"Quem nasce em Bacurau é o quê?": do perspectivismo à autoafirmação em Bacurau/"Who is born in Bacurau is what?": from the perspectivism to the self-affirmation in Bacurau.

AutorMoita, Cristiano

O cinema brasileiro recente, das últimas décadas, reinaugura uma estética violadora de paradigmas e expectativas: onde se esperava uma arte reprodutora da representatividade social brasileira assimétrica, encontrou-se a erosão de estigmas de maneira radical, colocando como símbolos de poder, nas suas mais variadas formas, figuras representativas de grupos tradicionalmente excluídos. Na falta de um termo ou uma expressão classificatória sedimentados pela crítica para o período, pode-se dizer que "recente", aqui, corresponde à produção cinematográfica posterior ao Cinema da Retomada, cujo início teve como ápice o sucesso Carlota Joaquina (1995) e cujo fim teve como ápice Cidade de Deus (2002). Certamente, a característica distintiva desse período não é um tipo particular de produção, um recurso narrativo próprio ou uma estética peculiar. Como o próprio nome sugere, a característica marcante do Cinema da Retomada é precisamente a... retomada, o ressurgimento do cinema nacional. Não por outra razão, seu "fim", com Cidade de Deus, não deve ser entendido como declínio, mas como estabilização da produção cinematográfica brasileira. (*1)

Também por essa mesma razão, não se pode cravar que houve uma cisão em termos de influências estéticas entre o Cinema da Retomada e o cinema recente. Pelo contrário. Em muitos casos, há influxos nítidos, como é o caso da tematização de dimensões da estrutura social desigual brasileira, e.g., pelo prisma das regiões (coteje-se Central do Brasil [1998] com Que horas ela volta? [2015]) ou pelo prisma da violência urbana (Ônibus 174 [2002], Carandiru [2003], Tropa de Elite I [2007], Tropa de Elite II [2010]). Nesse mesmo contexto de tematização da desigualdade social, veja-se o recurso ao personagem-mediador, que não só participa da narrativa como a comenta para a audiência (Brás Cubas em Memórias Póstumas de Brás Cubas [2001], Dora em Central do Brasil [1998], Dráuzio Varella em Carandiru [2003], Capitão Nascimento em Tropa de Elite I [2007] e Tropa de Elite II [2010]).

Por essas razões, não houve propriamente uma ruptura entre o Cinema da Retomada e o cinema recente. Também, pelas mesmas razões, é difícil encontrar solução de continuidade entre os filmes da década de 2000 e 2010, em que elementos já conhecidos do cinema brasileiro da década de 1990 voltam a estar presentes. Entretanto, há, sutilmente, uma diferença na semelhança, sobretudo quanto à abordagem da estrutura desigual. Não há propriamente uma ruptura, mas uma acentuação ou gradação em características já sugeridas por filmes anteriores. A diferença passa a ser de grau. Há, por assim dizer, uma intensificação do brilho da luz cotidiana que adentra nossas retinas. Aquilo que é claro torna-se claro demais--a ponto de incomodar. O que incomoda não é a vulgarização ou afetação de um aspecto do cotidiano ou seu tratamento sutil ou colateral; na verdade, o que incomoda é a sua tematização direta, o escancaramento do cotidiano. Em Que horas ela volta? (2015), a realidade da empregada doméstica e as relações de seu entorno, impregnadas em nosso cotidiano, é escancarada. Em Aquarius (2016), escancara-se a especulação imobiliária e a linguagem simbólica que lhe empresta preponderância (avanço, emprego, inovação etc.), que subjuga o patrimônio histórico e ambiental de uma cidade ou mesmo os interesses de um indivíduo de preservar sua própria história. Também essa especulação colonizadora de outros interesses está impregnada em nosso cotidiano--e também incomoda. Por fim, com características semelhantes de escancaramento da realidade, Bacurau (2019) parece caminhar na mesma senda, embora com peculiaridades que nos força a pinçá-lo desse grupo. Em primeiro lugar, quanto à quantidade de temas cotidianos: enquanto em Que horas ela volta? e em Aquarius, há um tema cotidiano escancarado, em Bacurau há vários, cada um sendo exposto entrelaçado com outro, gerando um incômodo múltiplo com a nossa realidade cotidiana. Bacurau confronta o espectador com vários preconceitos cotidianos de seu entorno: preconceito de classe, de cor, de gênero, de região e de país.

A despeito das diversas possibilidades de investigação de tais obras do cinema da última década pela ótica de uma teoria crítica, opto aqui por fazer uma incursão filosófica possibilitada pela construção estética de tais filmes, em particular de Bacurau. Considerando que a experiência audiovisual proporcionada pelo cinema tem um valor epistemológico e prático, pretendo associar à narrativa de Bacurau, a partir de três cenas, o perspectivismo e a autoafirmação em Nietzsche. Farei, portanto, uma interpretação do filme a partir de algumas perspectivas e concluirei que tais perspectivas são autoafirmadoras. Nesse sentido, assim como outros, Bacurau pode ser considerado um filme de resistência, não porque assim o professa imediatamente, mas porque deixa ser apropriado como símbolo de autoafirmação.

1. Perspectivismo e interpretação (2)

Bacurau sugere um modo diferente de se ver as coisas. Novas perspectivas sobre relações tradicionalmente estabelecidas são possíveis de serem extraídas do filme. É conveniente abordá-lo do ponto de vista de Nietzsche sobretudo porque o perspectivismo tem um lugar central em sua filosofia. "Perspectivismo" não deve ser entendido como um mero exercício empático de considerar opiniões diferentes. Há um sentido epistemológico mais profundo, que tem que ver com a própria manifestação do ato de conhecer. Mas é verdade que Nietzsche recorre a expressões que contêm a palavra "perspectiva" para fazer críticas, geralmente qualificando seus alvos pela falta ou estreiteza de perspectivas. Por exemplo, ao criticar a moral, "que ensina o estreitamento das perspectivas e, pois, em certo sentido, a estupidez como condição de vida e de crescimento" (2); ao indicar o erro fundamental de se considerar a consciência não como ferramenta ou particularidade no todo da vida, mas como critério, como condição valorativa mais superior da vida, "em suma: a defeituosa perspectiva do a parte ad totum" (3); ao criticar o cristianismo, "com sua perspectiva de 'salvação' como um típico modo de pensar para uma espécie pobre e sofredora de homem" (4); ao criticar a "perspectiva da culpa" inaugurada pela interpretação do ideal ascético (5). Outras qualificações igualmente pejorativas: "perspectiva míope" (6), "perspectiva patética" (7), "perspectivas costumeiras" (8).

Há um fragmento póstumo (9) particularmente interessante por conter não só outro ataque, mas também por já insinuar uma elaboração do papel fundamental de seu perspectivismo. É nele onde se encontra o famoso dito "não há fatos, somente interpretações". Por um lado, Nietzsche ataca o positivismo, que adota como premissa a assunção de que só existem fatos. Mas não podemos alcançar um fato, percebê-lo puro, em sua natureza; não existe fato "em si". O que se entende por constatação de um fato é, em última instância, a interpretação levada a cabo por um impulso vencedor na concorrência com outros impulsos. E aí, por outro lado, se insinua um princípio de elaboração do perspectivismo. Os fatos, na verdade, são uma elaboração interpretativa que parte do corpo. Nesse sentido, uma interpretação nunca é do sujeito, até porque sujeito não há (10); a interpretação é do corpo: "Nossas necessidades é que interpretam o mundo: nossos instintos e seus prós e contras. Cada instinto é uma espécie de desejo de dominação, cada um tem sua perspectiva, que gostaria de impor como norma a todos os outros instintos" (11).

Como o corpo é o ser interpretante, como são as pulsões que impõem uma interpretação do mundo, uma espécie de relativismo pode ser sugerida. No mesmo fragmento, pode parecer que Nietzsche, ao rejeitar o subjetivismo, parte em direção a um relativismo ainda mais radical: "'É tudo subjetivo' você diz: mas isso já é uma interpretação, o 'sujeito' não é algo dado, mas algo que foi adicionado, algo por trás dele.

--É finalmente necessário colocar o intérprete por detrás da interpretação? Isso já é poesia, hipótese.". Ora, o subjetivismo pelo menos pressupõe um sujeito que controlaria os resultados de uma interpretação; implodido o sujeito, então, toda interpretação passa a ser possível e potencialmente legítima. Esse consequente, todavia, é errôneo para Nietzsche. Há um ser que interpreta e há uma razão para interpretar na qual se embute um critério de interpretação. O corpo (ser que interpreta) interpreta porque tem necessidades (razão para interpretar). E o critério (12) de interpretação é a bela hipótese que se encontra no cerne da filosofia nietzschiana: a expansão da vida, que é, por sua vez, a expansão da vontade de poder (13): "O critério da verdade. A vontade de poder como vontade de vida--de vida ascendente." (14). O corpo, enquanto conjunto de pulsões, é o locus da vontade de poder, do que se conclui: "A vontade de poder interpreta [...] Na verdade, a interpretação é um meio mesmo para se tornar senhor de algo. (O processo orgânico pressupõe um contínuo interpretar)" (15). A interpretação enquanto avaliação, escolha e descrição de aspectos da realidade, é manifestação do organismo que, em última instância, visa assenhorear-se do objeto interpretado. A interpretação correta, boa, autêntica, é, portanto, a que conflui com a defesa, afirmação e expansão da vida e da vontade de poder.

Levado às últimas consequências, esse perspectivismo, que rebaixa a objetividade positivista da descrição de fatos a ponto de fazê-la desparecer, parece forçar uma radical revolução epistemológica, uma alteração profunda do modo como encaramos a realidade. E é de fato isso que Nietzsche pretende. Justamente ele, por ser experimentado em ver perspectivamente (16), é quem propõe levar a cabo uma completa transvaloração de valores, chegando, eventualmente, a sugerir uma significativa, por assim dizer, reformulação metodológica de algumas áreas do conhecimento.

No lugar dos valores morais, somente valores naturais. Naturalização da moral. No lugar da...

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