Quando vulnerável não quer dizer incapaz

AutorEduardo Luiz Santos Cabette/Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette
CargoDelegado De Polícia/Bacharel Em Direito
Páginas100-110

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Introdução

O crime de “estupro de vulnerável”, previsto no artigo 217-A do Código Penal brasileiro, propõe-se a tutelar a dignidade e a liberdade sexual de pessoas que não têm o necessário discernimento para o consentimento em atos dessa natureza. Dentre os chamados “vulneráveis”, destacam-se as pessoas com deficiência mental.

Ocorre que, com o surgimento do denominado Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), os deficientes, inclusive mentais, deixaram, na seara civil, de ser incluídos entre os absolutamente incapazes. Essa alteração legal pode remeter a questionamentos sobre sua eventual repercussão no campo penal, mais especificamente no que se refere ao ilícito de “estupro de vulnerável”. Ao menos em tese, é possível questionar a efetiva condição de vulnerabilidade desses deficientes e a legitimidade da repressão penal contra qualquer pessoa que com eles mantenha alguma relação de caráter sexual consentida, ou seja, sem violência ou grave ameaça.

Há uma necessária intersecção entre o direito civil e o direito penal que deve ser tratada com base na interdisciplinariedade e mesmo na transdisciplinaridade, para se chegar a uma conclusão razoável, sem que o enfermo mental sem discernimento seja prejudicado, perdendo a proteção legal que, necessariamente, lhe deve ser conferida, mas também reconhecendo a autonomia e a liberdade inerentes às pessoas com deficiência, mesmo mental, detentoras de capacidade decisória suficiente para dar ou não seu consentimento em atos de natureza sexual. O tormentoso binômio liberdade/segurança será o desafio permanente nas linhas que se seguem.

Capacidade civil do enfermo mental e estupro de vulnerável: entre a segurança e a autonomia

Seja no estudo das inovações da capacidade civil dos enfermos mentais, seja na investigação do tema do “estupro de vulnerável” na seara penal, é possível perceber que a doença mental, por si só, desde sempre, não tem o condão de conferir a seu portador

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incapacidade para os atos da vida civil nem vulnerabilidade como vítima criminal ou mesmo de ensejar a ultrapassada “presunção de violência” nos crimes sexuais.

Ademais, a alteração promovida no campo civil não necessariamente tem efeitos transcendentes para o âmbito criminal. Isso considerando o fato de que os critérios para aferição de capacidade em cada uma das searas em destaque são diversos.

A primeira questão a ser respondida é se invariavelmente uma mudança sobre a capacidade civil precisa exercer alterações na esfera penal. E a resposta é negativa. Os campos civil e penal são independentes, e os critérios de aferição da capacidade civil e da capacidade penal são completamente diferentes.

O Código Civil adota o critério do “discernimento”, enquanto no campo penal e processual penal aceita-se o critério “político-jurídico”. Com base na régua do discernimento, avalia-se a capacidade civil de acordo com a efetiva demonstração de capacitação de cada pessoa para o exercício dos atos da vida civil. É por isso que o menor casado é considerado capaz; que o menor que se gradua em universidade torna-se capaz; que pode haver o instituto da emancipação.

Já no campo penal e processual penal o parâmetro é estritamente político, ou seja, são admitidas certas idades e regras para cada situação. Por exemplo, o estabelecimento da inimputabilidade até os 18 anos não comporta alteração, independentemente da capacidade civil da pessoa. A idade limite é restringida por força legal. Se um menor de 18 anos emancipado, casado ou com nível superior de ensino vier a cometer um ato definido como crime ou contravenção, irá responder de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente normalmente (Lei 8.069/90), e não como um imputável. Isso ocorre porque os cânones de ordem civil e penal são diversos e incomunicáveis, inclusive no esteirado disposto no próprio artigo 2.043 do Código Civil.

Nesse diapasão, Torres oferta interessante exemplo de desvinculação entre capacidade civil e penal, lembrando que o maior de 70 anos é dotado de especial tratamento no Código Penal (artigo 115, CP – prazo prescricional contado pela metade). Acrescente-se o especial tratamento dos maiores de 60 anos na área penal com aumentos de pena quando são vítimas e agravantes especiais, após o advento do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03 – v.g. artigo 61, II, “h”, CP ou artigo 121, § 4º, “in fine”, CP). Não obstante, não ocorreu a ninguém afirmar que tais dispositivos fariam com que na seara civil os maiores de 60 ou 70 anos passassem a ser considerados incapazes ou relativamente capazes por influência do Código Penal ou mesmo do Estatuto do Idoso. Não, a capacidade civil do maior de 60 ou 70 anos é indiscutível, a não ser que sofra de doença mental ou moléstia incapacitante, o que também pode ocorrer com pessoa muito jovem – de 18, 20 ou 30 anos.

Mais impactante ainda é outra assertiva de Torres, demonstrando que o reverso da moeda, ou seja, a influência do penal no civil, também não se pode operar devido à discrepância de critérios e independência de instâncias. Veja-se em suas oportunas palavras:

Por derradeiro, para colocar uma pá de cal sobre essa questão, lembre-se de que a responsabilidade penal ou a imputabilidade reconhecida pelo sistema penal jamais teve o condão de interferir nos limites da capacidade civil. Com efeito, o artigo 23 da antiga Parte Geral do CP entrou em vigor em 1940, e o artigo 27 da nova Parte Geral do mesmo Código é de 1984, ou seja, esses dois dispositivos penais entraram em vigor depois da edição do Código Civil de 1916, mas isso não autorizou nenhum jurista a afirmar que a responsabilidade ou a imputabilidade penal dos maiores de 18 anos estaria tornando-os plenamente capazes para os atos da vida civil, revogando assim o antigo artigo 9º do CC, que previa a capacidade civil plena somente a partir dos 21 anos de idade.

E segue afirmando:

Definitivamente, não há confundir “menoridade civil” com “menoridade penal”, que são dois institutos distintos e com efeitos absolutamente diferenciados nos respectivos sistemas em que têm aplicabilidade específica.

Assim sendo, nada mais óbvio do que o fato de que a alteração da capacidade civil dos enfermos mentais levada a termo pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15) não tem, por si só, força para alterar de qualquer maneira a aplicação, interpretação e, especialmente, a vigência de normas penais que tratem da matéria.

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Uma observação percuciente do tema demons-tra que nem o próprio legislador, em momento algum, pretendeu deixar as pessoas com deficiência mental desprotegidas. A ideia matriz das alterações foi conferir à pessoa doente ou deficiente mental o reconhecimento de autonomia para os atos da vida civil, desde que não comprovada no caso concreto e de forma indiscutível a necessidade de assistência ou até mesmo de representação. Pensar a alteração legislativa de outra forma seria uma afronta à dignidade humana dessas pessoas e inclusive à sua liberdade, integridade física, moral, patrimonial. Isso sem falar na flagrante infração ao princípio da igualdade sob o prisma material, e não somente formal.

E não poderia ser de outra forma, pois o reconhecimento da vulnerabilidade da pessoa humana nas suas mais variadas configurações é aspecto a ser destacado na Constituição da República de 1988. Com efeito, ao elevar a dignidade a vértice do ordenamento jurídico, optou o constituinte por se afastar das categorias abstratas e formais em prol de hermenêutica emancipatória. Tal diretriz axiológica tem sido designada como mecanismo de repersonalização promovido pela Constituição da República, que desloca a proteção do sujeito de direito abstrato e neutro para a pessoa concretamente considerada, em atenção aos princípios da solidariedade e da isonomia substancial.

Como ensina Sen, a salvaguarda dos direitos humanos não se pode dar por uma interpretação fria e inflexível da legislação. Há muitas vias de tutela e promoção dos direitos humanos, afora a legislação, e essas vias têm entre si uma “considerável complementaridade”:

A ética dos direitos humanos pode se tornar mais efetiva com uma variedade de instrumentos inter-relacionados e uma versatilidade de meios e maneiras. Essa é uma das razões pelas quais é importante reconhecer o estatuto ético geral dos direitos humanos, o que lhe cabe, em vez de encerrar prematuramente o conceito de direitos humanos no quadro estreito da legislação, real ou ideal.

Essa necessidade de concreção da análise da capacidade para atos é muito bem destacada no Enunciado 138 da III Jornada de Direito Civil, assim redigido: “A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inciso I do artigo 3º, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto” (grifo nosso).

Assim sendo, “os efeitos da incapacidade devem ser proporcionais à exata medida da ausência do discernimento”, a fim de que não se tolha, sob pretexto protetivo, a autonomia do sujeito, mas também não seja abandonado desprotegido quando precisa desse manto protetor da lei.

Nesse sentido, a lição de Fiuza é oportuna:

O objetivo da lei é, evidentemente, o de preservar, ao máximo, na medida do possível, a autonomia do deficiente, respeitadas as limitações do caso concreto. A regra de que a curatela só atinja relações patrimoniais deve ser interpretada segundo esse contexto, isto é, sempre que possível, o curador não deverá interferir nas relações existenciais, a fim de preservar a autonomia e a dignidade do curatelado. Entretanto, relações existenciais que tenham efeitos patrimoniais estariam dentro do campo de atuação do curador, e, em al-guns casos, dependendo da gravidade da deficiência, mesmo as que não tenham efeitos patrimoniais, para se evitar prejuízos materiais, e para que sejam...

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