Renovar a democracia

AutorRaymond Boudon
Páginas215-241

    Conferência de apresentação de sua última obra, Renouveler la démocratie. Éloge du sens commun(Odile Jacob, 2006), proferida em 24 de janeiro de 2007 na Fundação para inovação política.

Raymond Boudon. Membro da Academia de Ciências Morais e Políticas; Professor Emérito de Sociologia na Universidade de Paris-Sorbonne (Paris-IV); Membro da Academia Europeia, da Sociedade Real do Canadá, da Academia Britânica, da Academia Americana de Artes e Ciências, da Academia de Artes e Ciências da Europa Central, da Academia de Ciências Humanas de São Petersburgo, da Academia de Ciências Sociais da Argentina.

Tradução de José Emílio Medauar Ommati. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG; Professor de Teoria da Constituição, Hermenêutica e Argumentação Jurídica e Direito Administrativo I da PUC Minas – Serro; Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas – Serro.

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Introdução

Por que observamos nas democracias modernas, e na França talvez mais do que em qualquer outro lugar, uma espécie de confusão no que concerne aos grandes princípios da democracia? Essa confusão se traduz em diversos fatos: multiplicação de leis e principalmente de leis que não são aplicadas, violando-se a advertência de Montesquieu: somente se relacionar com a lei “com uma mão trêmula”. Votação de leis que impõem verdades históricas, limitando a liberdade de expressão ou restringindo a pesquisa de informações essenciais para o conhecimento da sociedade. Vida política dominada por conflitos entre os diversos grupos de influência e de interesse. Ação política vista como consequência principalmente da acomodação das demandas desses grupos. Confusão entre igualdade e equidade. Políticos passionais que são preferidos aos políticos racionais. Rotura da democracia representativa em prol da “democracia participativa” de forma mágica, como indica o fato de que a expressão é de difícil tradução nas outras grandes línguas europeias, em inglês ou em alemão, por exemplo. Estamos tentados a aproximar essa ideia da grassroots democracy americana dosPage 216 anos de 1960. Mas, esse slogan convidava sobretudo ao desenvolvimento da democracia local.

A noção de “democracia participativa” não é, contudo, a única a ser de difícil tradução. A de “diálogo social” ou a distinção entre “República” e “democracia” são outras particularidades francesas. Quanto à noção de “modelo social francês”, isso é bem difícil de definir e com frequência mal compreendida no exterior.

Esses diversos sintomas convidam-nos a retomar os princípios fundamentais da democracia e, principalmente, aquele segundo o qual na democracia o poder último reside nas mãos dos cidadãos, o que implica que os cidadãos sejam vistos como autônomos e responsáveis: como dotados individualmente pelo “bom senso” e apresentando coletivamente o “senso comum”.

Eu gostaria de desenvolver aqui uma ideia principal: que a filosofia das Luzes criou noções e instrumentos essenciais para a teoria da democracia, para a compreensão da vida democrática ainda hoje, e que as ideias do Iluminismo formam a base da tradição do pensamento liberal. Isso me parece importante de ser reafirmado em uma época em que se assiste a um forte ceticismo do público em relação ao político, a uma “perda das referências” intelectuais; uma época em que o liberalismo é constantemente reduzido a apenas uma de suas dimensões, mesmo que importante, mas específica, o liberalismo econômico. Além de mutilar a história das ideias, essa redução favorece a confusão.

Eu gostaria de especificar que meu objetivo nessa exposição não será o de realizar um exercício de engenharia social, política ou econômica, pretendendo mostrar que essa ou aquela disposição poderia melhorar a situação da França e da democracia francesa. Outras pessoas são muito mais competentes do que eu para tratar desses problemas de engenharia. Principalmente se esses problemas são, com certeza, importantes e se é preciso saudar os esforços feitos na França por diferentes centros de pesquisa para resolvê-los, contudo as instituições são ineficazes se os princípios que inspiram os indivíduos são incertos, como Tocqueville indicou com profundidade. Ora, eu acredito que o sentimento que perpassa hoje a França de que ela estaria atravessando uma crise política profunda resulta em grande parte da “perda de referências” que caracteriza principalmente suas elites. É por isso que me parece essencial retomar a força dos princípios que fundam a democracia.

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1 O “espectador imparcial” e a “vontade geral”: noções fundamentais da teoria política do iluminismo

O princípio fundamental da democracia de acordo com a filosofia das Luzes – e de acordo com a tradição liberal que decorre dela – afirma que cada um está habilitado a dispor de um controle último sobre as decisões que lhe diz respeito, direta e indiretamente. De fato, sobre todas as decisões políticas. Como tal princípio é aplicável na prática em um regime de democracia representativa?

Para responder a essa questão, eu partirei de dois dos conceitos mais célebres da teoria liberal da democracia, os de “espectador imparcial” (Adam Smith) e de “vontade geral” (Jean-Jacques Rousseau), me esforçando em sugerir por uma série de exemplos que, longe de ter perdido seu interesse e sua importância, longe de interessar apenas à história das ideias, essas noções são, ao contrário, indispensáveis para a compreensão de inumeráveis fenômenos de nosso tempo e para a renovação radical da democracia. Eles relembram a importância que há para o político sob o regime da democracia representativa de considerar a opinião pública para além das telas que se interpõem entre a opinião e o político. Essas noções fornecem um ponto de apoio fiável e eficaz para a reflexão e ação políticas.

1. 1 O “espectador imparcial”

Podemos desenvolver a teoria subjacente à noção do “espectador imparcial” sob a forma de um raciocínio simples:

- O “espectador imparcial” é qualquer cidadão que consegue fugir de seus interesses, suas paixões, seus preconceitos ou suas pressuposições, para discutir um determinado problema. Nesse caso, o cidadão faz suas apreciações e seus julgamentos a partir do bom senso. Ele considera uma proposição aceitável se houver razões sólidas que o levam a julgar dessa forma.

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- Ora, a partir dos temas que surgem na vida da Cidade, o cidadão encontra-se na posição do espectador imparcial.

- Então, pode-se supor que se consultarmos a população sobre esses temas, um número considerável de pessoas terá grandes chances de dar uma resposta inspirada pelo bom senso. Somadas todas essas respostas, elas produzirão nesse caso uma resposta coletiva de acordo com o “senso comum”.

A esse silogismo, acrescenta-se o seguinte argumento:

- Em uma democracia representativa, o representante é observado pelo espectador imparcial: assim, ele deve procurar antecipar e respeitar seus julgamentos.

A partir disso, se conclui que a democracia representativa é um sistema melhor do que os outros, já que as decisões que são tomadas têm boas chances de serem determinadas pelo senso comum: em outros termos, essas decisões podem ser avalizadas pelo espectador imparcial. Além disso, a democracia é um melhor sistema em relação aos outros, porque ela torna cada cidadão em fonte do direito.

O sociólogo Max Weber teria dito que a democracia representativa é boa do ponto de vista da racionalidade instrumental, já que se pode esperar que ela gere na média boas decisões, e da racionalidade axiológica, já que ela confere a todos uma igual dignidade moral.

Resta apenas precisar uma questão: o que é o bom senso? Uma asserção é fundada no bom senso se podemos derivá-la de um sistema de razões suficientemente convincentes para se impor e mais convincente que os sistemas de razões propostas para a defesa de asserções divergentes. Quanto ao senso comum, ele é o efeito combinado do bom senso de todos.

1. 2 Ilustrações do “bom senso” retiradas de Adam Smith

Eu gostaria agora de sair dessas abstrações e sugerir, a partir de uma série de exemplos, que essas ideias, longe de serem puramente especulativas, têm uma importância fundamental para compreender a vida das democracias naquilo que elas têm de mais concreto.

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Eu começarei com um exemplo dado por Adam Smith. Esse exemplo tem o mérito de ilustrar de forma particularmente eficaz de um ponto de vista didático o interesse concreto da teoria do espectador imparcial. Espírito pragmático, Adam Smith teve incontestavelmente o mérito de mostrar que as noções teóricas que ele criou se aplicavam a casos reais. Na obra A Riqueza das Nações, ele se pergunta por que os Ingleses daquela época consideravam como uma evidência que os mineradores deviam receber mais do que os...

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