O processo psicanalítico de transferência e a decisão judicial: a teoria dos quatro discursos enquanto barreira garantista

AutorMarcelo Lebre Cruz
CargoGraduado em Direito pela UniBrasil - Especialista em Direito e Processo Penal - Mestrando em Direitos Fundamentais e Democracia pelas Faculdades Integradas do Brasil.
1. Introdução

O sustentáculo e o fundamento das decisões judiciais, em especial na seara penal – cujos efeitos poderão atingir um dos mais preciosos bens jurídicos do indivíduo: a sua liberdade -, sempre foram objeto de infindáveis discussões acadêmicas, dando azo, assim, a construção das mais variadas teorias no âmbito da filosofia, da sociologia, e, especialmente, do Direito.

O presente artigo visa - en passant - trabalhar com esta mesma questão, porém, sob um ponto de vista diferenciado: partindo das noções psicanalíticas do consciente e inconsciente humano, pretende-se demonstrar a incisiva influência dos processos mentais de transferência na tomada das decisões judiciais. E mais, almeja-se demonstrar os perigos que envolvem esta (inevitável) aproximação, exatamente porque estaremos trabalhando com o universo ocupado pela subjetividade humana, cujas razões, não raras vezes, são inexplicáveis de maneira racional.

Desta feita, ao mesmo tempo em que demonstraremos que a dimensão ocupada pela vontade interior é parte constitutiva de qualquer processo decisório, propugnaremos por meios de se limitar tal aspecto (de índole puramente subjetiva). E é aí que ingressaremos no aclamado campo da argumentação, especialmente no tocante à Teorias dos Quatro Discursos: poético, retórico, dialético e analítico. Ao mesmo tempo em que se pretende firmar que todos estes influenciam, de alguma forma ou em algum momento, na conformação da decisão judicial, buscaremos demonstrar que sua correta utilização acaba por consagrar verdadeira ‘barreira garantista’ à este aspecto subjetivo que é inseparável do ato decisório.

Nesse diapasão, além de firmar algumas premissas psicanalíticas e argumentativas basilares, iremos traçar um paralelo com a película Doze Homens e uma Sentença2, de forma ilustrativa apenas - para demonstrar o caminho que trilhamos (até porque, na decisão tomada por um corpo de jurados é que este processo melhor se demonstra).

2. Aspectos anímicos da decisão: um resgate à psicanálise

Uma das leis básicas que rege todo o tipo de relação em nosso universo é a conhecida Lei da Causalidade (das Causas e Efeitos), segundo a qual toda ação importará certas conseqüências, por vezes previsíveis, mas não em outras. Assim, na mesma medida que um ato contrário ao ordenamento jurídico resultará na imposição de uma sanção, temos que a tomada de uma decisão (enquanto ação que é) também resultará em certas conseqüências, especialmente para quem está diretamente submetido ao seu conteúdo, em face de uma relação de cogência.

Por isso, a decisão daquele que detêm a jurisdictio deve ser permeada de grande cautela, e mais, deve estar minuciosamente motivada; afinal de contas, este ato irá diretamente interferir na esfera de individualidade dos sujeitos, podendo ocasionar situações nefastas. Não por outra razão, é usual apregoar que este processo decisório deve estar alheio a elementos de ordem subjetiva.

Contudo, devemos perceber que afastar por completo a subjetividade de um ato decisório seria como extirpar órgão vital do ser humano, afinal de contas, os dados anímicos fazem parte da história e vida do ser, de modo que, se retirada fosse, este deixaria de existir como ele é – em nosso caso, estaríamos, pois, desnaturalizando a essência da decisão. Neste tocante, Jacinto Nelson de Miranda COUTINHO assevera que “faz-se de conta que a subjetividade não existe, ou melhor, sua existência, quando admitida, encontra total controle no livre convencimento”. E segue, afirmando que “o juiz, de regra, é apresentado como um robô, um ser transparente através do qual flui a ‘vontade’ da lei; e alguns, falando sério, acreditam realmente que ela a detém. Ignora-se, quase por completo, o homem, em um esforço incomum visando enclarar nele – e em todos nós – a consciência de que sua função é espelhar uma vontade que não é sua”3.

Até porque, por mais que o juiz se esforce para ser objetivo, “está sempre condicionado pelas circunstâncias ambientais nas quais atua, pelos seus sentimentos, suas inclinações, suas emoções, seus valores (...). A imagem proposta por BECARRIA do juiz como ‘investigador imparcial do verdadeiro’ é, sobre este aspecto, fundamentalmente ingênua”4. Por isso, qualquer afirmação no sentido de que o processo decisório seja algo estritamente mecânico, pautado exclusivamente em uma atividade motora do julgador de observar os fatos e submetê-los ao texto normativo cabível, não passaria de uma grande e quimérica falácia5; até porque, se assim fosse, a função jurisdicional deveria ser imediatamente subtraída dos homens e repassada às máquinas.

Nesses termos, encaramos que a subjetividade deva tomar uma nova dimensão no universo jurídico6, pois não podemos mais negar valor à vontade e às peculiaridades da esfera psíquica do julgador, mas sim, devemos tratar de fixá-la nos parâmetros adequados. E é neste sentido que, ao conceber a existência de um aspecto interior à decisão (em nosso caso, a judicial), impõe-se igualmente a necessidade de estabelecer-lhe certos limites; e é isso o que propomos ao final desta explanação.

Não por outra razão, o já citado professor COUTINHO destaca que “a subjetividade deve ser considerada no espaço das disposições que as partes mantém sobre o caso (penal), chegando a ponto de impor um verdadeiro obstáculo à jurisdição em seu escopo derradeiro”7– que seria o de realizar o Direito e fazer a tão propugnada Justiça. Lembra-nos, ainda, que a subjetividade das partes (em um processo) pode ser mais facilmente controlada, de maneira a contrabalançar os interesses destas; todavia, no que tange à jurisdição, falar em controle de aspectos subjetivos implicaria em uma digressão ao passado para ressuscitar as mais diversificadas experiências de vidas, algumas positivas, outras fracassadas – o que, por certo, torna tal missão bastante complexa, senão inglória.

Falar dos aspectos internos que envolvem a tomada de decisão é falar de algo que se encontra na esfera psíquica do indivíduo, e isso nos impõe a árdua tarefa de tecer alguns comentários acerca da mente humana e seu funcionamento - principalmente, no que diz respeito ao papel desenvolvido pelo inconsciente na produção final de uma decisão judicial. Afinal de contas, é dela que será extraída boa parte do convencimento do julgador, embora isto, destaque-se, nem sempre seja facilmente perceptível - nem para o próprio ser e menos ainda para os destinatários da decisão por ele tomada.

É desta maneira que, aqui, nos filiamos a outros tantos que propugnam por um verdadeiro abrir de portas à interdisciplinaridade, em suas mais variadas formas e cores, sob pena de não conseguirmos compreender tal processo. Sábias foram as formulações de WARAT neste sentido, ao nos incitar para o deslocamento de nosso mundo confortável da estabilidade e da segurança jurídica para outras direções, no sentido de abrirmo-nos às múltiplas armadilhas da narrativa científica que de resto, comporta nossas próprias armadilhas.8

Para a nossa hipótese, buscaremos uma possível aproximação entre o Direito e a Psicanálise, mesmo que ciente das dificuldades daí decorrentes.9 Como bem destaca Rodrigo da Cunha PEREIRA10, “não é muito simples fazer a interlocução Direito e Psicanálise, principalmente porque temos de rever conceitos muito estáveis no campo do Direito. Entretanto, torna-se necessário e impositivo na contemporaneidade repensar os paradigmas e o sujeito do Direito a partir da Psicanálise. Esta traz para o pensamento jurídico uma contribuição revolucionária com a ‘descoberta’ do sujeito inconsciente”.

Afinal de contas, não podemos perder de vista que, embora sejam ciências que trabalhem sob perspectivas distintas, alguns dos postulados psicanalíticos, conceitos e impressões dela oriundas, podem perfeitamente ser empregados no momento da construção jurídica, afinal de contas, ambas as ciências - Direito e Psicanálise - trabalham, no fundo, com um mesmo objeto: a ação humana.

E neste tocante, vale lembrar que esta (a ação), enquanto fenômeno peculiar a nossa espécie, pode ser estudada e compreendida sob duas perspectivas: ação humana externa (como resultado que, potencialmente, atinge a outros) e ação humana interna (como resultado que atinge somente a esfera do agente); a primeira forma de ação está compreendida no campo das ciências sociais, enquanto que a segunda está compreendida no campo das ciências psicanalíticas. Contudo, há que se ressaltar, aqui, que tanto a ação humana interna como a externa possuem uma mesma estrutura conformadora - ambas são constituídas de três elementos principais: agente, ação (stricto sensu) e destinatário; e é exatamente isso o que nos possibilita traçar um paralelo entre estas e as respectivas ciências que as estudam.11

É, portanto, o momento da psicanálise penetrar definitivamente no mundo jurídico – consoante fomentado por COUTINHO12 -, e verificar em que medida as emoções, as paixões, as ansiedades e vicissitudes da vida (que atingem qualquer ser humano) poderão influir na tomada da decisão do julgador13. Embora, insistimos que a grande maioria dos juristas se revelem relutantes à esta investida; o que é perfeitamente compreensível, afinal de contas, temos medo de viver o que não entendemos, queremos sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendemos, não sabemos nos entregar à desorientação – Clarice LISPECTOR.14

Mas para compreender melhor este aspecto, é imprescindível fazer uma pequena digressão à teoria freudiana15, afinal de contas, foi ele que nos franqueou a “abertura” da mente humana16. Nesta, em termos gerais, estuda-se a conformação e o desenvolvimento da personalidade do indivíduo, tomando como base a estrutura...

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