Reflexões sobre instrumentalidade, efetividade e reformas processuais

AutorMario Felippe de Lemos Gelli
CargoMestrando em Direito Processual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Advogado no Rio de Janeiro.
Páginas191-206

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I Breve histórico da evolução do direito processual

Até o século XIX, o direito processual viveu o que se convencionou chamar de sua "fase sincrética". Ele era visto como simples meio de exercício de direitos, donde surgiu, para lhe designar, a tão criticada expressão direito adjetivo.

Naquela época, absolutamente não se reconhecia a autonomia da relação de direito processual frente à relação de direito material, tampouco, por conseqüência, a autonomia do direito processual como ciência. Como lembram ADA PELLEGRINI GRINOVER, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO e ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, esse "foi o longo período de sincretismo, que prevaleceu das origens até quando os alemães começaram a especular a natureza jurídica da ação no tempo moderno e acerca da própria natureza jurídica do processo"2.

Seguiu-se a esse tempo a chamada fase conceitual do direito processual, em que se apregoou o reconhecimento da não-identidade entre as relações de direito processual e as relações de direito material. A grande preocupação dos estudiosos da época foi a de, afastando-se o pensamento sincrético então prevalecente, afirmar a autonomia científica do direito processual. Veja-se o que, sobre o tema, escreveu CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO:

"Foi esse sincretismo jurídico, caracterizado pela confusão entre os planos substancial e processual do ordenamento estatal, que no século XIX principiou a ruir. Primeiro, questionou-se o tradicional conceito civilista de ação e afirmou-se sua grande diferença, seja no plano conceitual ou funcional, em face da actio romana: ela não é (como esta) instituto do direito material, mas processual; não se dirige ao adversário, mas ao juiz; não tem por objeto o bem litigioso, mas a prestação jurisdicional. A celeuma provocada por essas afirmações revolucionárias (hoje, tão naturais aos olhos do jurista moderno), acabou gerando reações em cadeia, que chegaram até à plena consciência da autonomia não só da ação, mas dela e dos demais institutos processuais. A primeira dessas repercussões foi a tomada de consciência para a autonomia da relação jurídica Page 192processual, que se distingue da de direito substancial pelos seus sujeitos, seus pressupostos, seu objeto. Com a descoberta da autonomia da ação e do processo, institutos que tradicionalmente ocupavam com exclusividade a primeira linha das investigações dos processualistas, pôde ser proposta desde logo a renovação dos estudos de direito processual, surgindo ele como ciência em si mesma, dotada de objeto próprio e então esboçada a definição de seu próprio método."3

Com o passar do tempo, verificou-se que o grande desenvolvimento do direito processual nessa fase autonomista ou conceitual culminara na exacerbação dos institutos processuais em detrimento da própria finalidade do processo. Em outros termos, os estudiosos do ramo haviam concentrado seus esforços no exame dos respectivos institutos e conceitos fundamentais, deixando de lado a análise dos resultados concretos do processo na vida das pessoas.

Obviamente, estando bem delineadas e fixadas as bases da matéria, não mais fazia sentido ater-se às discussões dogmáticas acerca da autonomia do direito processual4. Cabia aos processualistas, pois, "voltar seus olhos para o exterior" e buscar os meios para tornar a prestação jurisdicional mais célere e efetiva, de forma a garantir o acesso dos cidadãos à Justiça. As palavras de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA ilustram muito bem o que ora se afirma:

"O direito processual conta pouco mais de um século como disciplina jurídica de autonomia científica. Custou-lhe muito esforço edificar um sistema próprio de conceitos e princípios. Era natural que, ao longo de semelhante processo de amadurecimento, os maiores cuidados se dirigissem à construção de estruturas dogmáticas firmes. Tal prioridade refletia, aliás, o conceptualismo que reinava, quase absoluto, no ambiente jurídico da época. Manifestações dessa tendência são, por exemplo, as aturadas e por vezes acerbas polêmicas doutrinárias em torno da natureza da ação, da coisa julgada, do objeto do processo...

O trabalho empreendido por espíritos agudíssimos levou a requintes de refinamento a técnica do direito processual e executou sobre fundações sólidas projetosPage 193arquitetônicos de impressionante majestade. Nem sempre conjurou, todavia, o risco inerente a todo labor do gênero, o de deixar-se aprisionar na teia das abstrações e perder o contato com a realidade cotidiana. A fascinante sutileza de certas elaborações parecia ter contrapartida menos admirável no ocasional esquecimento de que nem tudo devia resumir-se num exercício intelectual realizado sob o signo da 'arte pela arte' – ou, se preferir, da 'ciência pela ciência'.

Não há menoscabar os frutos de tão nobre fadiga. Sentese, porém, a precisão de aplicar com maior eficácia à modelagem do real as ferramentas pacientemente temperadas e polidas pelo engenho dos estudiosos. Noutras palavras: toma-se consciência cada vez mais clara da função instrumento do processo e da necessidade de fazê-lo desempenhar de maneira efetiva o papel que lhe toca. Pois a melancólica verdade é que o extraordinário progresso científico de tantas décadas não pôde impedir que se fosse dramaticamente avolumando, a ponto de atingir níveis alarmantes, a insatisfação, por assim dizer universal, com o rendimento do mecanismo da justiça civil."5

Ganhava corpo, então, a hoje mundialmente conhecida concepção instrumental do direito processual, que, "com repúdio ao seu exame exclusivamente pelo ângulo interno, constitui abertura do sistema para a infiltração dos valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material"6.

II Instrumentalidade e efetividade do processo

A instrumentalidade e a efetividade do processo ocupam a mente dos processualistas interessados na produção dos efeitos concretos da Justiça; estão no centro das discussões doutrinárias atuais7 e servem de fundamentos às mais diversas decisões de nossos Tribunais. Dada sua relevância, é importante fixar-lhes os conceitos básicos.

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A instrumentalidade do processo consiste, em síntese, no reconhecimento de que ele não é algo que se exaure em si mesmo ou apenas mera ferramenta de realização do direito material; deve, ao contrário, servir de instrumento ao acesso a uma ordem jurídica justa e efetiva. Veja-se a clássica lição de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO sobre o tema:

"A instrumentalidade do processo é vista pelo aspecto negativo e pelo positivo. O negativo corresponde à negação do processo como valor em si mesmo e repúdio aos exageros processualísticos a que o aprimoramento da técnica pode insensivelmente conduzir (...). O aspecto positivo é caracterizado pela preocupação em extrair do processo, como instrumento, o máximo de proveito quanto à obtenção dos resultados propostos (os escopos do sistema); infunde-se com a problemática da 'efetividade do processo' e conduz à assertiva de que 'o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda a plenitude todos os seus escopos institucionais'(...)."8

Destaque-se que a instrumentalidade do processo não se confunde com a instrumentalidade das formas: "a instrumentalidade do sistema processual constitui projeção a maior da instrumentalidade das formas e suporte metodológico para a sustentação desta e seu melhor entendimento"9. Trata-se, assim, de duas idéias distintas, apesar de esta última (instrumentalidade das formas) se aproximar do "aspecto negativo" da primeira (instrumentalidade do processo), já que tem a "função de advertir para as limitações funcionais das formas"10. Como bem definiu JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, "o princípio da instrumentalidade das formas constitui um valioso método de análise interna do procedimento. Representa ele aquilo que, de um ângulo externo, pretende-se exteriorizar com a expressão instrumentalidade do processo"11.

Por outro lado, afirmar-se que o processo deve ser efetivo significa dizer, na clássica lição chiovendiana, que por meio dele a parte deve poder obter, com o menor sacrifício e o mais rapidamente possível, tudo aquilo a que faz jus12. Em lição que se tornou clássica, JOSÉPage 195CARLOS BARBOSA MOREIRA traçou uma espécie de "programa básico" da efetividade do processo:

"Digladiam-se as doutrinas; mas, para fins práticos, talvez seja possível enunciar algumas proposições em que todos (ou quase todos) se inclinarão a convir, sempre que se queira fixar os requisitos básicos que o processo há de buscar satisfazer, para merecer a qualificação de 'efetivo'. Elas configuram, por assim dizer, a problemática essencial da 'efetividade', que – sem esquecer quanto existe de subjetivo, quiçá de arbitrário, em qualquer escolha – ousaríamos resumir nos seguintes pontos:

a) o processo deve dispor de instrumentos de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos (e outras posições jurídicas de vantagem) contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, quer se possam inferir do sistema;

b) esses instrumentos devem ser praticamente utilizáveis, ao menos em princípio, sejam quais forem os supostos titulares dos direitos (e das outras posições jurídicas de vantagem) de cuja preservação ou reintegração se cogita, inclusive quando indeterminado ou indeterminável o círculo dos eventuais sujeitos;

c) impende assegurar condições propícias à exata e completa reconstituição dos fatos relevantes, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder, à realidade;

d) em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento;

e)...

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