Quem enxerga a população LGBT encarcerada?

AutorBarbosa, Larissa
CargoA lgbtfobia institucional sob a perspectiva da criminologia cr

Introdução

O presente artigo aborda o tema do encarceramento da população LGBT numa perspectiva da Criminologia Crítica Queer. Propõe-se analisar, a partir da Criminologia Crítica, os dados disponíveis das condições da privação de liberdade desses sujeitos no estado do Rio de Janeiro e identificar como a lgbtfobia institucional (lgbtfobia judicial e lgbtfobia administrativa) se reproduz no cárcere fluminense.

Embora não existam dados oficialmente divulgados pela Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, a pesquisa documental foi possível através da consulta à base de dados "Luz no Cárcere" (1) mantida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Neste site, estão compilados os relatórios elaborados pelos órgãos estaduais da execução penal (Vara de Execuções Penais, Defensoria Pública, Ministério Público e Secretaria de Administração Penitenciária) e pelos órgãos administrativos de monitoramento e fiscalização do sistema penitenciário (Departamento Penitenciário e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura). Também foram consultados relatórios da Anistia Internacional e do Conselho Nacional de Justiça, totalizando mais de 220 documentos. A pesquisa foi realizada, no ano de 2019, nos documentos disponibilizados nos sites à época, produzidos entre 2011 e 2017.

Para verificar se foram adotadas providências concretas de enfrentamento às situações de violência lgbtfóbica institucional registradas nos relatórios, foram efetuadas, na segunda fase da investigação, pesquisas jurisprudenciais no Supremo Tribunal Federal (STF), no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Na instância ordinária, foi encontrado somente um julgado e, nos tribunais superiores, foram encontradas 9 decisões (sendo 7 no STJ e 2 no STF) que não se referiam a casos do Rio de Janeiro. Inicialmente, não foi estabelecido um marco temporal para a pesquisa. No entanto o tema só começa a aparecer nos relatórios e nos julgados a partir de 2015 demonstrando que as instituições públicas deram visibilidade e notoriedade ao assunto recentemente.

As técnicas de pesquisa utilizadas permitiram delinear um panorama das iniciativas institucionais voltadas à garantia dos direitos da população LGBT privada de liberdade e ao enfrentamento da violência lgbtfóbica. A partir da identificação dos sofrimentos e das violências suportadas por esses sujeitos, será possível demonstrar a importância da construção de políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos LGBTs no cárcere.

A análise teórica a partir da Criminologia Crítica Queer, por sua vez, possibilitará refletir sobre o sistema penal e os discursos jurídicos que fazem circular normas de gênero e sexualidade, além da manutenção das estruturas econômicas da sociedade. Dessa maneira, será verificada a presença de argumentos lgbtfóbicos na construção do discurso jurídico, sobretudo nos julgamentos de demandas envolvendo direitos da população LGBT encarcerada.

Apresentaremos, em primeiro lugar, o diálogo entre Criminologia Crítica e Teoria Queer como referenciais de análise da violência lgbtfóbica em sua dimensão institucional e estrutural, cujo resultado é a construção de sistemas de controle fundados em um ideal de masculinidade hegemônico.

Após a apresentação dos dados de pesquisa, serão analisados os discursos e as práticas lgbtfóbicas presentes no cotidiano das instituições de privação de liberdade e do poder judiciário, demonstrando que a violência institucional observada no cárcere também é atravessada por dimensões lgbtfóbicas ao categorizar e hierarquizar sujeitos dissidentes da cisheteronorma (2) violando-lhes direitos em razão de suas identidades transgressoras. Como se observará, a violência lgbtfóbica no âmbito das instituições públicas se manifesta não só por agressões físicas, sexuais e verbais, mas também de forma sutil e simbólica por meio da invisibilização dos sujeitos e de suas demandas.

  1. A viabilidade da criminologia crítica queer

    A Criminologia Crítica Queer permite a aproximação entre dois campos de estudo que aparentemente parecem ter objetos de análise incompatíveis: a Criminologia Crítica, direcionada à análise das funções políticas e econômicas dos processos de criminalização; e a Teoria Queer, voltada para os processos de subjetivação norteados por normas de gênero e de sexualidade. Na confluência, a Criminologia Crítica Queer se ocupa das violências estrutural e institucional que se manifestam nos mecanismos de controle social através da projeção de "um ideal de masculinidade hegemônico" (CARVALHO, 2012a, p. 161). Assim, procura tensionar os discursos criminológicos tradicionais a partir da crítica à lgbtfobia para avaliar "as condições de possibilidade de reconhecimento de uma criminologia queer (queer criminology) ou desenvolvimento de uma abordagem queer na criminologia (queering criminology)" (CARVALHO, 2012a, p. 152).

    Dessa maneira, procuramos refletir sobre como o sistema penal também faz circular e normaliza discursos de gênero e sexualidade, sofisticando a hierarquização de sujeitos junto às estruturas de classe. O objeto de análise será, portanto, a violência lgbtfóbica, compreendida em três dimensões: a) a violência interpessoal (violência contra a pessoa e sexual); b) a violência institucional (Estado lgbtfóbico); e c) a violência simbólica (cultura e gramática heteronormativa) (CARVALHO, 2012a (3)). O ponto de convergência situa-se no entendimento de que ambas as perspectivas prático-teóricas (criminologia crítica e teoria queer) questionam e buscam desconstruir sistemas de privilégios e de desigualdades estruturantes da sociedade ocidental e capitalista, tanto na análise do sistema de classes quanto na crítica aos padrões biológicos e culturais impostos com base no sexo e no gênero. A aproximação entre esses campos teóricos permitirá, portanto, pensar nas diferentes violências vivenciadas pela comunidade LGBT e refletir sobre o papel das instituições na sua reprodução e manutenção.

    Apresentada a justificativa (e a defesa) da Criminologia Crítica Queer, faz-se necessário destacar cada uma das suas contribuições para a discussão proposta.

    A Criminologia Crítica desenvolve-se na segunda metade do século passado, marcando a passagem de uma abordagem microssociológica para uma perspectiva macrossociológica nas ciências criminais ao desvelar como as estruturas sociais edificam os sistemas belicistas de controle social ("combate ao crime e à criminalidade"). Como afirma Cirino (s.t.), existe uma correspondência dialética entre as relações econômicas, as relações políticas e relações jurídicas. Abandona-se, então, o paradigma etiológico do estudo das causas individuais da criminalidade para voltar a atenção para os processos de criminalização, privilegiando o estudo da violência institucional. Albrecht conclui que, ao voltar os olhos ao Estado, ao Direito e aos órgãos de persecução penal, a Criminologia Crítica reconhece "que a criminalidade, como fenômeno social, é ativamente produzida pela persecução penal estatal" (ALBRECHT, 2010, p. 26).

    A Criminologia Crítica situa a criminalização de condutas no contexto das relações de poder de modo a evidenciar como o sistema penal cumpre uma importante função na manutenção da estrutura política, econômica e social (BATISTA, 2011). Conforme explica Alessandro Baratta, ao questionar o paradigma etiológico, "a criminologia crítica historiciza a realidade comportamental do desvio e ilumina a relação funcional ou disfuncional com as estruturas sociais, com o desenvolvimento das relações de produção e de distribuição" (BARATTA, 1999, p. 160).

    Desde uma perspectiva analítica de base econômico-estrutural, a crítica desfaz o mito de que o direito penal opera de maneira isonômica, incidindo indistintamente em todos os indivíduos que praticaram delitos. A criminalidade deixa de ser um aspecto individual do sujeito para ser encarada como resultado de um processo histórico em que as classes dominantes definem seus inimigos atribuindo-lhes o status de criminoso. Alessandro Baratta situa os processos de criminalização política e econômica demonstrando que o sistema penal funciona para atender aos interesses da classe social dominante com a finalidade de perpetuar as desigualdades sociais e econômicas (BARATTA, 1999).

    O autor demonstra que o sistema penal opera em dois movimentos de criminalização que acontecem em momentos distintos, mas igualmente de forma seletiva: criminalização primária, no âmbito legislativo; e criminalização secundária, na esfera das agências de persecução penal. Essa dupla seletividade culmina na realidade carcerária que funciona como dispositivo disciplinador dos sujeitos que não estão inseridos na estrutura produtiva do sistema capitalista. Assim, "o cárcere representa, geralmente, a consolidação definitiva de uma carreira criminosa" (BARATTA, 1999, p. 167); ou, como sintetiza Foucault em "Vigiar e Punir", "a penalidade não 'reprimiria' pura e simplesmente as ilegalidades; ela as 'diferenciaria', faria sua 'economia' geral" (FOUCAULT, 2011, p. 258).

    Se a Criminologia, em sua vertente crítica, apresenta o sistema penal como o principal instrumento para a manutenção das relações de poder e de dominação, a Teoria Queer qualificará esses sistemas de dominação, demonstrando que as classes privilegiadas também exercem o controle através de padrões de gênero e de sexo.

    A Teoria Queer sustenta que as normas sociais e jurídicas se sustentam no heterossexismo e funcionam como dispositivos de controle dos gêneros e sexualidades. A heteronormatividade se concretiza nos binarismos homem/mulher, sexo/gênero, heterossexual/homossexual. São essas (hetero)normas que categorizam os sujeitos como normais ou abjetos/anormais, garantindo apenas aos primeiros o respeito aos direitos positivados. Semelhante, portanto, ao processo de criminalização dos sujeitos subalternos escolhidos como inimigos, conforme decifrado pela Criminologia Crítica.

    O pensamento...

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