A responsabilidade civil do empregador pelo uso da tecnologia de inteligência artificial no controle das atividades dos trabalhadores

AutorEugênio Facchini Neto e Cláudio Teixeira Damilano
Ocupação do AutorDoutor em Direito Comparado (Florença/Itália), Mestre em Direito Civil (USP). Professor Titular dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC/RS. Professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS. Desembargador do TJ/RS. / Mestre em Direito pela PUCRS na área de concentração Fundamentos Constitucionais do ...
Páginas21-62
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO
EMPREGADOR PELO USO DA TECNOLOGIA
DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO CONTROLE
DAS ATIVIDADES DOS TRABALHADORES
Eugênio Facchini Neto*1
Cláudio Teixeira Damilano**2
Sumário: Introdução – 1. O advento e impacto da inteligência articial – 2. O uso da inteligência
articial no controle das atividades dos trabalhadores – 3. O poder de controle do empregador
– 4. Privacidade e proteção de dados – 6. A responsabilidade civil do empregador pela violação
aos direitos fundamentais dos trabalhadores – 7. Conclusão – Referências
INTRODUÇÃO
O uso das novas tecnologias está proporcionando grandes transformações
na sociedade. Um dos principais responsáveis por esta modicação é o aprimo-
ramento da inteligência articial, que tem possibilitado uma altíssima eciência,
contribuindo para a diminuição e redução dos custos na execução dos serviços
e na fabricação de produtos.
Nas relações de trabalho, uma das grandes discussões se dá na substituição de
atividades humanas por robôs. Nesse trabalho, analisaremos mais especicamente
o impacto da substituição do ser humano por sistemas dotados de inteligência
articial, capazes de supervisionar as atividades do trabalhador sem que haja a
necessidade da presença física do “patrão.
* Doutor em Direito Comparado (Florença/Itália), Mestre em Direito Civil (USP). Professor Titular dos
Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC/RS. Professor e ex-diretor da Escola
Superior da Magistratura/AJURIS. Desembargador do TJ/RS.
** Mestre em Direito pela PUCRS na área de concentração Fundamentos Constitucionais do Direito
Público e do Direito Privado, com Bolsa CAPES; Pós-Graduado em Direito e Economia pela UFRGS
e Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo CETRA-CESUSC. Formado pela Fundação Escola
da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul – FEMARGS e Graduado em Ciências Jurídicas e
Sociais pela UNISINOS. Pesquisador do Núcleo de Pesquisas CNPQ/PUCRS “Relações de Trabalho e
Sindicalismo”, coordenado pelo Prof. Gilberto Stürmer e “Novas Tecnologias, Processo, e Relações de
Trabalho”, coordenado pela Prof.ª Denise Fincato. Advogado.
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EUGÊNIO FACCHINI NETO E CLÁUDIO TEIXEIRA DAMILANO
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Como objetivo geral, busca-se analisar de que forma os empregadores estão
utilizando a tecnologia da inteligência articial para monitorar as atividades exer-
cidas pelos trabalhadores. Já o objetivo especíco é saber qual o limite do poder de
controle do empregador frente os direitos fundamentais do trabalhador e qual o
regime de responsabilidade civil aplicado em razão da coleta de dados feita pelos
sistemas de inteligência articial. Quanto a esse último recorte, analisar-se-á o
impacto da recente legislação protetiva de dados sobre o tema em estudo.
O estudo adota o método de abordagem hipotético-dedutivo, formulando
hipóteses a serem posteriormente acolhidas ou rejeitadas, após seu estudo apro-
fundado. O método de procedimento será o comparativo e o de interpretação
será o sistemático. O estudo se baseia em fontes bibliográcas, documentais e em
pesquisa de jurisprudência.
Dessa maneira, o texto irá abordar os sistemas de inteligência articial que já
estão disponíveis no mercado e estão sendo utilizados pelos empregadores para
scalizar as atividades realizadas pelos trabalhadores de forma presencial e em
teletrabalho. Após, será desenvolvido o poder de controle, também conhecido
como poder de scalização ou de monitoramento das atividades desempenha-
das pelo trabalhador. Ao nal, serão examinados os direitos fundamentais do
trabalhador como limitador do poder de controle do empregador e o regime
jurídico de responsabilidade civil a ser aplicado, atento ao diálogo decorrente da
incidência da legislação protetiva de dados, tanto a brasileira (LGPD, de 2018, em
vigor a partir de 2020), quanto o Regulamento Europeu de Proteção de Dados, de
2016, em vigor a partir de 2018, mas potencialmente aplicável subsidiariamente,
considerando a cláusula geral de abertura constante do art. 8º da CLT.
1. O ADVENTO E IMPACTO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Segundo Barroso, “a Quarta Revolução Industrial é produto da fusão de
tecnologias, que está misturando as linhas entre as esferas física, digital e biológica
e, em alguma medida, redenindo o que signica ser humano.” Esta revolução,
iniciada há poucas décadas e ainda em curso, desenvolve-se em velocidade
exponencial, dela derivando “esse admirável mundo novo da biotecnologia, da
inteligência articial, da robótica, da impressão em 3-D, da nanotecnologia, da
computação quântica, de carros autônomos e da internet das coisas.” Durante boa
parte do passado das civilizações, a principal riqueza consistiu na propriedade da
terra. A partir da segunda metade do século XVIII, com o advento da Revolução
Industrial, “máquinas, fábricas, fontes de energia e meios de produção em geral
se tornaram mais importantes.” No limiar do novo milênio, “a tecnologia da
informação e o controle sobre os dados transformaram-se nos grandes ativos..
Atualmente, porém, acena-se com um novo estágio, oriundo da “fusão entre a
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tecnologia da informação e a biotecnologia, integrando-se o físico e o virtual, o
humano e o mecânico.1
Um desses impactos deriva diretamente da difusão das inúmeras aplicações
da chamada inteligência articial,2 envolvendo áreas que teríamos a tendência de
armar serem exclusivamente ‘humanas’: anal, a inteligência articial “concluiu,
a seu modo, a 10ª Sinfonia de Beethoven,3 escreveu um conto para competição
literária; criou receitas culinárias; e gerou obra de arte leiloada por milhares de
dólares”.4 E, muitas vezes, percebemos o que é feito pela inteligência articial, mas
não temos a menor ideia de como funcionam. Isso porque “operar a funcionalidade
não exige saber como o dispositivo funciona.5
Trata-se, verdadeiramente, de um admirável mundo novo, repleto de novas
oportunidades, de atividades sendo realizadas de modo mais eciente, mais rá-
pido, mais econômico, com maior grau de acurácia. Todavia, tudo isso não vem
desacompanhado de preocupações.6 Ao contrário, estudiosos da área apontam
1. BARROSO, Luís Roberto. Revolução tecnológica, crise da democracia e mudança climática: limites do
direito num mundo em transformação. Revista Estudos Institucionais, v. 5, p. 1278-1279, set./dez. 2019.
2. G. Comandé fornece a seguinte denição de inteligência articial: “l’intelligenza articiale elabora i
dati che riceve, identica modelli legati a correlazioni ricorrenti, e poi crea e incorpora nuovi modelli:
ció permette ao sistema di testare varie ipotesi e trovare nuove soluzioni senza bisogno dell’imput di
programazione tradizionale umano.” Segundo ele, essa denição é próxima a outras correntes em língua
inglesa, segundo as quais IA “operate autonomously, perceive ther environment, persist over a prolonged
time period, adapt to change, and create and pursue the best expected outcome” – COMANDÉ, Giovanni.
Intelligenza articiale e responsabilità tra liability e accountability. Il carattere trasformativo dell’IA
e il problema della responsabilità. In: Nuzzo, Antonio; OLIVIERI, Gustavo (Org.). Analisi Giuridica
dell’Economia. Bologna: Il Mulino, 2019, p. 169.
3. E este não foi o primeiro experimento em que programas de computador são encarregados de compor.
Outro exemplo é a conclusão da famosa Sinfonia 8, Inacabada, de Franz Schubert, promovida pelo
fabricante chinês de smartphones Huawei, e estreada em fevereiro de 2019, em Londres – conforme
informação disponível em: https://www.dw.com/pt-br/intelig%C3%AAncia-articial-completa-
10%C2%AA-sinfonia-de-beethoven/a-51581247.
4. FREITAS, Juarez; FREITAS, omas Bellini. Direito e Inteligência Articial: em defesa do humano.
Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 144.
5. ROSA, Alexandre Morais da. A questão digital: o impacto da inteligência articial no Direito. Revista
de Direito da Faculdade Guanambi. v. 6, n. 02, p. 7 e 8. Guanambi, jul./dez. 2019.
6. De fato, em razão desses temores, admite-se, de forma mais ampla, “que um verdadeiro ‘princípio da
precaução’ veio substituir os paradigmas da responsabilidade e da solidariedade que pautaram o século
XIX e o século XX, respetivamente. Com efeito, a constatação de que vivemos no melhor dos mundos,
isto é, que ‘somos as pessoas mais saudáveis, mais ricas e mais longevas que já existiram’ (Rosenvald),
leva a pressupor que não seja verdadeiramente o risco, mas antes o medo, o que justica a precaução. É
a conjetura de que o incerto é perigoso, ou seja, a suposição da perigosidade da incerteza, o que, numa
outra via de pensamento contemporâneo, vem justicar a precaução. O medo é irracional, porque não
tem em conta a probabilidade dos eventos temidos virem a correr: o princípio da precaução emerge,
precisamente, porque a questão da probabilidade é negligenciada. Quer convenhamos em que o medo é
justicado, ou não, a pressuposição da perigosidade do incerto é um elemento chave para compreender
o rumo atual da responsabilidade civil” – nesses termos, FERREIRA, Ana Elisabete. Responsabilidade
civil extracontratual por danos causados por robôs autónomos: breves reexões. Revista Portuguesa
do Dano Corporal. ano XXV, n. 27, p. 54. dez. 2016.
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