A Reforma Trabalhista e suas 'Modernidades' na Visão do Mundo Exterior: O 'Caso Brasil' na 106ª Conferência Internacional do Trabalho e as Violações às Normas Internacionais do Trabalho

AutorGuilherme Guimarães Feliciano/Luciana Paula Conforti/Noemia Aparecida Garcia Porto
Páginas11-18

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1. Introdução

A 106ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada entre os dias de 05 e 16 de junho de 2017, em Genebra, Suíça, foi marcada e certamente será lembrada pelo “caso Brasil”. O país, por pouco, não figurou na lista dos 24 casos selecionados para a discussão individual ao longo da Conferência, no tocante à violação das normas internacionais do trabalho, mas continua na lista dos 40 países que estão sendo monitorados pelo Comitê de Peritos da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

Após a divulgação de que o Brasil não figuraria entre os 24 casos selecionados para a discussão na Conferência, a mídia nacional veiculou notícias de que a denúncia contra o país tinha sido arquivada e que a Organização Internacional do Trabalho reconheceu a modernização da reforma trabalhista.

Segundo o Globo, a referida notícia foi disseminada pelo deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da reforma trabalhista na Câmara dos Deputados e replicada pelos canais de comunicação do partido político ao qual está vinculado, para defesa da reforma trabalhista.4

No dia 28 de junho de 2017, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou relatório favorável à reforma trabalhista, sem modificações no texto enviado pela Câmara dos Deputados, com breve previsão de votação em plenário.5

O objetivo do artigo é esclarecer os fatos que envolveram a retirada do “caso Brasil” da 106ª Conferência Internacional do Trabalho e ainda que de modo bastante resumido, o procedimento de monitoramento adotado pela OIT, a fim de alertar a sociedade sobre os iminentes riscos que reformas precarizantes das condições de trabalho podem trazer ao país.

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2. Sobre os mecanimos de controle adotados pela OIT

De fato, a OIT não ratificou a reforma trabalhista recentemente aprovada pelo Parlamento brasileiro e sancionada pelo Presidente da República, sob o número 13.467/2017, para entrar em vigor após 120 dias, nem tampouco a afirmou isenta de violações às normas internacionais do trabalho, como certos setores chegaram a alardear. Ao não figurar entre os 24 casos que foram selecionados para discussão na 106ª Conferência Internacional do Trabalho, o Brasil continuará sendo analisado pelo procedimento ordinário; tampouco houve arquivamento da “denúncia”, como falaciosamente chegou a ser noticiado na imprensa, já que sequer existe formalmente uma “denúncia” e não houve exame de mérito a esse respeito.

Quando um país ratifica uma convenção internacional, vê-se obrigado a apresentar memórias regulares sobre as medidas que tem adotado para aplicá-la, no plano jurídico e na prática. Isso pode exigir, por exemplo, a alteração da legislação interna, no que contrarie diretamente a norma internacional e a adoção de políticas públicas específicas, a depender do tema tratado pela Convenção Internacional do Trabalho, das peculiaridades do país que pretende aplicá-la e até a superação de questões culturais. A ratificação de uma norma internacional, a propósito, impacta diretamente nas ações dos Estados-membros, inclusive no campo da construção jurisprudencial dos tribunais dos respectivos países.

A Organização Internacional do Trabalho – OIT é uma agência da Organização das Nações Unidas – ONU e a única com funcionamento tripartite (integrado por governos e organizações de empregadores e trabalhadores). Desde 1919, mediante o sistema tripartite, foram aprovadas pela OIT diversas convenções e recomendações internacionais de proteção ao trabalho (mais de 180 convenções, sujeitas à ratificação pelos Estados-membros e mais de 190 recomendações, não vinculativas, com orientações políticas e ações nacionais para o alcance dos objetivos previstos nas convenções). Atualmente a OIT conta com 187 Estados-membros, dentre eles, o Brasil, um de seus fundadores.

No que diz respeito aos sistemas de controle da OIT, além da análise anual pelo Comitê de Peritos (sistema regular de controle), há a possibilidade de instauração de processos contenciosos, designados “reclamações”, em face de um País-membro com fundamento na aplicação de uma convenção ratificada ou de sua violação. Se a reclamação for considerada admissível pelo Conselho de Administração da OIT, este nomeará um comitê tripartido para examinar a questão, com a apresentação posterior de relatório ao Conselho de Administração, com as suas conclusões e recomendações. Além disso, qualquer País-membro pode apresentar uma queixa junto à OIT em face de outro País-membro, quando entender que o denunciado não assegurou, de forma satisfatória, a aplicação de uma convenção que ambos tenham ratificado.

Esse processo pode ser igualmente iniciado oficiosamente pelo próprio Conselho de Administração ou no seguimento de uma queixa apresentada por um delegado à Conferência Internacional do Trabalho. Se necessário, a Comissão de Inquérito formula recomendações sobre as medidas a adotar. Se os governos não aceitarem estas recomendações, podem submeter o caso ao Tribunal Internacional de Justiça.6

As memórias emitidas pelos governos devem ser encaminhadas para a representação de trabalhadores e empregadores, as quais podem fazer comentários sobre as declarações do governo e enviar comentários próprios sobre a aplicação das Convenções Internacionais diretamente à OIT.

A Comissão de Peritos foi criada em 1926, com mandato de três anos, é composta por 20 juristas independentes, de renome internacional e oriundos de países diversos, com diferentes sistemas jurídicos e culturas, com o objetivo de examinar as memórias dos governos sobre as normas internacionais ratificadas.

Ao analisar a aplicação das normas internacionais do trabalho, a Comissão de Peritos emite dois tipos de manifestações: observações e solicitações diretas. As observações contêm comentários sobre as questões fundamentais relativas à aplicação de um determinado convênio por parte de um Estado e são publicadas em um informativo anual da Comissão. As solicitações diretas contêm comentários com questões mais técnicas ou com pedidos de esclarecimentos aos governos.

O informe anual da Comissão de Peritos é composto de três partes: a primeira parte contém o informe geral, que inclui comentários acerca do respeito dos Estados-membros às suas obrigações constitucionais; a segunda parte contém observações sobre a aplicação

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das normas internacionais do trabalho; e a terceira parte contém o estudo geral.7

O que se pode notar é que, primeiro, a OIT atua de forma a promover o diálogo tripartite. Além disso, a aplicação e a interpretação dos atos internacionais, que justamente são fruto desse diálogo, recebem atenção permanente desse organismo internacional. A Conferência anual, embora consubstancie momento muito importante da atuação internacional, não encerra ou finaliza esse processo permanente de diálogo e de fiscalização, que busca a construção efetiva de um ambiente laboral que possa reproduzir boas práticas num contexto de trabalho decente.

3. “Trabalho não é mercadoria”: dignidade humana como elemento reitor da interpretação/aplicação das normas internacionais do trabalho Lei n. 13.467/2017: Primeira aproximação

Em 1944, os delegados da Conferência Internacional do Trabalho adotaram a Declaração de Filadélfia que, como anexo à sua Constituição, representa, desde então, a carta de princípios e objetivos da OIT. Esta Declaração serviu de referência para a adoção da Carta das Nações Unidas (1946) e para a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

Dentre os traços fundamentais do “espírito de Filadélfia”, destaca-se a proclamação da dignidade humana como predicamento inerente a todos os membros da família e base da liberdade, da justiça e da paz no mundo. A dignidade foi erigida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem como princípio fundador da ordem jurídica, que sustenta todos os princípios e direitos fundamentais. Nesse contexto, o princípio da dignidade obriga a ligar os imperativos da liberdade e da segurança, não só a segurança física, mas segurança econômica suficiente para liberar os seres humanos do terror e da miséria. Porém, como atesta Alain SUPIOT, é a perspectiva inversa que preside o atual processo de globalização: o objetivo de justiça social foi substituído pelo da livre circulação de capitais e mercadorias, e a hierarquia de meios e fins foi derrubada. Em lugar de indexar a economia às necessidades dos homens e as finanças às necessidades da economia, indexa-se a economia às exigências das finanças, e tratam-se os ho-mens como “capital humano” a serviço da economia.8

Para a Conferência de Filadélfia, (a) o trabalho não é mercadoria; (b) a liberdade de expressão e de...

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