Regularização fundiária das terras quilombolas: aspectos teóricos e práticos / Land regularization of quilombolas: theoretical and practical aspects

AutorSandra Caseira Cerqueira
Páginas132-151
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
DAS
TERRAS QUIWMBOLAS:
ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS
1.
Apresentação do problema.
2. Cenário federal.
3. Cenário estadual: o que vem sendo feito no
âmbito do Estado do Rio de Janeiro. 4. Conclusão.
5. Notas. 6. Referências bibliográficas.
1. Apresentação do problema
1789. No bojo da Revolução Francesa, firma-se a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. As certezas trazidas pela
racionalidade moderna, somadas ao jusnaturalismo, causaram uma
euforia em torno da idéia de Direitos Humanos. Difunde-se a
crença de que existem direitos naturais, inalienáveis e indisponí-
veis que o Homem possui. Um espaço de liberdade a ser preser-
vado e respeitado, inclusive pelo Estado.
Longe da Bastilha, na a realidade era outra.
A escravidão mantinha-se sem muitos questionamentos.
O
processo de abolição foi lento, sem muitas emoções: ocor-
reram alguns movimentos abolicionistas frustrados pela repressão
do governo, pOrélTIo seu principal fator desencadeador foi o inte-
resse econômico inglês que condicionou o reconhecimento da
in-
dependência brasileira ao fim do tráfico. No cumprimento do
compromisso firmado com a Inglaterra, em 1831, é editada a lei
que extingue o tráfico de escravos no Império brasileiro; contudo,
somente em 1850, com a implementação de medidas efetivas de
repressão à comercialização dos escravospela LeiEusébio de Queirós,
foi dada àescravidão o golpe fatal. Por conseguinte, em 13 de maio
Revista de Direito da Cidade
vol.06, nº 02. ISSN 2317-7721
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de 1888, sem muita surpresa e de forma bem objetiva, é promulgada a famosa
Lei Áurea, Lei n.O 3.353, declarando extinta a escravidão no Brasil. Eis a versão
"tupiniquim" de declaração de direitos ou, pelo menos, o mais próximo que dela
chegamos, transcorridos praticamente cem anos.
Mais um século, e nada havia sido feito, no âmbito jurídico, para sal-
dar a dívida histórica com a população negra, que, ao longo desses anos, viveu
à
margem da sociedade, com as sobras, apesar de formalmente livre. De mer-
cadorias a seres humanos, a igualdade material não foi obtida com o estalar dos
dedos. Os' negros foram alijados da propriedade das terras
l
e vivenciaram um
contexto de exclusão social.2
A inércia foi rompida com a promulgação da Constituição Federal de
1988, primeiro diploma normativo que vislumbrou a importância da preser-
vação da cultura e da identidade da população negra.
3
A
de 1988 atribuiu como um dos deveres do Estado a proteção das manifesta-
ções culturais dos povos afro-brasileiros, tombou os documentos e sítios deten-
tores de reminiscências históricas dos antigos quilombos e reconheceu o direito
àpropriedade definitiva de suas terras aos remanescentes de comunidades de
quilombos que as estivessem ocupando. É nesta última conquista que este
trabalho se deterá, o artigo 68 do ADCT:
Art. 68: aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
A realidade mostra, no entanto, que apenas um pequeno número de
remanescentes de quilombos teve suas terras tituladas. Existem mais de mil
comunidades quilombolas atualmente no país, sendo que, até 2004, apenas
cento e dezenove tiveram suas terras tituladas.
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A Constituição de 1988 está à
beira da maioridade, sem que, no entanto, o artigo 68 do ADCT tenha atingi-
do a sua maturidade.
Percebe-se que as titulações feitas até então têm se concentrado nos
casos de áreas originariamente de propriedade estatal. A análise da práxis da
regularização fundiária das terras quilombolas mostra-nos que, quando se trata
de próprio do Estado, a questão é bem mais facilmente equacionada. O cerne
do problema se quando a área é de domínio particular e, por conseguinte,
na conciliação da concretização do artigo 68 do ADCT com possíveis direitos
que os particulares não-quilombolas teriam, inclusive o de serem indenizados.
O primeiro obstáculo que se enfrenta é a discussão teórica de se tratar
ou não de norma de eficácia plena. Superada essa fase, mesmo defendendo a
sua auto-aplicabilidade, ou seja, que a Constituição de 1988
garantiu a
propriedade definitiva aos quilombolas, sem a necessidade de regulamentação
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