Questão federativa e sistema penitenciário

Páginas31-78
31
2
Questão Federativa e Sistema Penitenciário3
Beto Vasconcelos4
José Eduardo Martins Cardozo5
Marivaldo de Castro Pereira6
Renato Campos Pinto De Vitto7
“Imagens fortes da chacina do Complexo Penitenciário Antônio Jobim (Compaj),
em Manaus, que deixou 59 mortos, foram transformadas em um lme. “FDN x
PCC – O Massacre” é o nome do título do DVD, que já não é possível encon-
trar. De acordo com informações da Folha de S. Paulo, não há mais exemplares
do lme nas barracas e camelôs da capital. Todos foram esgotados. ‘Na minha
banca, como a de todos aqui, tinha mais de dez DVDs, e acabaram todos no
domingo’, disse um vendedor no bairro da Compensa, na Zona Oeste da cidade,
que não quis se identicar.
O preço dos DVDs variava de R$ 2 a R$ 3. Se a demanda for grande, o valor
pode ser alterado. “Aqui a procura pelo DVD foi tanta que vendi a R$ 5”, diz
um ambulante no bairro São José, na Zona Leste.”8
3 O presente artigo foi originalmente publicado, com pequenas alterações, na Revista Culturas
Jurídicas, da pós-graduação de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense sob o
título “Questão federativa, sistema penitenciário e intervenção federal”– ISSN: 2359-5744, in http://
www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/issue/view/14 , acesso em 15 de maio de 2018.
4 Advogado, foi Secretário Nacional de Justiça
5 Advogado, foi Ministro da Justiça e Advogado Geral da União
6 Advogado, foi Secretário Executivo do Ministério da Justiça
7 Defensor Público, foi Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional
8 http://www.newsjs.com/url.php?p=http://midiabahia.com.br/geral/2017/01/18/dvds-sobre-mas-
sacre-em-presidio-do-am-estao-esgotados-em-camelos/, acesso em 02 de agosto de 2017.
32
Em janeiro de 2017, o Brasil ganhou as páginas da imprensa interna-
cional por situar seu sistema prisional como palco de um dos maiores
morticínios vericados em unidades penais de todo o mundo. No total, até
o m da primeira quinzena de janeiro, contabilizaram-se mais de cento
e trinta cadáveres mutilados, decapitados ou carbonizados. Os episódios
repetiram-se em menor escala no início de 2018, quando conitos entre
grupos ou facções que atuam em presídios dos Estados de Goiás e Ceará
vitimaram cerca de vinte pessoas.
Para além da intrincada e necessária discussão sobre a atuação das facções
ou organizações criminosas no sistema penitenciário brasileiro, que merece
um olhar mais aprofundado e a articulação de estratégias de atuação mais
efetivas, a população assiste atônita a um quadro desalentador. Anal, se existe
um espaço que deveria inspirar segurança para o cidadão comum, este seria
o local que o Estado destina para que pessoas processadas ou condenadas
cumpram medidas ou penas que implicam privação de sua liberdade.
É necessário pontuar que mesmo para a metade da população brasileira
que arma acreditar que “bandido bom é bandido morto”9, a sensação de
anomia e ausência de controle que advém de tais acontecimentos passa a
ser um fenômeno que deve ser analisado, impactando a própria credibili-
dade do Estado de Direito.
De todo modo, a narrativa que se construiu em torno de tais acontecimen-
tos naturaliza uma abordagem dos episódios que atribui apenas às facções e
seus integrantes a responsabilidade sobre os eventos. Bárbaros agindo como
bárbaros e aproveitando o destino que se reserva para os bárbaros. Esse ponto
de vista, longe de parecer simplório, traz consigo a isenção de qualquer
responsabilidade do Estado no seu dever mais básico que é a garantia do
direito à vida, legitimando uma modalidade de pena de morte aplicável
potencialmente a todos que ingressam no sistema penitenciário, situação
absolutamente inadmissível, mesmo se considerarmos o mais draconiano
dos sistemas penais. E, ao ignorar a responsabilidade do Estado, desmobiliza
qualquer ação voltada a compreender quantos erros foram cometidos para
que um desfecho tão trágico tivesse lugar, além de inibir qualquer reação
voltada à prevenção de futuras tragédias.
9 Pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em
05 de outubro de 2015. In: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1690176-meta-
de-do-pais-acha-que-bandido-bom-e-bandido-morto-aponta-pesquisa.shtml, acesso em 02 de ju-
lho de 2017.
33
Como em um acidente aeronáutico, os eventos como os que ocorreram
nos Estados citados só se explicam pela concorrência de uma dezena de
fatores. Mesmo diante do impacto da extrema violência utilizada pelos
integrantes de determinadas facções na execução dos homicídios, temos
que indagar: como tais episódios podem ocorrer num equipamento público
voltado à aplicação de penas e à privação de liberdade, em que a contenção
e o controle deveriam ser importantes pilares organizacionais?
Em vários outros países, distúrbios de escala signicativamente menor
impulsionaram mudanças e reformas radicais no sistema penal e peniten-
ciário. Lamentavelmente, por aqui a degola de mais de uma centena de
corpos negros, jovens e pobres não parece ter movimentado nada além de
uma semana de manchetes e algumas reportagens especiais.
Em uma área geralmente relegada ao segundo plano, senão ao esqueci-
mento, como é a política penitenciária, os eventos referidos parecem, ao
menos, ter constituído movimentos tectônicos que intensicaram as tensões
federativas. Neste sentido, em maio de 2017, os Governadores dos nove
Estados da Região Nordeste subscreveram nota pedindo maior atenção da
União às pautas de segurança pública e sistema penitenciário. Do texto
apresentado, vale destacar a armação de que “cabe ao Governo Federal
apurar infrações penais contra a ordem política e social, assim como outras
infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e
exija repressão uniforme; bem como prevenir e reprimir o tráco ilícito de
entorpecentes e drogas ans”, extraindo-se, ainda, cinco propostas concretas
que envolvem maior participação da União na planicação e nanciamento
de um projeto nacional de segurança, intensicação de suas ações materiais
na política penitenciária, a partir de novas unidades prisionais federais,
além de alterações legislativas no nível federal que busquem frear o senso
de impunidade10.
Em janeiro de 2018, sete governadores das Regiões Centro-Oeste, Norte
e Nordeste subscreveram novo manifesto que enfatizava que “os entes fede-
rados enfrentam praticamente sozinhos os grandes desaos impostos pelo
avanço da criminalidade, sobretudo as ações de grupos organizados para o
tráco de drogas e crimes correlatos. As diculdades também englobam o
sucateamento das estruturas carcerárias, o efetivo das forças de segurança
pública insuciente, rebeliões, mortes e fugas frequentes no sistema pri-
sional, bem como leis inadequadas que incentivam a impunidade”. Após
10 Íntegra da nota disponível em http://www.agencia.se.gov.br/uploads/ckeditor/attachments/37/
governadores_seguran_a.pdf, acesso em 27/02/2018.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT