Renda Imobiliária e propriedade: Estrutura da renovação urbana /Real estate income and property: structure of the Urban Renewal.

AutorPetrella, Guilherme Moreira
  1. INTRODUÇÃO

    A região da Luz, centro de São Paulo, é historicamente o lugar com maior número de planos urbanos públicos desde os anos 1970, quando se intensifica sua degradação socioespacial. Reverter essa degradação por meio da renovação urbana vai ser o objetivo desse planejamento. Contudo, apesar da quantidade de planos, seus resultados efetivos não são tão evidentes. Além de cada época propor uma estratégia predominante: nos anos 1970, a demolição massiva do existente e sua substituição por edifícios e infraestruturas públicos, escritórios e serviços privados; nos anos 1990, a defesa do patrimônio histórico e artístico, a produção de projetos culturais e de intervenções pontuais no urbano, visando a privatização da valorização imobiliária no entorno imediato; e, a partir dos anos 2010, pela emergência das parcerias público privada, definidas por consórcios entre poder público, agentes construtores e financeiros, em uma Sociedade de Propósito Específico (SPE).

    Os planos do século XXI se orientam pela produção e gestão de políticas sociais públicas, como habitação de interesse social, equipamentos, serviços e espaços coletivos; através de concessões, desapropriações e privatizações. Eles definem as obrigações relativas às condições impostas pelas políticas públicas setoriais e de espaço urbano; os direitos decorrentes da exploração econômica dessas atividades (a excepcionalidade da construção, venda e gestão), formas de financiamento, prazos. Além de definir o domínio sobre o consórcio relativo ao montante de investimento financeiro de cada um dos respectivos agentes (como um condomínio ou uma sociedade por ações). De modo geral, o poder público também entra com terrenos e edifícios públicos, livrando-os de eventuais processos de regularização (em função de concessões, titulação, judicialização) e os agentes privados com a produção e incorporação. Dentre esses planos, o Projeto Nova Luz se destaca por experimentar primeiramente na região (1) (com inúmeros casos de "propriedades travadas" por processos judiciais, falências, espólios) novos marcos legais imobiliários e financeiros.

    Porém, a aparente igualdade expressa pelo contrato, regulado pela parceria público-privada, de licitação pública, se expressa em uma desigualdade social, que se manifesta no conflito pelo uso da cidade: a disputa entre as formas de propriedade, que vão sendo reinventadas e reconstruídas, e a posse efetiva, o uso cotidiano que muitas vezes não correspondente à forma proprietária dominante. A parceria constitui, de um lado, uma "marcha" na ação do Estado-mercado e, de outro, uma "contramarcha" da resistência de moradores, trabalhadores, pequenos proprietários, sem-teto, sem-trabalho: o conflito e a contradição entre o neoliberalismo-financeirização e o comum.

    Assim se reconfiguram "novas formas de propriedade" a partir da proposição de marcos legais imobiliário-financeiros (2), que visam mobilizar o imobiliário e desregulamentar a circulação financeira, aproximando-se através das renovações urbanas desenhadas pelas parcerias. Essa metamorfose da forma jurídica, por outro lado, possibilita a intensificação de sua reprodução econômica como equivalente a capital, cuja capitalização se realiza por meio da renda imobiliária. Neste sentido, a reflexão sobre a renovação urbana da região da Luz e a reconfiguração da propriedade, funcional à reprodução capitalista predominantemente rentista, do neoliberalismo e financeirização, põe luz a especificidades contemporâneas de luta social e, eventual, resistência-superação do capitalismo.

  2. A CONSTRUÇÃO DO PREÇO DO PRODUTO IMOBILIÁRIO

    A região da Luz, centro de São Paulo, é aqui identificada aos distritos da Luz, Santa Ifigênia, Campos Elíseos e Bom Retiro. A não definição precisa de suas fronteiras decorre da abertura a diferentes processos de análise, em função de se constituir atualmente como caso significativo de disputas pela produção do espaço (Lefebvre, 1974), que se realizam mediante a centralidade da propriedade privada e a renda imobiliária decorrente. A renovação urbana, proposta por parcerias público privada (Estado, agentes construtores e financeiros), faz deslocar o preço da construção para a construção do preço como elemento estruturador da urbanização (Petrella, 2017), acentuando o caráter arbitrário da dimensão econômica da renda e do poder de classe proprietária. Assim, a monopolização da propriedade e da renda imobiliária antecedem (preço dos terrenos e edifícios) e sucedem (preços capitalizados) a renovação urbana, revelando a produção de propriedades como o seu "verdadeiro objeto".

    A construção do preço se realiza como um conjunto de pressuposições, que pretendem identificar a região da Luz a outras áreas mais valorizadas da metrópole de São Paulo, através da construção de uma imagem. O produto imobiliário que decorre desta construção seria aquele que responde a uma "vocação", também pressuposta. Uma possibilidade advinda da própria natureza da renda, cuja capitalização (que se manifesta como aumento de preço) se desloca e descola da valorização (que decorre da exploração da força de trabalho e da produção). Assim, a garantia de realização do preço imobiliário aumentado se dá a partir da capacidade de pagamento de uma determinada demanda social, uma apreciação (tanto no sentido do desfrute quanto no de aumento de preço) que decorre de suas necessidades e desejos.

    Este produto imobiliário é o conjunto de empreendimentos a ser realizado pelas parcerias público-privada, experimentadas nos últimos anos em São Paulo (3). Ele pode ser explorado economicamente dentro do prazo de concessão preestabelecido por contrato, sociedades de propósito específico (SPE), a partir de serviços de caráter público e da venda, aluguel e gestão de unidades imobiliárias. Uma urbanização que instrumentaliza a propriedade, constituindo uma "marcha" que estende as relações e a lógica de produção de condomínios fechados para situações abertas da cidade, conflitos e contradições que se estendem do privado ao público: um movimento de "condominialização da cidade" que tende a generalizar a propriedade privada e a renda monopolizada como elementos da produção e reprodução do espaço e das relações sociais, mesmo no interior da esfera pública. Isso constitui o que se pode nomear de complexo imobiliário financeiro, que emerge através da reestruturação social em torno do neoliberalismo e da financeirização.

    Aqui se analisará a formação do preço do produto imobiliário a partir do "Estudo de Viabilidade Econômica, Mercadológica e de Situação Fundiária", realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), integrante do consórcio contratado para a elaboração dos planos urbanísticos específicos e estudos complementares da Concessão Urbanística do Nova Luz (Petrella, 2017: 221). A viabilidade econômica consiste em levantar a totalidade dos custos de produção e relacioná-los ao teto de pressuposição do valor adicional do produzido, o preço resultante da expectativa de lucratividade e rentabilidade do investimento financeiro que se expressam na totalidade dos empreendimentos produzidos (4).

    Os custos de produção se referem à aquisição de terrenos, demolição de edifícios, desenvolvimento de projetos, processos de aprovação, construção das unidades imobiliárias e infraestruturas, incorporação e venda. A pressuposição do valor adicional do produzido relaciona o produto imobiliário proposto, de modo genérico pelo plano urbanístico, com as características da região da Luz, comparando-as a outras regiões da metrópole. Isso pode indicar as condições similares de realização do produto imobiliário. As "características" da Luz, por sua vez, são relacionadas à expectativa de inovação imobiliária e urbana propostas pelo plano, imagens e diretrizes que produziriam a sua "nova vocação".

    O referido estudo de viabilidade é um conjunto de análises que pretende assegurar ao empreendimento a realização de sua aposta de valorização, pressuposta antes da produção efetiva de unidades imobiliárias e infraestruturas, tendo em vista sua inserção na diferenciação da metrópole. Contudo, essa racionalidade da formação do preço do produto imobiliário ilumina uma dupla irracionalidade. A primeira é o processo analítico e científico, que se desenvolve a partir da descrição dos custos necessários à produção do conjunto de empreendimentos. Estes custos são cotejados com pressuposições subjetivas, que dariam as condições de realização da valorização e a comercialização dessas unidades. Expressões como "prêmio de imagem", "amenidades urbanas", "vocação", seriam aproximações mistificadas no interior da racionalidade científica, amparando-a. A segunda é, apesar de toda a produção de unidades imobiliárias e infraestruturas, o real objeto do empreendimento ser a produção de propriedades, pois é a partir dessas propriedades, centralizadas na figura do consórcio público privado de sociedade específica, que se pode apropriar da valorização adicional pretendida pela produção. Seus respectivos títulos imobiliários, que dão corpo à valorização como se fossem títulos mobiliários, funcionam de modo equivalente a capitais que buscam se valorizar e se capitalizar. A irracionalidade desta operação consiste em submeter as relações de produção e de consumo (neste caso, a demanda social por habitações de interesse social, equipamentos e serviços públicos) ao domínio da propriedade mercantil.

    Sendo a propriedade o meio de se apropriar do mais valor produzido (5), a medida de sua valorização e capitalização se define por um cálculo invertido: exclui-se da totalidade do preço do produto imobiliário final a totalidade de custos de produção para que, deste modo, a sua "valorização" apareça. Isto consiste no "método involutivo" que é utilizado na elaboração do referido estudo de viabilidade: ao se descontar todo o custo de produção, chega-se ao novo preço do terreno, cujo excedente, que decorre da "valorização", equivale a uma renda capitalizada.

    Porém, para se calcular...

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