Reflexões sobre os contratos cativos de longa duração

AutorJosé Tadeu Neves Xavier
Páginas26-43

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Introdução

A massificação das relações sociais, além de ter proporcionado inúmeras modificações no mundo dos negócios, diversificando os métodos de contratação e impondo alterações nos modelos contratuais tradicionais, trouxe no plano da teoria dos contratos, a necessidade de novas reflexões sobre esta matéria de importância vital para a ciência do direito.1

Dentre as novas realidades surgidas pela massificação das relações negociais, pode ser destacado o surgimento e o crescimento acelerado de contratos cativos de longa duração,2 típicos da contratação de massa, que, como o nome já indica, criam uma posição de "catividade" ou "dependência" dos consumidores (clientes).

Claudia Lima Marques lembra que a catividade, elemento essencial deste modelo, deve "ser entendida no contexto do mundo atual, de indução ao consumo de bens materiais ou imateriais, de publicidade massiva e métodos agressivos de marketing,

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de graves e renovados riscos na vida em sociedade, e de grande insegurança, quanto ao seu futuro".3

Portanto, há uma inequívoca "mensagem" que subliminarmente deflui dessa nova modalidade negociai - como condu-tora da catividade, garantindo longa vida a esta relação - que é a promessa de algo futuro, que servirá como elemento impul-sionador da relação contratual para a per-petuidade.

Nessa nova realidade contratual a relação negociai é formada contando, em muito, com a expectativa criada no consumidor: promessa de status, de segurança, de tranqüilidade, entre outros valores.

1. Crise e transformação da idéia tradicional de contrato

A pós-modernidade - para aqueles que aceitam esta denominação4 - não passa in albis pela Ciência do Direito. Muitas e diversificadas são as discussões que ela proporciona.5 No campo das relações contratuais não poderia ser diferente. Questiona-se sobre a possibilidade de se afirmar a existência de uma teria pós-moderna dos contratos. E, em caso positivo, se esta concepção subsiste a anterior ou a ela se soma para garantir o apego do direito dos contratos a evolução da realidade social.

Neste assunto as dúvidas são pródigas, mas este estado permanente de incertezas e angústias, com o qual somos impulsionados a conviver, nos faz enxergar que a dúvida é um dos elementos da pós-modernidade. Não se pode conceber qualquer abordagem segura, única, no Direito do contexto pós-moderno - ou seria possível?6 A diversidade do mundo pós-moderno produz a dúvida, e passamos a ter que conviver com ela. O trabalho do jurista dessa época é buscar técnicas, meios, formas de se trabalhar com a diversidade, sem qualquer cogitação da possibilidade de extirpá-la do contexto social.7

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Estas mudanças atingem os negocios, propondo üm novo "estilo de vida", onde, como lembra Cláudia Lima Marques "da acumulação de bens materiais, passamos a acumulação de bens imateriais, dos contratos de dar, para os contratos de fazer, do modelo individualista da compra e venda para um modelo duradouro da relação contratual".8

Entretanto, confirmando a idéia reinante do paradoxo na pós-modernidade, as novas relações não substituem as antigas fórmulas negociais, mas a elas se somam, até como urna alternativa para o preenchimento das lacunas deixadas pelos modelos tradicionais. É urna forma jurídica de otimização da estrutura do mercado, que se mostra cada vez mais receptiva aos novos modelos contratuais.

Voltando aos ensinamentos de Cláudia Lima Marques, a pós-modernidade cria uma nova visão da engenharia contratual clássica: "são tempos de relações contratuais múltiplas, despersonalizadas e a durar no tempo e estender-se a toda uma cadeia de fornecedores de serviços e produtos. Tempos que impõem uma visão da obrigação como um processo muito mais complexo e duradouro do que uma simples prestação contratual, um dar e um fazer momentâneo entre parceiros contratuais teoricamente iguais, conhecidos e escolhidos livremente".9

Os reflexos da incidência da realidade pós-moderna nos contratos, assim, nos colocam frente ao surgimento dos contratos conexos, que proporcionam a formação de verdadeiras "redes contratuais"10 e aos contratos cativos de longa duração.

O jurista alemão Erik Jayme, ao tratar do tema da pós-modernidade e de suas influências no direito, indica o contato de time-sharing - multipropriedade ou de tempo compartido - como o modelo negociai referencial desta nova realidade.11 Uma análise, mesmo que breve, desta espécie contratual confirma esta assertiva. No time-sharing há uma diversidade de relações, traduzindo-se em uma série de contratos coligados, com inequívoco destaque a prestação de serviços, a formação desta relação é fruto de estratégias de marketing previamente preparadas para seduzir os consumidores, criando-lhes múltiplas expectativas e caracterizando-se pela sua longa duração.12

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2. Definição dos contratos cativos de longa duração

A noção sobre os contratos cativos de longa duração deve ser buscada em dois elementos essenciais que lhe servem de referência: o tempo e a catividade. O primeiro encerra a idéia de continuidade, ou pelos menos, a aptidão para terem uma longa duração, o que identifica em grande parte esta modalidade contratual.13

Entretanto, a existência de contratos de longa duração, ou seja, que se estendem no tempo, já é bastante conhecida da teoria contratual, que os contrapõe aos contratos de execução instantânea, que são aqueles que se cumprem por uma só prestação.14

Na sistemática tradicional são encontradas diversas fórmulas contratuais que representam esta modalidade vinculada à longa duração, como a locação, o mútuo, o depósito, entre outros. Assim, é inevitável a identificação do elemento catividade, pois é ele que irá, essencialmente, particularizar esta espécie.

A catividade deve ser compreendida em dois momentos. Inicialmente ela é representativa das técnicas de marketing utilizadas antes da formação do contrato, de forma a convencer o contratante em relação às conveniências da contratação. Trata-se de situação típica da sociedade de massa na qual vivemos.15 Para o desempenho deste papel são desenvolvidas modernas técnicas publicitárias que envolvem os consumidores, levando-o muitas vezes a firmar a contratação sem uma adequada reflexão.

O aparato de marketing que geralmente acompanham os contratos cativos costuma ser muito incisivo e preparado para atingir diretamente a vontade dos destinatários e garantir um número cada vez maior de contratações. Da mesma forma, o momento de execução dessas práticas é cuidadosamente escolhido, visando chegar ao consumidor quando este se encontra despreparado para resistir às tentações típicas da atual sociedade de consumo.

A intensidade e insistência da publicidade é elevada ao grau máximo, de forma a atingir a toda a sociedade, por um lapso temporal cada vez maior, gerando maior garantia de eficácia no sentido de formação de contratos.

Mas, a questão que parece se destacar neste contexto é o caráter de convencimento da "catividade", onde a empresa se apresenta como a concretizadora das mais diversas aspirações do indivíduo, seja de ordem estética, psicológica, emocional ou social. A empresa assume o papel de realizadora de sonhos, cativando o consumidor, ela é a parceira que vai levá-lo até onde ele sempre quis estar. A técnica da catividade

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é, em suma, um processo de sedução dos consumidores.

Um segundo aspecto da catividade é vislumbrado após a formação do contrato, onde essa expressão passa a ser entendida como situação de dependencia e fragilidade do consumidor frente ao contrato firmado, o que é facilmente perceptível nos contratos de seguro-saúde e em diversas situações da seara bancária.

O contrato cativo de longa duração, uma vez estabelecido, passa a fazer parte da vida do consumidor, de forma inseparável, de forma extremamente significativa para o seu convívioem sociedade. O contrato é o seu ponto de segurança para enfrentar as intempéries da vida, tornando-se uma necessidade de extrema importância inclusive para a sua realização pessoal.

Assim, os contratos cativos de longa duração podem ser entendidos como aqueles típicos da sociedade massificada, que tem a sua formação aparelhada por intensas formas de marketing, que se estendem no tempo, passando a fazer parte da vida do consumidor de forma que a sua manutenção passa a tornar-se uma necessidade do contratante.

Os contratos cativos de longa duração, entretanto, não podem ser confundidos com os contratos em rede, embora mantenha, em relação a estes, considerável aproximação, pois ambos representam um novo viés dos contratos na pós-modernidade.

Ana López Frias aponta a existência da conexão contratual quando vários sujeitos celebram dois ou mais contratos distintos que representam uma estreita vinculação funcional entre si, em razão de sua própria natureza, ou da finalidade que os informa, vinculação esta que é ou pode ser juridicamente relevante.16

Assim, as redes contratuais representam uma técnica de divisão da participação contratual entre várias empresas, de forma a gerar uma relação complexa, como ocorre nos contratos de turismo.17 Cabe notar que apesar de vários contratos em rede poderem apresentar-se com longa duração - contratos de seguro-saúde - isso nem sempre acontece. A combinação entre contratos em rede e a catividade vinculada a longa duração costuma mostrar-se bastante fértil e prodigiosa, quase que numa justaposição perfeita, mas trata-se...

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