Repensando a penhora em execução fiscal contra o falido

AutorGustavo Henrique de Almeida
CargoMestrando em Direito Empresarial (FUIT-MG); Especialista em Direito Empresarial (UGF-RJ); Pósgraduado em Direito Privado (UCAM-RJ); Advogado.
Páginas329-349

Page 329

1. Introdução

A necessidade de se conservar a empresa alimenta discussões em diversas oportunidades nas quais a preservação da atividade empresária se vê ameaçada, seja em razão da aplicabilidade de outro princípio no caso concreto, ou mesmo em virtude da indiscriminada aplicação de dispositivos legais em detrimento da norma principiológica aludida.

Questiona-se a possibilidade de colisão entre o princípio da preservação da empresa e os dispositivos da Lei de Execuções Fiscais quando há bem de empresário penhorado em execução fiscal antes da sentença que decreta a quebra deste. O questionamento nasce a partir do entendimento dominante no STJ de que ajuizada a execução fiscal anteriormente à falência, com penhora realizada antes desta, não ficam os bens penhorados sujeitos à arrecadação no juízo falimentar. Surge, então, um problema que consiste em saber se nesses mencionados casos resta ferido o princípio da preservação da empresa, por não ser possível alienar o conjunto patrimonial do falido em bloco para um arrematante que queira continuar a atividade.

Antes de se adentrar no mérito do problema, torna-se oportuno elucidar como ocorre o processo de execução fiscal e a penhora nele realizada, de modo que se possa tratar com clareza do entendimento que se firmou no Superior Tribunal de Justiça e, então, abordar a questão da manutenção da empresa e a desconstituição da penhora em execução fiscal contra o falido.

Sendo assim, cabe elucidar que a dívida ativa que qualquer devedor possua junto ao Page 330 Estado tanto relativamente aos créditos tributários, quanto os créditos não-tributários, 1quando não paga, pode ser cobrada por meio de um processo judicial denominado execução fiscal. A inadimplência relativa à dívida ativa enseja um procedimento que se inicia diretamente na fase executória, sendo o executado citado para, no prazo de cinco dias, pagar a dívida constante da certidão, 2 com os juros e multa de mora e encargos indicados na certidão de dívida ativa, ou garantir a execução.

A Lei n. 6.830/80, de 22 de setembro de 1980, constitui a norma que rege a execução fiscal no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. Referida Lei trata da satisfação forçada de créditos da Fazenda Pública de forma distinta de outras execuções de quantia certa previstas na legislação processual brasileira, sendo o foco da demanda executiva fiscal a celeridade e a agilidade do processo promovido pela Fazenda. 3

Característica da Lei de Execuções Fiscais, os privilégios para a Fazenda Pública nela consubstanciados, de tantos e tão exagerados, chamam a atenção da doutrina, a ponto de se afirmar que em prol da Fazenda existem favores extremos que chegam, em vários momentos, a repugnar à tradição jurídica do direito brasileiro. 4 Araken de Assis argumenta que "anima o Estado brasileiro, às vezes, um profundo espírito caviloso, que avulta no tratamento diferenciado conferido, de um lado, ao crédito da Fazenda Pública, e, de outro, ao crédito contra a Fazenda" 5.

Não obstante aos privilégios que a doutrina aponta, a ineficiência do processo de execução fiscal é incomensurável. Kiyoshi Harada destaca alguns pontos que revelam a inutilidade do processo executório, cuja transcrição se faz oportuna:

  1. o número de execuções fiscais ajuizadas corresponde a mais de 50% dos processos judiciais, em geral, em curso no âmbito do Poder Judiciário, sendo que no âmbito da Justiça Federal essa proporção é de 38,8%; Page 331

  2. os dados de 2005 revelam que a taxa média de encerramento de controvérsias em relação às novas execuções fiscais ajuizadas é inferior a 50% e apontam um crescimento de 15% de estoque de execuções em 1ª instância na Justiça Federal, havendo uma taxa de congestionamento médio de 80% nos julgamentos de 1ª instância;

  3. existem 2,5 milhões de execuções judiciais no âmbito da Justiça Federal, com baixíssima taxa de impugnação, seja por meio de embargos, seja por meio de exceção de pré-executividade;

  4. no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, enquanto o processo administrativo tributário leva em média 4 anos, a execução judicial leva 12 anos para findar;

  5. menos de 1% do estoque de dívida ativa da União de R$ 400 bilhões (R$ 600 bilhões se incluída a da Previdência Social) ingressam aos cofres públicos por via de execução fiscal, bem menos do que o percentual alcançado por medidas de parcelamento (REFIS, PAES e PAEX);

  6. considerados os valores sob execução judicial e os que estão sob discussão administrativa, a dívida ativa da União atinge a cifra de R$ 900 bilhões, ou seja, 1,5 vezes a estimativa de receita da União para o exercício de 2006. 6

Infere-se dessas informações que o processo de execução fiscal, além de emperrar o Poder Judiciário, consiste em um instrumento de privilégios para o ente fazendário que, não obstante, é ineficaz.

Um dos privilégios consagrados pela legislação em comento consiste na exclusão da execução dos créditos fazendários dos juízos universais, ou seja, uma das preocupações da norma contida no art. 5º da Lei n. 6.830/80 é a de liberar a Fazenda da sujeição a todo e qualquer juízo universal, 7 dentre os quais se destaca o juízo universal da falência. Desse modo, a competência para apreciar a execução fiscal não se altera em caso de decretação de quebra. 8 Page 332

Havendo regra expressa no sentido de que o foro da execução fiscal se mantém em face de juízos universais, em especial o da falência, sobrevindo decisão judicial que decrete a quebra do devedor empresário, a execução promovida pelo ente fazendário continuará no foro onde se encontrava antes da decretação falencial.

O processo de execução fiscal não será alterado ou mesmo paralisado em virtude da falência do devedor executado. A execução fiscal seguirá o seu curso até a alienação dos bens penhorados nas varas de Execuções Fiscais. Frise-se que a alienação dos bens ocorre se houver penhora realizada antes da sentença de quebra, pois, caso não haja penhora realizada e sobrevenha sentença decretatória de falência, qualquer eventual penhora deve ser feita no rosto dos autos do processo falimentar. 9

Em suma, havendo penhora promovida pela Fazenda antes da sentença falimentar, os bens são alienados e o produto da arrematação é entregue ao juízo falimentar, que pagará aos credores, inclusive à Fazenda, segundo o rol de preferência do art. 83, da Lei n. 11.101/05.

Esse é o entendimento majoritário nos tribunais, especialmente o Superior Tribunal de Justiça, que decorre de uma antiga súmula, de n. 44, do extinto Tribunal Federal de Recursos, cuja transcrição do teor ora se faz necessária:

Ajuizada a execução fiscal anteriormente à falência, com penhora realizada antes desta, não ficam os bens penhorados sujeitos à arrecadação no juízo falimentar; proposta a execução fiscal contra a massa falida, a penhora far-se-á no rosto dos autos do processo da quebra, citando-se o síndico. 10

Em virtude do entendimento do Superior Tribunal de Justiça relativamente às normas contidas nos arts. e 29, da Lei n. 6.830/80 de liberar a Fazenda Pública da sujeição a todo e qualquer juízo universal ou coletivo e, consequentemente, promover a alienação dos bens penhorados antes da falência naquele foro, a arrecadação que o Page 333 administrador judicial da falência deve fazer no juízo falimentar, apurando-se todos os bens do falido, não contemplará o bem ou os bens penhorados nas varas de execuções fiscais.

Por outro lado, a lei falimentar, prestigiando o princípio da preservação da empresa, prescreve em seu artigo 140, inciso I, que a alienação dos bens arrecadados pelo administrador judicial será realizada prioritariamente mediante a venda dos estabelecimentos empresariais em bloco. Não sendo possível, proceder-se-á à venda dos estabelecimentos das filiais ou unidades produtivas isoladamente. Não sendo viável, passase à alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos do devedor ou, na última hipótese, à alienação dos bens individualmente considerados.

Diversos autores, de diversos países, 11 sustentam que a preservação da empresa no processo falimentar se concretiza por meio da alienação dos bens do falido para um novo empresário destinatário das unidades produtivas, o que estabelece o artigo 140 da Lei n. 11.101/05. Os autores esclarecem por qual razão deve ser vendido o conjunto patrimonial de forma integral como primeira opção. Segundo eles, o motivo reside na conservação da atividade econômica, em respeito ao princípio da preservação da empresa. 12

Portanto, a alienação do complexo de bens organizados para a atividade empresarial, "trata-se, na realidade, de venda global, ensejadora da preservação da empresa com novo empresário ou sociedade empresária [...]". 13

Com tal alienação e com o afastamento dos antigos administradores, pressupõe-se que a empresa possa prosseguir suas atividades em mãos de novos adquirentes. 14

Surge, pois, o problema que consiste em saber se resta violado o princípio da preservação da atividade empresária caso não ocorra a arrecadação e alienação de bens do falido no juízo universal falimentar que já estejam penhorados em execuções fiscais antes do decreto de quebra, uma vez que não seria possível adquirir o conjunto patrimonial em bloco para continuar a empresa. Page 334

Tal problemática possui uma conotação prática muito instigante. Imagine-se que o arrematante em uma alienação promovida no juízo falimentar, de acordo com o artigo 140, inciso I, da Lei 11.101/05, adquira todo o acervo patrimonial do falido. Se assim o arrematante o faz, muito provavelmente ele destinará os bens do falido à continuidade da atividade empresarial que por este era...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT