Repensando Loïc Wacquant: do Estado Social ao Estado Penal. O nazismo está de volta?

AutorOtávio Bravo
CargoMestre em Direito Internacional Público pela UERJ e em Direito Internacional Penal pela Universidade de Leiden (Holanda); Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de Galway (Irlanda);
Páginas124-157
Direito, Estado e Sociedade n.36 p. 124 a 157 jan/jun 2010
Repensando Loïc Wacquant: do estado
social ao estado penal – o nazismo está de
volta?
Otávio Bravo*
A partir da ascensão def‌initiva do mercantilismo, no Século XVII, e,
principalmente, da consolidação da Revolução Industrial, nos Séculos
XVIII e XIX, a sociedade economicamente liberal tem buscado uma forma
pragmática e – se possível – lucrativa de lidar com o seguimento social in-
desejável que o mercado, em sua heterogeneidade de perspectivas, possibi-
lidades e ambições, naturalmente posicionou à margem da estrutura social.
O problema inexistia no sistema feudal, no qual os vassalos detinham de
alguma homogeneidade de condições de vida e de uma limitação óbvia de
ambições individuais. Nessa realidade, o Direito Penal exercia um papel
pouco relevante, pois o controle dos conf‌litos sociais poderia se dar tanto
com a criminalização primária1 de (condutas) que interessassem ao senhor
feudal ou simplesmente pela imposição da força que atendesse aos seus
interesses (legítimos ou ilegítimos).
A sociedade que se formou a partir da industrialização maciça buscou,
então, alternativas para o aproveitamento produtivo dos párias urbanos2
* Mestre em Direito Internacional Público pela UERJ e em Direito Internacional Penal pela Universidade de
Leiden (Holanda); Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de Galway (Irlanda); Professor de Di-
reito Penal e Direito Internacional Público do Departamento de Direito da PUC-Rio. Email: obravo@uol.com.br.
1 A expressão é intencionalmente surrupiada da obra de ZAFFARONI, BATISTA et alli, 2003, pp. 43 e
seguintes.
2 A expressão é referência expressa às excelentes observações de Loïc Wacquant, que serão analisadas
mais à frente.
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ou, na incapacidade de atingir tal objetivo, para o seu afastamento puro
e simples. Uma das melhores opções encontradas para tanto (fortalecida
pelas duas f‌inalidades precípuas do capitalismo – assegurar a existência de
mão de obra produtiva e barata e manter ininterrupta a linha de produção)
se deu através da hipertrof‌ia e da maximização do sistema penal.
De fato, nesse processo, o direito penal, como af‌irmação do poder bur-
guês (aliás, seria tolice ou ingenuidade negar a obviedade de que o Direito,
em todos os seus ramos, é, quase sempre, um instrumento de af‌irmação
do poder), constituía um instrumento extraordinário. Longe de esgotar a
matéria, mas apenas ilustrando-a, é possível af‌irmar que tal fenômeno se
deu através de quatro mecanismos: eliminação ou esquecimento dos inú-
teis (os inadequados para o trabalho lucrativo), aproveitamento de todos os
minimamente capazes de contribuição econômica, conjugação da punição
dos não aproveitáveis com a necessidade de criação de mão de obra dispo-
nível (obrigando-os a trabalhar de alguma forma) e, como complemento
desse terceiro mecanismo, estabelecimento da incriminação das condutas
desviantes (improdutivas).
Um dos melhores exemplos do primeiro mecanismo se deu com a cria-
ção de um regime celular de prisão, no qual o sentenciado era esquecido
pela sociedade e lá permanecia, tendo ali, com exclusividade, os seus úni-
cos contatos com o mundo exterior (visitas religiosas, controle epidêmi-
co, alimentação, etc.). A ideia, que deu origem ao sistema penitenciário da
Filadélf‌ia, também adotado pela Bélgica, no Século XVIII, não poderia ser
mais sintomática: “a cela é o túmulo do vivo”3. Adicione-se a isso o desti-
no semelhante dado aos mentalmente desajustados não criminosos e aos
criminosos mentalmente desajustados, agrupados nos mesmos estabeleci-
mentos de isolamento, e restará ainda mais evidente a ideia de afastamento
dos indesejáveis (não produtivos).
O aproveitamento do trabalho infantil (exemplo ideal do segundo me-
canismo referido), muitas vezes indiretamente incentivado pela legislação
criminal, se deu em todas as etapas de consolidação da Revolução Indus-
trial (e, porque não dizer, ainda se dá nas etapas iniciais da Revolução Neo-
liberal, que se seguiu ao f‌inal da Terceira Guerra Mundial – a Guerra Fria).
Deixando de lado a sintomática realidade europeia do Século XIX, limite-
mo-nos ao exemplo cristalino da legislação brasileira do f‌inal do Século
3 MAGALHÃES NORONHA, 1987, p. 228.
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XIX, combinando (1) a inserção do critério biopsicológico para aferição da
imputabilidade penal do menor de 9 aos 14 anos de idade (art. 27, §§ 1º
e 2º do Código Penal de 1890), (2) a sanção, estabelecida aos “pequenos
delinquentes com discernimento”, de recolhimento a “estabelecimentos
disciplinares industriais” (art. 30 do mesmo diploma legal) e (3) a edição
do Decreto nº 1.313, de 17 de janeiro de 1891, que proibia o trabalho nas
fábricas a menores de 12 e maiores de 8 anos, “salvo a título de aprendiza-
do”, em fábricas de tecido4.
A relação entre punição e trabalho, por sua vez, é facilmente notada
pelo estabelecimento das workhouses inglesas e o progresso das ideias de
Bentham desde o estabelecimento carcerário panóptico até a concepção da
pena como “treinamento mediante controle estrito da conduta do apena-
do, sem que esse pudesse dispor de um só instante de privacidade” e a
expansão do conceito lastreada nos mesmos valores: “vigilância, arrepen-
dimento, aprendizagem, ‘moralização’ (trabalhar para a felicidade)”. Em
geral, o sistema corresponderia “à forma de trabalho industrial, tal como
era concebida e praticada na época: a vigilância estrita do trabalhador na
fábrica, o controle permanente pelo capataz, a impossibilidade de dispor
de tempo livre durante o trabalho, etc. As analogias entre o cárcere e a
fábrica têm sido estudadas nos últimos anos, com resultados satisfatórios
e reveladores. Não podia ser de outra maneira, pois se havia concebido o
cárcere como o treinamento dos desordeiros para as fábricas”5.
Finalmente, o sistema se aperfeiçoa com a fórmula capaz de levar os
desajustados para o trabalho que rejeitavam. Assim, surge, ainda no Século
XIX, a incriminação da “vadiagem”, da “mendicância”, do “abandono de
emprego” e até mesmo da realização de greves (v. art. 415 do Código Pe-
nal francês de 1810). Nilo Batista lembra que, “referindo-se à reforma dos
dispositivos conhecidos como Poor Law, em 1834, Disraeli dizia que na
Inglaterra ser pobre passava a ser um crime. Aqueles que, por uma razão
ou outra, se recusavam ou não conseguiam vender sua força de trabalho,
passaram a ser tratados pela justiça mais ou menos como nos julgamentos
descritos por Jack London em seu conto autobiográf‌ico: a cada 15 segun-
dos, uma sentença de 30 dias de prisão para cada vagabundo”6.
4 V., a respeito, BATISTA, 1990, pp. 39 a 41.
5 ZAFFARONI e PIERANGELI, 1999, p. 279.
6 In op. cit. na nota 4, p. 35.
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