"Respeitem a forma de a gente ser": Protocolo de Consulta Munduruku e pluralismo jurídico/"Respect who we are": Munduruku Consultation Protocol and legal pluralism.

Autorde Oliveira, Rodrigo Magalhães
  1. Introdução: os diferentes sentidos da consulta prévia

    O direito à consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989, afirma que os povos indígenas e tribais (1) devem ser consultados pelos governos sempre que forem previstas medidas administrativas ou legislativas suscetíveis de afetá-los diretamente (Artigo 6). A consulta prévia é um espaço político, jurídico e institucional, no qual os grupos étnicos tem oportunidade de participar do processo decisório relacionado a medidas que afetem seus direitos coletivos. Ao prever o direito à consulta prévia, a Convenção no. 169 - incorporada às leis brasileiras com status normativo supralegal (2) - busca inaugurar uma nova relação, mais simétrica e respeitosa, entre grupos étnicos e Estados nacionais (ROJAS GARZÓN, YAMADA, OLIVEIRA, 2016: 6).

    Com a expansão da fronteira capitalista sobre territórios até então não inseridos no mercado (ou não integralmente inseridos), a consulta se torna uma das maiores reivindicações dos grupos étnicos neste início de século: povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais lutam pelo respeito ao direito de serem consultados, em meio ao avanço de diversos projetos econômicos sobre seus territórios. O que se observa, no entanto, é que quando associada a projetos permeados por interesses públicos e/ou privados hegemônicos, a consulta prévia não atende às expectativas dos grupos étnicos e deixa de cumprir até mesmo os parâmetros jurídicos estabelecidos.

    Rodríguez Garavito e Baquero Díaz, a propósito, comparam os casos de Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, no Brasil, da exploração petroleira no território Kichwa, no Equador, e da hidrelétrica de Urrá, na Colômbia, e demonstram que o direito à consulta prévia vem sendo sistematicamente violado nas mais diversas regiões da América Latina, a exemplo da determinação que exige que a consulta seja prévia a qualquer autorização (2019).

    Em tais contextos demasiadamente assimétricos, a consulta torna-se palco de práticas violentas e arbitrárias. Rodrigo de la Cruz, indígena Kichwa, aponta que as petroleiras não consultam, mas persuadem; não respeitam a organização política dos povos consultados, iludem e dividem; não informam com honestidade, transparência e boa fé, mas manipulam; não estabelecem acordos democráticos, compram; não debatem com transparência, atuam de forma subterrânea (2005:5).

    Os conflitos decorrentes destes projetos, portanto, não se circunscrevem aos seus impactos sociais e ambientais, tampouco ao (des)cumprimento da legislação; também assumem a dimensão de embate entre os sentidos que os grupos em conflito atribuem às categorias e dispositivos legais.

    Em texto pretérito, foi apresentada etnografia documental do conflito travado entre os Munduruku e o governo federal em torno da UHE de São Luiz do Tapajós, nos moldes propostos por Little (2006), tendo como fio condutor a reivindicação dos indígenas pela adequada aplicação do direito à consulta prévia, livre e informada. O estudo concluiu que os agentes conferem sentidos diferentes e, por vezes, antagônicos ao direito em disputa (OLIVEIRA, 2016).

    Estes "sentidos diferentes" não podem ser lidos meramente como distintas formas de interpretar um dispositivo legal específico, amoldando-se ao que Häberle denominou de sociedade aberta de intérpretes (2014). Os dados etnográficos ora apresentados, e que complementam aqueles anteriormente publicados, demonstram que se trata de uma autêntica dissensão normativa, na qual as sensibilidades jurídicas (GEERTZ, 1998) de grupos com diferentes sistemas cognitivos legais (ALMEIDA, 2003) incidiram sobre a aplicação situacional (GLUCKMAN, 2009; GUIZARDI, 2012:27) do direito à consulta prévia, livre e informada, no caso da UHE São Luiz do Tapajós.

    Neste artigo, com base em etnografia documental (3), é apresentada a dissensão normativa entre a sensibilidade jurídica munduruku e a sensibilidade jurídica governamental quanto ao direito à consulta prévia (4), a partir do caso da UHE São Luiz do

    Tapajós. Conforme será evidenciado ao longo deste manuscrito, esta dissensão não opera de forma democrática, uma vez que a sensibilidade jurídica governamental constitui-se a partir de uma pretensão de hegemonia, buscando exercer, por meio de violência "legítima" e não legítima, o monopólio regulatório dos direitos étnicos e a supressão da diversidade.

    Em seguida, os dados etnográficos são utilizados para analisar de que forma as sensibilidades jurídicas dos grupos étnicos devem ser incorporadas aos processos de consulta prévia conduzidos pelo Estado, obedecendo a determinações da própria Convenção no. 169 e de outros documentos jurídicos. Nesse sentido, os Protocolos de Consulta Prévia, nos quais os grupos étnicos consubstanciam sua sensibilidade jurídica relativa ao direito à consulta, são documentos dotados de juridicidade.

    Este artigo situa-se no campo interdisciplinar da Antropologia Jurídica, no qual o emprego do método etnográfico permite compreender a construção dos processos de consulta prévia para além de uma análise jurídico-centrada (SIGAUD, 1996) em torno do cumprimento/descumprimento das normas. Com isso, pretende-se contribuir com alargamento do universo de compreensão das relações jurídicas e auxiliar o Direito a "aprender a sobreviver sem as certezas que o geraram" (GEERTZ, 1998: 328), notadamente o monismo ou onipresença do direito estatal.

  2. Etnografando a dissensão normativa

    Em "O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa", obra fundamental para o campo da Antropologia Jurídica, Clifford Geertz analisa que o direito funciona à luz do saber local e é parte de uma maneira específica de imaginar a realidade, que não pode ser reduzida a um conjunto de normas, leis ou regulamentos (1998: 259). Nesse sentido, o conceito de sensibilidade jurídica, proposto pelo autor, refere-se aos diferentes sentidos de justiça ou sistema de direitos próprios de cada povo e permite falar de forma comparativa sobre as bases culturais do direito.

    No caso dos povos indígenas e de outras minorias étnicas, suas sensibilidades jurídicas são resultados de uma contínua redefinição provocada pela imposição histórica do direito estatal (TERESA SIERRA, 2011: 386). Em meio a esses processos de imposição, por outro lado, os direitos humanos são apropriados estrategicamente e incorporados aos sistemas de direitos de povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais, que os ajustam e os redefinem de acordo com seus sistemas de significados culturais (ENGLE MERRY, 2010: 21). Nesse sentido, embora o direito à consulta--enquanto um direito/procedimento estatal específico - tenha origem na previsão da Convenção no. 169, ele vem sendo progressivamente apropriado por estes grupos étnicos, que o reformulam a partir de suas sensibilidades jurídicas, garantindo-lhes ressonância cultural (ENGLE MERRY, 2010).

    A etnografia apresentada na sequência permite verificar que, ao ser apropriado pelos Munduruku, o direito à consulta prévia interage com concepções e regras jurídicas nativas acerca da territorialidade, relação com a natureza, organização social e política, cosmologia, dentre outras dimensões da vida coletiva que, embora presentes em toda e qualquer sociedade, não são universais, mas próprios de sistemas de significados culturais particulares (GEERTZ, 1998).

    Assim, os diferentes "sentidos" que os Munduruku e o governo federal atribuem à consulta prévia não são simples interpretações, mas se referem às "bases culturais do direito" (GEERTZ, 1998) ao decorrerem da interação do direito à consulta com diferentes estruturas de significação e regras jurídicas próprias, constituindo sensibilidades jurídicas particulares. Passo, então, a analisar a dissensão normativa entre a sensibilidade jurídica munduruku e a sensibilidade jurídica governamental acerca do direito à consulta prévia.

    São Luiz do Tapajós é uma usina hidrelétrica de grande porte (potência nominal média de 4.012 MW) projetada para o médio curso do rio Tapajós, sudoeste do estado do Pará, em região de grande diversidade sociocultural e ambiental. Os estudos ambientais previram impactos sobre dezenas de comunidades tradicionais ribeirinhas e sobre o povo indígena Munduruku.

    Ocupada tradicionalmente pelos Munduruku, a Terra Indígena Sawré Muybu seria uma das áreas de maior concentração de impactos e teria 7% de sua superfície alagada, implicando na remoção compulsória de ao menos três aldeias (Sawré Muybu, Dace Watpu e Karo Muybu). Além de impactos à pesca, à navegação, à integridade territorial e à segurança alimentar e do acirramento dos conflitos fundiários, a hidrelétrica destruiria ao menos dois lugares sagrados para os indígenas: Daje Kapap Eypi (onde o deus Karosakaybu teria criado a humanidade) e a Garganta do Diabo (FEARNSIDE, 2015: 23-24).

    Considerada prioritária pelo planejamento energético brasileiro (BRASIL, Conselho Nacional de Pesquisa Energética, 2011), a hidrelétrica começou a ser licenciada em 2011 até ter seu licenciamento arquivado, em 2016, pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em razão da não demonstração da viabilidade ambiental e de inconstitucionalidade apontada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Ministério Público Federal (BRASIL, Fundação Nacional do Índio, 2014) (5).

    Durante esse período, os Munduruku--com população de cerca de treze mil pessoas e 130 aldeias localizadas em oito terras indígenas demarcadas ou em processo de demarcação--protagonizaram diversas ações, como a ocupação do canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu e a elaboração do Protocolo de Consulta Munduruku. O registro etnográfico do histórico do conflito entre os Munduruku e o governo federal em torno da construção da UHE São Luiz do Tapajós pode ser lido em Oliveira (2016).

    Após anos de reivindicação dos indígenas...

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