Regulação e o mercado de valores mobiliários

AutorRachel Sztajn
Páginas136-147

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1. Introdução

Ronald Coase explica, no que se refere a custos de transação, que nem sempre as pessoas, negociando livremente, conseguem atingir o melhor resultado, justificando-se, pois, a intervenção do Estado na fixação de regras que produzam tal efeito. Distanciando-se dos adeptos da idéia de que mercados oferecem soluções para as inter-relações humanas, o economista admite que em muitas circunstâncias o mercado não é eficiente na alocação de direitos e de veres.

A partir dessa concepção de liberdade mitigada de mercado, se assim se pode denominá-la, é que se deve enfrentar a questão da regulação no mercado de valores mobiliários e, em especial, a determinação do bem que, primacialmente, deve ser tutelado.

2. Conceito de mercado

Aos que se baseiam no ensinamento de Adam Smith, de quem retiram a idéia de que mercados são produto natural das relações de troca, convém lembrar que o substrato fático analisado, que antecedeu à Revolução Industrial, partia da dispersão da produção entre muitos pequenos agen- tes que concorriam entre si. Daí porque quando Adam Smith se refere à "mão invisível" que guiaria as decisões de produzir, e ao egoísmo dos agentes, racionais e ma-ximizadores, a presunção de que ofereceriam os bens que os consumidores desejassem, tinha lógica.

Também não se questiona o fato de que, crescendo a oferta do bem o preço tende a diminuir e, com isso, se estabelece o equilíbrio entre oferta e demanda. Por isso, também, costumava-se dizer que o mercado é o locus ideal em que oferta e demanda se cruzam ou se encontram. Essa visão foi contestada por Ronald Coase que percebeu que, sem disciplina que gere eficiência, o mercado não atende a seus fins, um dos quais é fornecer informação.

Mercados são importantes para tornar a troca econômica eficiente; conquanto não sejam fruto natural resultante das relações econômicas intersubjetivas que espontaneamente aparecem na sociedade, são estruturas que permitem a livre escolha, entre vários oferecidos, de bens que atendam a necessidades das pessoas. Mercados são tantos quantos sejam os núcleos de normas que regem a produção e a circulação de bens; não há como concebê-los fora do sistema normativo que os disciplina e os faz o que

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são, diz Natalino Irti.1 Segundo Irti mercados resultam de decisões políticas e de normas jurídicas que os modelam. Cabe, pois, ao Direito conformar, desenhar, definir mercados.

Criação do direito, desenhados por . normas que regem as relações intersubjetivas, mercados resultam de opção política. No sistema jurídico brasileiro a opção do constituinte aparece no art. 170 da Constituição da República de 1988, que funda a ordem econômica na livre iniciativa, na valorização do trabalho e dignidade do ser humano.

Nada obstante sejam criação do direito,' mercados padecem de defeitos, as denominadas falhas de mercado. Condutas ou estruturas de organizações econômicas levam a falhas de mercado que precisam ser corrigidas para aproximá-las, no que concerne à produção de efeitos, do modelo eco-» nômico do mercado de concorrência perfeita.

O modelo foi concebido sobre as seguintes bases: a) impossibilidade de que qualquer dos participantes, isoladamente ou em combinação com alguns outros, possa atuar sobre a oferta ou a demanda; b) bens razoavelmente substitutos entre si, de forma que a mudança de preço de um deles possa afetar a produção/consumo do outro; c) informação amplamente disseminada entre os participantes para que possam livremente escolher. Essa estrutura, diz-se, é eficiente e a concorrência impede a transferência de renda indesejável entre partici-· pantes do mercado. Porém, na realidade, mercados de concorrência perfeita são poucos, abundando aqueles em que há falhas, estruturais ou comportamentais, falhas essas que produzem custos de transação, por isso é preciso corrigi-las e um dos mecanismos a que se pode recorrer é a regulação.

Se a idéia de que mercado se constrói segundo a espécie e/ou tipo de relações jurídicas uniformemente repetidas entre participantes que, por isso mesmo, perdem a individualidade, são analisados massi-ficadamente, a regulação dos mercados interessa a todos. A segmentação de mercados faz-se em função do bem negociado, do tipo de relação jurídica, de área geográfica.

No que se refere à organização dos mercados pode-se dividi-la em auto-re-gulação e hetero-regulação, conforme as normas sejam desenhadas pelos participantes ou por terceiro. Também aqui se pode entrever decisão de política legislativa voltada para a redução de custos de transação quando se atribui ao Estado o poder ou a competência para fixar normas que definam a organização das relações em determinados mercados, como é o caso daquele em que são negociados valores mobiliários.

3. Teoria da regulação

Regular significa formular e impor regras em forma de intervenção do Estado no domínio econômico. Essa matéria, regulação, interessa a diferentes áreas do conhecimento, particularmente ao direito e à economia. Regulação pode ser entendida como o conjunto de regras predispostas por um órgão ou agência da administração indireta, visando a fiscalizar e garantir, pela observância ou cumprimento, a disciplina de certas atividades ou setores da atividade econômica. Pode-se denominar regulação ao conjunto de normas visando determinado efeito ou, em sentido muito amplo, o conjunto de mecanismos de controle social.

Interessa o mecanismo de edição de normas por autarquias e agências públicas: é esse o pano de fundo para a discussão adiante, em que se considera a competência, no âmbito da administração pública, para editar regras, fiscalizar sua observância e aplicar punições quando sejam violadas ou descumpridas. E, dado que os regimes regulatórios costumam ser pensados visando à indução de certos comportamentos sociais ou econômicos, as penas apli-

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caveis são fundamentalmente pecuniárias ou de inabilitação profissional.

Sobre o aparecimento do processo regulatório, costuma-se associá-lo a falhas de mercado e, sob perspectiva funcionalista, no sentido de que a ação do Estado se destina a corrigir essas imperfeições para atender ao interesse público (ou da sociedade).

Nos Estados Unidos da América a regulação é resultado de processo institucional de redimensionamento da liberdade de mercados interferindo diretamente na política e dinâmica dos mercados. Uma das questões relevantes nesse campo tem que ver com a incerteza da qualidade do bem negociado no mercado.

George Akerlof, em The Market of "Lemons " explica o problema considerando o seguinte: há mercados em que o comportamento dos compradores induz os vendedores a oferecerem bens de baixa qualidade porque podem obter preço similar ao de bens de alta ou boa qualidade. Isso se deve à dificuldade que os compradores têm de avaliar a qualidade do bem. O curioso é, segundo Akerlof, que tal fato tende a se espraiar de forma que afeta a qualidade de todos os bens negociados naquele mercado causando redução de operações. Explica que em tais mercados os retornos individuais e sociais são afetados de forma diversa e, por isso, algum tipo de intervenção do governo é importante na medida em que pode aumentar o bem-estar de todos os participantes. Põe-se outra dificuldade nesse campo porque é preciso que o regulador domine as peculiaridades do mercado de forma a merecer a .confiança dos participantes, tanto dos regulados quanto dos "consumidores".

Nada obstante ter seguidores, essa visão da regulação não é perfeita; há quem aponte a venalidade de reguladores, que seriam corrompidos por tais grupos de interesses. De modo ainda mais geral afirma-se que o interesse público que justifica essa vertente muitas vezes não é atendido pelas agências reguladoras, e, portanto, melhor seria adotar a desregulação como política pública. Observa-se que, após eleições em que o vencedor resulta de coalizões partidárias, os grupos passam a exercer pressão que se manifesta no desenho dos marcos regulatórios. A parceria entre grupos privados e o Estado tende a privilegiar interesses de certos extratos sociais.,

Regulação tem muito que ver com as instituições sociais, com as burocracias e os grupos de interesses que se digladiam em busca de benefícios. Não estranha, portanto, que haja diferentes espécies ou estilos de regulação. Por exemplo, nos Estados Unidos a regulação federal é mais formalizada, compete a agências públicas nacionais, em geral poderosas tanto para ditar regras quanto para impô-las e aplicar sanções. No Japão a regulação tende a ser mais informal, socialmente institucionalizada.

São duas as espécies de regulação, a hetero-regulação, imposta por agência pública e a auto-regulação, quando as regras são predispostas por integrantes do grupo a ser regulado, ou exercentes da atividade a ser regulada. No mercado de valores mobiliários as duas formas coexistem.

A hetero-regulação é forma de intervenção do Estado no domínio econômico que se manifesta não mediante o exercício da atividade, mas pela atribuição de competência normativa a agências ou órgãos da administração indireta. Marcai Justen Filho aponta a importância das agências reguladoras uma vez que daí resulta a ampliação do poder de controle dp Estado sobre as atividades dos particulares para o que se requer instrumentos jurídicos e materiais compatíveis com as necessidades existentes. Agências reguladoras integram a estrutura do Estado refletindo visão inovadora que as afasta da influência direta dos órgãos da administração direta, e também do legislativo.

Segundo a teoria clássica da regulação cabe às agências reguladoras corrigir falhas de mercado e...

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