Repensando a contribuição kelseniana: Uma perspectiva paradigmática

AutorCarlos Alberto Plastino
CargoProfessor do Programa de Pós-Graduação em Direito
Páginas202-218

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O trabalho de Karen Simões Rosa e Silva, publicado neste mesmo número, veicula uma instigante e renovadora abordagem da obra kelseniana. Tendo como pano de fundo uma leitura crítica dos principais pressupostos do paradigma moderno, a autora examina as críticas tradicionalmente endereçadas ao autor de Teoria pura do direito, particularmente aquelas que o acusam de ter esquecido tanto a dimensão valorativa do direito quanto sua dimensão social. A estratégia discursiva da autora consiste em sublinhar a diferença fundamental entre “ciência do direito” e “direito”, mostrando que a ausência de uma dimensão valorativa pode ser assinalada para a ciência do direito, mas não para a compreensão kelseniana do direito. E ainda que essa ausência não obedece a quaisquer desinteresses do autor por questões éticas, mas caracteriza sua compreensão da ciência como uma ferramenta, ao mesmo tempo situada num plano diferente do ocupado pela dimensão valorativa e inserida num contexto social e político que se constitui como o terreno específico das questões éticas.

A compreensão desta complexa e importante perspectiva exige, como se verá, aprofundar questões centrais da problemática ontológica e epistemológica contemporânea. Isto é, exige questionar os pressupostos do paradigma moderno, paradigma que sustenta as críticas acima referidas. Dito de outra maneira: a autora sustenta que ditas críticas – tanto as formuladasPage 203por partidários do direito natural quanto por aqueles que militam na sociologia jurídica, compartilham, apesar de suas diferenças, de uma comum incompreensão dos alicerces fundamentais da obra kelseniana. No intuito de facilitar a compreensão da argüição desenvolvida pela autora, esta primeira parte do artigo, de minha autoria, examinará as críticas dirigidas aos pressupostos do paradigma da modernidade.

Convém salientar, inicialmente, que existe uma solidariedade intrínseca entre a ontologia proposta por determinada perspectiva paradigmática e a epistemologia pertencente a esse mesmo paradigma. No caso do paradigma da modernidade, à concepção de um real inteiramente organizado conforme a lógica racional – “o universo esta escrito em caracteres matemáticos” (Galileu) – corresponde uma concepção do conhecimento ao mesmo tempo unilateral e potencialmente ilimitada. Unilateral porque outorga exclusividade ao pensamento racional, enquanto ignora qualquer outra modalidade de percepção e conhecimento. E potencialmente ilimitada porque, ao pressupor um real inteiramente organizado conforme a lógica racional, sustenta a possibilidade de a razão humana vir a conhecer, também inteiramente, as leis que regem esse real. Arrancado da sua ligação umbilical com a natureza, o homem imaginado pela modernidade carrega um corpo que é pensado conforme a metáfora da máquina, e um psiquismo em última instância reduzido à consciência racional. Ignorado-o como uma unidade complexa (“psicosoma”) dotada de diversas formas de ligação com o real, o paradigma moderno constrói uma representação do ser humano que mutila sua rica complexidade. Como conseqüência, desconhece o papel decisivo que possuem na apreensão e compreensão do real, da vida e do próprio homem, a intuição e o pensamento não racional e as modalidades de percepção do real não mediada pela estratégia que separa sujeito e objeto de conhecimento. Inserido em um modelo de sociedade e num conjunto de relações sociais construídas a partir dessa concepção paradigmática reducionista; separado da natureza e da sua natureza, o homem moderno desenvolveu uma prodigiosa capacidade de conhecimento científico e manipulação tecnológica, ao mesmo tempo em que construiu como modo de vida atitudes e práticas de dominação e predação. Essas práticas são importantes sublinhar, sustenta-se numa concepção do conhecimento e do homem que o imaginam dotado da capacidade potencial de se apropriar inteiramente do conhecimento sobre o real, reduzindo-o a ser seu objeto de pensamento e submetendo-o a seu poder. A transformaçãoPage 204das coisas em objetos, ignorando no real a dignidade da vida, operou um drástico reducionismo ontológico, permitindo expulsar a concepção do mistério1, termo com o qual os gregos designavam aquilo do real que escapava a sua apreensão pela consciência racional. Os avanços prodigiosos obtidos no terreno do conhecimento do mundo material e na sua explicação foram acompanhados, como conseqüência do reducionismo desta perspectiva paradigmática, pela crescente incompetência dos homens e das sociedades para lidar com a natureza (o desastre ecológico é já evidente) e para administrar a vida social e individual.

O imaginário moderno pensa o real como material, racionalmente organizado e pensável conforme a metáfora da máquina, isto é, possuidor de um dinamismo inteiramente monopolizado por relações de causalidade conhecíveis. E o pensa ainda, sendo esta sua característica maior, ao interior de uma perspectiva dualista, na qual o ser humano é radicalmente separado da natureza, como dito acima. Este dualismo fundamental se desdobra no dualismo postulado entre a natureza e a criação humana – a cultura. E ainda nos dualismos entre corpo e psiquismo, e sujeito/objeto na concepção do conhecimento. Se o real fosse inteiramente racional, como postula a modernidade, desdobrando nos tempos modernos a ontologia essencialista imaginada pela filosofia grega, seria possível conhecer racio-nalmente como as coisas são na sua essência, contando-se assim com um fundamento natural para uma ética natural-racional. Este postulado presume a existência de uma forma de ser racionalmente organizada da natureza do homem e da dinâmica geral da vida. Esta presunção, todavia, atribui arbitrariamente ao conjunto do existente a forma de ser da parcela do real estudada pela física newtoniana, parcela denominada por Castoriadis2 de “primeiro estrato natural”. Esta assimilação do conjunto complexo do real a uma de suas formas de ser orientou decisivamente a construção das ditas “ciências” sociais e humanas, impondo-lhes uma perspectiva explicativa e ignorando seu potencial compreensivo. Em síntese: o paradigma moderno postulou um real simples e inteiramente submetido à lógica racional iden-Page 205titária. Este postulado exigiu, entretanto, ignorar a complexidade das modalidades de apreensão de que o homem é capaz, forjando uma concepção antropológica mutiladora e ignorando, em suma, a riquíssima complexidade do real e do fenômeno humano. Convém lembrar, neste ponto, que esta extensão arbitrária da forma de ser de uma parte ao todo é postulada antes que provada postulação que presidiu a escolha dos fatores a serem incorporados na concepção teórica e daqueles que seriam ignorados. Embora este procedimento teórico seja evidente, o sucesso espetacular do conhecimento científico do mundo material e da tecnológica que ele torna pos-sível emudeceu as críticas e cimentou a hegemonia do paradigma moderno. Todavia, tanto os crescentes impasses que ameaçam a civilização moderna quanto o próprio avanço do conhecimento tornaram evidente a crise do paradigma, possibilitando o desenvolvimento de um lento e multifacetado processo de emergência da compreensão da complexidade do real, das modalidades do conhecer, da vida e do próprio homem.

O direito natural moderno, também denominado direito natural racional, representa no campo do direito a concepção essencialista da modernidade acima criticada. Pressupondo a existência de um conjunto de normas naturais reguladoras da vida humana e das relações sociais, e ainda a capacidade do homem de aceder, com sua razão, ao conhecimento dessas normas, o direito natural racional foi proposto como referência transcendental do direito positivo, fornecendo ao mesmo tempo as bases para uma ética natural e racional3. A concepção do direito natural sustentou – em alguma de suas versões – a conquista política cristalizada na promulgação dos direitos do homem, tendo tido assim uma conseqüência altamente positiva. Entretanto, num sentido mais amplo, seu papel tem sido, como parte da reação que recriou a transcendência como referência de ordem4, o de situar fora da história – e, portanto, legitimar – a projeção de interesses e concepções dos segmentos sociais dominantes5.

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A crítica às concepções jusnaturalistas integra uma crítica mais ampla que tem por alvo a ontologia essencialista e racionalista. Insere-se, portanto, numa dinâmica da qual faz parte a crítica à teoria iluminista da lingua- gem, isto é, à teoria representacional da linguagem. Esta crítica, como se sabe, refuta a concepção que faz dos termos da linguagem mera representação de essências que os precedem. Alternativamente, a linguagem é pensada como uma construção histórica, e, portanto contingente, organizadora do real. Nesta última ótica, a ciência não representa a verdade do real, mas apenas constitui uma construção que pode ser pertinente para lidar com ele. Este movimento teórico de crítica ao essencialismo que o pensamento contemporâneo torna iniludível manifestou-se, no campo do direito, pela emergência do positivismo. Neste ponto é preciso lembrar, para uma melhor compreensão do tema que nos ocupa, que tanto no campo do direito como no campo mais amplo da discussão ontológica, a critica ao essencialismo racionalista teve como conseqüência inevitável à erosão das bases de uma concepção ética sustentada por um fundamento natural racionalmente conhecido. Seu abandono, com a hegemonia da perspectiva positivista e o concomitante abandono da perspectiva essencialista, significaria, assim, ao mesmo tempo, erodir as bases de qualquer ética fundada na natureza.

O empreendimento teórico kelseniano insere-se na perspectiva de crítica ao essencialismo e à possibilidade de uma ética natural racionalmente conhecível. Na ótica do jurista, “a ciência do direito” caracteriza uma construção racional sobre o sistema jurídico. Ela não se ocupa de...

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