Reflexões sobre o regime jurídico da coligação societária e a transferência de tecnologia entre sociedades coligadas

AutorMaurício Moreira Mendonça de Menezes
Páginas147-168

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1. Introdução

O escopo deste ensaio consiste em suscitar breves considerações sobre as restrições impostas à remessa de royalties pela sociedade empresária brasileira à sua controladora estrangeira, com a qual tenha contratado a transferência de tecnologia.1

Logo, o estudo sob enfoque abrange, a um só tempo, duas discussões de alta relevância para a atividade económica brasileira: a importação de tecnologia e os efeitos da relação jurídica estabelecida entre sociedades estrangeiras e suas controladas brasileiras.

Nessa linha, será primeiramente comentado o tratamento legal e regulamentar dispensado pelo Poder Público ao proble-ma da importação de tecnologia, nos últimos anos.

Posteriormente serão examinados os aspectos jurídicos que envolvem a coligação societária, para que, então, se conjuguem a essa análise as críticas à disciplina normativa da importação de tecnologia pelas sociedades brasileiras controladas por estrangeiras. Em linhas conclusivas procu-rar-se-á demonstrar que a disciplina societária é dotada de conteúdo normativo suficiente para assegurar o cumprimento da função sócio-econômica da transferência de tecnologia entre sociedades coligadas, razão pela qual deve ser refutada a intromissão a priori do Poder Público no estabelecimento das condições negociais dessa modalidade contratual.

2. Aspectos gerais do regime de remessa de royalties ao exterior nos contratos de transferência de tecnologia

Segundo Egberto Lacerda Teixeira, o capital estrangeiro pode estar representado por dinheiro, valores, equipamentos ou por

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bens imateriais, entre os quais se incluem as marcas, as patentes e o conhecimento tecnológico.2

Há décadas a questão da importação de tecnologia vem sendo vítima da grave fragmentação legal e regulamentar, que muito contribuiu para a insegurança das relações jurídicas privadas e para o cometimento de excessos pela Administração Pública.

De fato, o tema de que se trata conduziu o Poder Público a adotar dois diversos mecanismos de controle, dando origem, pois, aos regimes jurídicos de natureza tributária e de natureza cambial, vigentes de modo interdependente, em virtude de sua decisiva influência na contratação de tecnologia pelo particular.

Os primeiros diplomas legislativos sobre capitais estrangeiros no país - De-creto-lei 9.025/1946 e Lei 1.807/1953 -, diante das principais formas de investimentos que então se verificavam, visaram a disciplinar a remessa de lucros e juros ao exterior. Pouco se atentou, naquela ocasião, à aquisição de tecnologia pelos empresários brasileiros.

Assim, a atuação governamental sobre a importação de tecnologia foi, em primeiro momento, motivada por interesses fiscais. Nesse sentido, foi a legislação do imposto sobre a renda, Lei 3.470/1958, que tratou, originariamente, sobre a remessa de royalties ao exterior, impondo o limite máximo de 5% sobre a receita bruta do produto fabricado ou vendido, para efeito de dedutibilidade do pagamento (de royalties) como despesa, a ser levada em conta para o cálculo do imposto devido.

Além dessa limitação, prevista no art. 74 da Lei 3.470/1958, foi introduzida a obrigatoriedade de registro da importação de tecnologia (referida no texto legal como assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante) em conformidade com o Código da Propriedade Industrial da época (Decreto-lei 7.903/1945), bem como foi delegada competência ao Ministro da Fazenda para que procedesse à revisão dos percentuais admitidos para a referida dedução fiscal, segundo o grau de essen-cialidade do produto - o que veio a ser feito pela autoridade fazendária logo em seguida, pela edição da Portaria 436/1958, alterada por normativos posteriores,3 mas que se encontra até hoje em vigor.

A mencionada limitação não fazia distinção entre o pagamento de royalties ao exterior ou a fornecedor de tecnologia residente no país. Segundo suscitado pela doutrina, suspeitas de fraudes relacionadas a pagamentos excessivos de royalties nos anos 50 teriam levado o Governo a fixar os comentados percentuais máximos de dedutibilidade fiscal (ao invés de aumentar a severidade da fiscalização), em cómoda alternativa de universalizar a majoração do ónus tributário, em face de abusos cometidos por alguns.

O controle cambial foi inaugurado pela Lei 4.131/1962, que, nos arts. 9° a 14, dispôs sobre a remessa de royalties ao exterior, subordinando-a à prévia autorização da então Superintendência da Moeda e do Crédito - SUMOC, posteriormente sucedida pelo Banco Central do Brasil.4 A par de o art. 12 dessa lei ter ratificado para os royalties relacionados à importação de tecnologia o regime de dedutibilidade fiscal, previsto na Lei 3.470/1958, houve a introdução, pelo art. 14, da arbitrária regra de proibição de remessa de royaltiespor uso de marca ou patente (e não por tecnologia!) entre a filial estabelecida no Brasil e a matriz estrangeira, ou entre a sociedade sub-

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sidiária de cujo capital a titular dos recebimentos (dos royalties) no estrangeiro detivesse a maioria.

A rigor, esse dispositivo proibitivo -de grande interesse para o estudo vertente -, destinando-se a atingir a sociedade empresária brasileira controlada por estrangeiro, sequer poderia preencher as finalidades a que se propunha, uma vez que os instrumentos jurídicos oferecidos pela Lei Societária em vigor naquele tempo (Decre-to-lei 2.627/1940) permitiam ao acionista a aquisição do controle de sociedade anónima sem a necessidade de apropriação de ações representativas da maioria de seu capital social, bastando citar, a título ilustrativo, que o sócio estrangeiro poderia perfeitamente se utilizar do mecanismo de emissão de ações preferenciais sem voto (cujo limite era de 50% do capital social) para, então, avocar a si o poder de direção da sociedade, com base na titularidade de 25% do capital da sociedade mais uma ação.5

Naquilo que interessa a este ensaio, a Lei 4.131/1962 foi sucedida pela Lei 4.506/ 1964, diploma que dispunha sobre o imposto sobre a renda, cujo art. 71, parágrafo único, "e", item 2, versava exatamente sobre a limitação de dedutibilidade fiscal para pagamentos de royalties vinculados à importação de tecnologia, nos termos adiante reproduzidos:

Art. 71. A dedução de despesa com aluguéis ou royalties, para efeito de apuração de rendimento líquido ou do lucro real sujeito ao imposto de renda, será admitida: a) quando necessária para que o contribuinte mantenha a posse, uso ou fruição do bem ou direito que produz o rendimento; e b) se o aluguel não constituir aplicação de capital na aquisição do bem ou direito, nem distribuição disfarçada de lucros de pessoa jurídica.

Parágrafo único. Não são dedutíveis: (...) e) os royalties pelo uso de patentes de invenção, processos e fórmulas de fabricação ou pelo uso de marcas de indústria ou de comércio, quando: f)pagospela filial no Brasil de empresa com sede no exterior, em benefício da sua matriz', 2) pagos pela sociedade com sede no Brasil a pessoa com domicílio no exterior que mantenha, direta ou indiretamente, controle do seu capital com direito a voto;

Já no início dos anos 90, a Lei 8.383 veio a alterar o regime do art. 71, parágrafo único, "e", item 2, da Lei 4.506/1964, para fins de permitir a dedutibilidade fiscal nessa hipótese, desde que os contratos que importassem transferência de tecnologia viessem a ser averbados perante o INPI e registrados perante o Banco Central do Brasil posteriormente a 31.1.1991, observados os limites previstos na legislação em vigor - vale dizer, na Lei 3.470/1958, regulamentada pela Portaria 436/1958 do Ministério da Fazenda. Confira-se, a seguir, o teor do art. 50 da Lei 8.383/1991:

Art. 50. As despesas referidas na alínea "b" do parágrafo único do art. 52 e no item 2 da alínea "e" do parágrafo único do art. 71 da Lei n. 4.506, de 30 de novembro de 1964, decorrentes de contratos que, posteriormente a 31 de dezembro de 1991, venham a ser assinados, averbados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e registrados no Banco Central do Brasil, passam a ser dedutíveis para fins de apuração do lucro real, observados os limites e condições estabelecidos pela legislação em vigor.

Parágrafo único. A vedação contida no art. 14 da Lei n. 4.131, de 3 de setembro de 1962, não se aplica às despesas dedutíveis na forma deste artigo. Ocorre que o INPI vem interpretando restritivamente o art. 50 da Lei 8.383/1991,

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de modo a condicionar a averbação de contratos de transferência de tecnologia, firmados por sociedade brasileira e sua controladora estrangeira, à limitação do pagamento de royalties nos limites de dedutibilidade fiscal previstos na Portaria MF-436/1958.6 Segundo o testemunho de profissionais especializados, externado em obras e pareceres jurídicos, a falta de controle legislativo sobre o exercício das atribuições administrativas do INPI conduziu a sucessivas extrapolações de suas prerrogativas, disso resultando indevida intervenção desse órgão nas relações patrimoniais privadas, com injustificada limitação da livre iniciativa económica.7

Quanto ao aspecto cambial, a matéria, antes tratada pelo Comunicado FIRCE-19/ 1972, é hoje disciplinada pela Carta-Cir-cular 2.795/1998, do Departamento de Capitais Estrangeiros do Banco Central do Brasil, que regulamenta o chamado Registro Declaratório Eletrônico - RDE de operações de transferência de tecnologia, instituído pela Circular 2.816/1998 em substituição aos antigos Certificados de Registro FIRCE.

Muito embora sejam louváveis as medidas empreendidas pelo Banco Central, tendentes à desburocratização do...

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