tardias de proteção. Em suas formas centrais, ficam incluídos nessa tipologia Itália, Espanha, Reino Unido, Canadá, Irlanda e Rússia. Na América Latina, sujeitos a uma estruturação periférica, destacam-se principalmente Colômbia, Chile, Peru e Uruguai (4).

    Quanto ao estado agressor, observam-se igualmente dois tipos gerais: o estado liberal agressor e o estado social agressor. Ambos priorizam exclusivamente uma agenda econômica de mercado. O primeiro tende a implantar políticas econômicas liberais e o segundo políticas desenvolvimentistas em sentido amplo. Entre os estados liberais agressores, encontram-se os Estados Unidos de Trump, o Brasil de Bolsonaro e, em menor medida, o Equador de Lenín Moreno. Quanto ao estado social agressor, trata-se de uma estranha exceção morfológica que fica representada na atualidade pelo México de Manuel López Obrador. A política antiproteção de todos eles vem acompanhada de declarações públicas de desprezo e/ou de minimização do problema. Em mais de uma ocasião, Trump qualificou a Covid19 de "vírus chinês"; Bolsonaro, de "gripezinha"; e López Obrador de "pequena gripe". Sem exceção, essas apreciações presidenciais receberam um repúdio majoritário em seus respectivos países e na órbita ampliada da sociedade mundial.

    Por enquanto, os estados protetores são a forma estatal dominante na América Latina e no mundo. A magnitude mundial dessa proteção estatal sociossanitária explica-se a partir de dois processos indissociáveis: a pressão social exercida sobre os sistemas de governo para que eles assumam funções ativas de proteção antivírus, bem como a adesão geral das sociedades atemorizadas pelas iniciativas de proteção antivírus dos governos. A primeira inclinação coletiva permitiu que aqueles governos que inicialmente minimizaram o problema reorientassem em poucas semanas suas posições quanto à adoção de uma política de proteção tardia. Por outro lado, a adesão instantânea do movimento de autopreservação às ações preventivas dos estados protetores possibilitou reforçar essa nova priorização sociossanitária. De qualquer forma, a velocidade e o modo de transformação dos estados do mundo em atores protetores e agressores, e, em seguida, o modo e o ritmo de reconversão de alguns estados agressores em versões protetoras vêm determinando em grande medida a evolução dos contágios e das mortes causadas pela Covid19 em cada país, assim como as dinâmicas políticas que estão sendo recriadas em cada formação nacional.

  2. O novo estado protetor na América Latina

    O advento de novos estados protetores na maioria dos países do mundo, como resultado da crise mundial tridimensional associada à Covid19 (5), está produzindo a recentralização do estado. No caso da América Latina, o novo estado protetor, tanto em sua forma social como liberal, tende a reconfigurar de forma associada três macrooperações estatais de proteção: (i) as ações de seguridade social inauguradas na década de 1950; (ii) os programas de criação de classe iniciados na década de 1990; e (iii) as atuais operações de proteção sociossanitárias. A primeira associa-se aos direitos laborais ligados ao mercado formal de trabalho; a segunda, com os programas de transferências monetárias--condicionadas e diretas -; e a terceira, a atual, com uma série de macroações sanitárias, de seguridade e de controle público. A novidade estrutural da função estatal de proteção reside na integração dessa última operação, assim como na formação de uma nova forma geral de proteção que surge da recombinação das três operações indicadas. A isso se soma uma novidade quantitativa. Refiro-me à expansão inédita dos programas estatais de transferência monetária direta, que atualmente está mobilizando grandes volumes de dinheiro. Essa ação estatal está produzindo uma ampliação maciça da classe de indivíduos dependentes da assistência estatal. Trata-se da extensão de uma nova classe social criada pelo estado, a classe dependente de assistência, que vem se expandindo de modo consolidado e acelerado na América Latina e na maior parte do mundo desde a década de 90 do século passado (Torres, 2019 e 2020b).

    Tal como indicado acima, a crescente centralidade dos estados e das lideranças protetoras está ocorrendo a partir de uma transferência acelerada do poder de regulação e de coação da sociedade atemorizada para esses atores seculares, dotados de um potencial único e insubstituível de macroproteção. Por sua vez, a sensibilidade estatal demonstrada em relação aos profundos temores que se abrigam nos impulsos de autopreservação social, cujo resultado é a expansão e a sofisticação de sua função protetora, está recriando em tempo recorde uma nova legitimidade estatal de exceção. Não se pode perder de vista o fato de que o movimento mencionado de concentração de poder social nos atores políticos protetores hiperlegitimou-se em poucas semanas. Absolutamente todos os líderes e governos do mundo que assumiram de modo preventivo ou tardio uma forma protetora aumentaram sua popularidade nas pesquisas. E alguns deles fizeram isso de forma muito acentuada. Esse acontecimento está produzindo um fato político singular: se, em maior medida, a aprovação nacional dos líderes e dos estados sociais protetores sobe, essa ascensão também alcança os líderes e os estados liberais que adotaram algumas medidas protetoras. Na América Latina, por exemplo, no decurso de um mês, a popularidade do presidente argentino, Alberto Fernández, disparou. Sua imagem positiva, que já se encontrava acima dos 60% no início de março, passou a situar-se, no início de abril, entre 80% e 90%. No entanto, a aprovação do presidente liberal do Chile, Sebastián Pinera, fortemente desacreditado pelas explosões sociais que vinham perturbando a vida social do país desde outubro de 2019, também melhorou. No início de março, sua imagem positiva estava baixíssima, entre 10% e 13%, e, um mês depois, estava em torno de 20% e 22%. Do mesmo modo, mas em sentido inverso, a apreciação de todos os líderes e governos agressores, tanto os liberais--a enorme maioria--como os sociais está se deteriorando. Jair Bolsonaro, o presidente liberal e autoritário do Brasil, caiu cerca de 10 pontos percentuais em poucas semanas, de 40% de imagem positiva no início de março para 30% no final do mesmo mês. Contudo, também baixou em igual medida a aprovação de Manuel López Orador, presidente do estado social mexicano, que, no mesmo período, caiu de pouco mais de 55% para pouco menos de 46%.

    É necessário indicar que essa nova legitimidade de exceção na América Latina está ocorrendo em um momento no qual a expansão do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT