Raça, gênero e direitos humanos na política externa brasileira no governo bolsonaro (2019-2021)/Race, gender and human rights in Brazilian foreign policy in the Bolsonaro government (2019-2021).

AutorKyrillos, Gabriela M.

Introdução

Existem distintos modos de compreender as mudanças políticas que ocorreram no Brasil desde a reeleição do Presidente Lula (Partido dos Trabalhadores, PT), em 2006. Rocha e Solano (2021) afirmam que desde o segundo mandato do ex-presidente petista, os descontentes posicionados à direita do espectro político migraram para a internet em busca de um ambiente no qual poderiam se expressar livremente contra o governo, a esquerda e o chamado "politicamente correto". Acontecimentos marcantes como as Jornadas de Junho de 2013, as ações da Operação Lava Jato a partir de 2015 e o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff (PT) em 2016 refletem eventos de grande repercussão midiática; marcados por um discurso antissistêmico, anticorrupção, antipetista e patriótico. Tais discursos tinham em comum o rechaço à denominada "pauta identitária", na qual raça e gênero eram identificados como mordaças à liberdade de expressão e aos valores tradicionais do "povo" brasileiro.

Um dos poucos consensos das análises políticas atuais diz respeito ao surgimento de um novo populismo, a partir da ascensão e eleição de Jair Bolsonaro (eleito pelo Partido Social Liberal--PSL--e atualmente no Partido Liberal--PL). Nossa motivação nesta pesquisa foi analisar como o novo governo instaurado em 2019 tem alterado o perfil da Política Externa Brasileira (PEB), em especial no que diz respeito às agendas de gênero, raça, sexualidade e direitos humanos.

Para isso, analisamos todos (1) os discursos oficiais proferidos por Jair Bolsonaro e o Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo em fóruns internacionais de 01/01/2019 até 30/03/2021, quando da sua saída do cargo. Para realizar essa investigação de caráter qualitativo utilizamos a metodologia da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977). Foi um total de 66 discursos analisados, 12 de Bolsonaro e 53 de Araújo.

Essa pesquisa se insere, portanto, no campo da Análise de Política Externa (APE), a fim de compreender como as mudanças internacionais e nacionais impactam nas agendas de política externa e nos atores que dela participam. Nesse sentido, reconhecemos o papel central dos governos estatais na elaboração e execução da Política Externa, o que não implica desconsiderar os múltiplos agentes que influenciam nos processos de tomada de decisões. De fato, "[...] a APE é bastante atenta à interação das unidades de decisão governamentais com uma pletora de variados atores dentro e fora das fronteiras do Estado que influenciam a formação e implementação dessa política pública" (SALOMÓN; PINHEIRO, 2013, p. 41).

Assim sendo, partindo deste repertório teórico, priorizamos a sistematização e análise dos dados relacionados à forma como as questões raciais surgem nesses discursos, sem perder de vista o panorama político mais amplo. Além de identificar a baixa frequência de menção à termos como raça e racismo, traçamos algumas linhas explicativas, a partir de dois elementos fundamentais: o resgate particular do mito da democracia racial brasileira e um reforço à branquitude como um perene sistema de poder.

  1. Rupturas na Política (Externa) Brasileira

    São recorrentes as análises sobre a PEB que a divide em distintos momentos a depender da postura dos representantes brasileiros no sistema internacional, das relações com Estados parceiros, bem como, das características da política nacional no período. De nossa parte, consideramos relevante destacar as transformações políticas que ocorrem a partir da redemocratização.

    Nesse contexto, além da multiplicação dos agentes, percebemos as variações em relação às temáticas consideradas relevantes ou prioritárias, influenciadas por um complexo cenário de transformações globais e locais. Em âmbito internacional, vale mencionar o rompimento com o modelo bipolar de organização global após o final da Guerra Fria, as mudanças econômicas e políticas que a globalização impôs, assim como o avanço no campo das tecnologias da informação e a multitude de novas atuações transnacionais dos movimentos sociais (PINHEIRO; MILANI, 2011, p. 15).

    No que diz respeito às mudanças da PEB, há a ruptura gradual com o entendimento que a compreendia "[...] como política de Estado relativamente imune a mudanças e ingerências das agendas governamentais, e isso em grande parte devido ao profissionalismo, às capacidades de negociação do Itamaraty e à sua relativa autonomia na definição das agendas da PEB" (MILANI; PINHEIRO, 2013, p. 19). Conforme indicado por Lima (2000), a tradição da não politização da PEB começa a mudar em 1988, quando no cenário de redemocratização tornou-se essencial as negociações dos interesses e das disputas internas. Assim, entre as décadas de 1980 e 1990 multiplicam-se os agentes que impactam na criação e influenciam na execução da PEB (MILANI; PINHEIRO, 2013; ARAÚJO, 2017). Nesse contexto, de redemocratização no Cone Sul, o Brasil transitou para um modelo democrático no final da década de 1980 e se inseriu também no âmbito das agendas de Direitos Humanos, no cenário global.

    O campo dos Direitos Humanos, desde meados do século XX, tornou-se um dos mais relevantes no cenário político-jurídico global tanto quanto de soft power (ALVES, 2015). Nas últimas décadas, o Brasil buscava se alinhar com as agendas internacionais promovidas especialmente pelas Nações Unidas (ONU) e em outros fóruns multilaterais. Criou-se uma tradição na PEB de liderança e defesa dos direitos humanos com importante engajamento e protagonismo no que diz respeito à promoção da igualdade racial e de gênero (ARAÚJO, 2017).

    Instaurou-se nos governos do Partido dos Trabalhadores e, em especial, no Governo Dilma Rousseff, uma acepção de PEB sensível às desigualdades de gênero (ARAÚJO, 2017). Além disso, uma lógica transversal de gênero e raça passou a compor o cenário formal das políticas públicas, tendo como marcos significativos a Secretaria de Política para as Mulheres (SPM) e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).

    Essa compreensão de uma PEB sensível ao gênero toma como base diversos aspectos, dentre os quais, as pessoas envolvidas em sua elaboração e execução, as diretrizes elaboradas pelo Governo sobre a temática e a atuação dos movimentos feministas em diálogo (ainda que raramente livre de tensões) com a administração governamental (ARAÚJO, 2017). O cenário político brasileiro a partir de 2016, e principalmente após as eleições de 2018, apresenta rupturas com este campo discursivo progressista de alinhamento com as agendas internacionais de direitos humanos e de igualdade de gênero que se refletia também na PEB até então (SALOMÓN, 2016; ARAÚJO, 2017).

    Se o cenário de ruptura no que diz respeito às políticas de gênero já começa a estar documentado em diversas pesquisas (RODRIGUEZ, 2020; BIROLI, 2018; KYRILLOS; SIMIONI, 2021; GUIMARÃES; OLIVEIRA E SILVA, 2021; MELO, 2020), ainda são poucas as abordagens que se dedicam a compreendê-lo a partir de uma abordagem interseccional de raça (2) e gênero. Assim, buscando contribuir para a superação dessa lacuna, nossa preocupação inicial foi averiguar como a partir de 2016, e mais expressivamente a partir de 2019, a PEB transformou sua agenda no que diz respeito às questões de raça, gênero e direitos humanos.

    Desse modo, realizamos uma análise interseccional (CRENSHAW, 2002; COLLINS; BILGE, 2021) sobre a PEB do Governo Bolsonaro no que diz respeito aos marcadores raciais e de gênero. Para isso, buscamos identificar algumas aproximações e contrastes nos modos como essas temáticas emergem na atual PEB e nos discursos analisados.

    Identificar as marcas de transformações na PEB mais recente não é necessariamente algo original, uma vez que tanto o Poder Executivo quanto o Itamaraty buscaram ativamente demarcar essa diferenciação com as práticas e os discursos antecessores de exibição da PEB. A "nova PEB" se instala com o Governo provisório de Michel Temer (MDB) e acentua suas características neoconservadoras a partir do Governo de Jair Bolsonaro (PL). Conforme identificado por Flavia Biroli (2018, p. 684) quando Dilma Rousseff (PT) é deposta da presidência, o novo gabinete governamental de Michel Temer (MDB) passa a ser composto apenas por homens brancos e encerra o diálogo, até então existente, entre Governo e movimentos de mulheres e antirracistas; em um retorno aos estereótipos mais extremos e que se acreditavam superados: aqueles que negam a legitimidade da participação das mulheres no espaço político público.

    Com a eleição de Bolsonaro em 2018, há um acentuamento dos discursos neoconservadores que tem na falácia de ameaça comunista e de destruição da família em razão da "ideologia de gênero" alguns de seus elementos centrais.

    Alinhado ao Escola Sem Partido e à campanha protagonizada por evangélicos conservadores no Brasil, o presidente eleito Jair Bolsonaro destacaria o combate à 'ideologia de gênero' em seu discurso inaugural, em 1 de janeiro de 2019, antecipando sua incorporação à agenda do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Educação em seu governo. As campanhas antigênero se transformariam, assim, em políticas de caráter antiliberal e antidemocrático de governos eleitos com significativo suporte popular, nos quais o conservadorismo se apresenta alinhado a agendas econômicas ultraliberais. (BIROLI, 2019, p. 84) Esse campo discursivo e prático de oposição à igualdade de gênero é co-constituído por outros aspectos estruturantes como o racismo. Apesar de todas as suas limitações e contradições internas, a diplomacia brasileira desde a década de 1990 tornou o Brasil um dos países protagonistas dos processos de institucionalização de normas antirracistas no sistema da Nações Unidas e em outros fóruns multilaterais culminando "[...] na Conferência de Durban em 2001, com uma importante presença e posicionamento contra o racismo e impulsionando conceitos e debates de grande repercussão." (RODRIGUEZ, 2020, p. 8). A partir de 2019, observamos uma...

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