Responsabilidade civil e contemporaneidade: Retrato e moldura

AutorGiselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
CargoDoutora e Livre Docente em Direito pela FDUSP. Professora Associada ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. E-mail: hironaka@uol.com.br
Páginas581-592

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1. A atual dimensão da responsabilidade civil no direito brasileiro

O anterior Código Civil Brasileiro1, de 1916, filiou-se à teoria subjetiva para a composição das regras jurídicas acerca da responsabilidade civil, como se verifica no seu art. 159, do qual se diz ser o habitat legal da responsabilidade derivada da culpa.2 Mas tal posicionamento não impediu que o legislador anterior, em passagens esparsas, houvesse considerado a adoção da responsabilidade objetiva, baseada no risco e não na culpa. Ambas as posições coexistiram no corpo do velho Código, cabendo lembrar que a regra geral era aquela que fundamentava a responsabilidade civil na idéia de existência de culpa; mas (repita-se) em alguns casos, especialmente fixados pelo legislador, acontecia a emergência da obrigação legal de reparar o dano, independentemente da ocorrência de culpa do agente indenizador. A responsabilidade objetiva, então, posto que obrigação legal de indenizar, esteve invariavelmente prevista na lei e imputou a responsabilidade de ressarcir o dano a certas pessoas, independentemente da prática de ato ilícito, pessoas estas a quem não se admite qualquer escusa subjetiva no sentido de pretender demonstrar a sua não-culpa.

Álvaro Villaça Azevedo desenvolveu, ainda sob a vigência do anterior Código, uma proposta de subclassificação da responsabilidade civil extracontratual objetiva, bifurcando-a em objetiva pura objetiva pura e objetiva impura objetiva impura. Segundo o jurista, a responsabilidade objetiva impura impura tem sempre, como alicerce, a culpa de terceiro, vinculado à atividade do indenizador, ou ainda - como dele pessoalmente já ouvi - o fato do animal e o fato da coisa inanimada. Já a responsabilidade objetiva pura sabilidade objetiva pura, conforme denomina, gerará o dever de indenizar mesmo que inexista culpa de quem quer que seja. Esclarece o autor da proposta classificatória que, "neste caso,Page 582 indeniza-se por ato lícito ou por mero fato jurídico, porque a lei assim o determina. Nesta hipótese, portanto, não existe direito de regresso, arcando o indenizador, exclusivamente, com o pagamento do dano". (AZEVEDO, 1997). É sempre útil relembrar, para deixar melhor definido, que a responsabilidade objetiva - pura pura ou impura impuradeve ser sempre estabelecida pelo legislador, mormente no que respeita à conceituação e aos limites da atividade de risco, sob pena de se deixar o assunto entregue ao outro lado da carabina, vale dizer, sob pena de se criar, para a responsabilidade objetiva, uma vala comum onde tudo tenha abrigo, independentemente de causa, de conseqüência, de prejuízo e da invariável e prévia fixação legal. Nesta dicotomia classificatória da responsabilidade objetiva, conforme propugnada por Álvaro Villaça Azevedo, tanto a objetiva pura objetiva pura como a objetiva impura objetiva impura têm, como características comuns, o fato de que a obrigação de indenizar decorre da circunstância do risco, independe da culpa do agente indenizador, e deve estar rigorosamente pré-fixada em lei. Por sua vez, estão a distinguílas, desnudando o campo próprio da objetiva pura e mostrando-a de forma tão diferente da outra (a objetiva impura) as seguintes características, que apenas àquela primeira dizem respeito: tem, como fonte geratriz, a atividade lícita, mas perigosa; o fato jurídico, que normalmente atua como excludente de responsabilidade, aqui atua como fato gerador do dano, obrigando o executor da atividade em questão a indenizá-lo; não admite o direito de regresso. Diz este renomado autor, a respeito:

[...] continuamos dizer que há duas categorias de responsabilidade com fundamento na teoria do risco: pura e impura. A impura tem sempre, como substrato, a culpa de terceiro, que está vinculado à atividade do indenizador. A pura implica ressarcimento, ainda que inexista culpa de qualquer dos envolvidos no evento danoso. Nestes casos, indeniza-se por ato lícito ou por mero fato jurídico, porque a lei assim o determina. Nestas hipóteses, portanto, não existe direito de regresso, arcando o indenizador exclusivamente, com o pagamento do dano. (AZEVEDO, 1997).

Como exemplo desta espécie de responsabilidade civil - a objetiva impura - é possível apontar os arts. 1527, 1528 e 1529 do Código Civil anterior, que, respectivamente, tratam da responsabilidade do dono do animal, do dono do edifício e do habitante da casa. Como exemplo desta espécie de responsabilidade civil - a objetiva pura - é possível registrar, acompanhando Álvaro Villaça Azevedo, a hipótesePage 583 legislada pela Lei 6.938/81 regulamentada pelo Decreto 88.351/83 - que tratou da indenização ou reparação dos danos causados ao meio ambiente - hoje, substituída pela nova Lei Ambiental nº 9.605/98 e a Lei nº 6.453/77 que dispõe sobre os danos causados por atividades nucleares.

2. A ampliação de horizontes conferida pelo novo Código Civil Brasileiro

No momento atual, após a entrada em vigor do novo Código Civil Brasileiro3, é possível deixar um registro a respeito de certo avanço que o Projeto de Código Civil, conhecido como Projeto Miguel Reale, do ano de 1975, pôde produzir, há cinco lustros. Nem perfeito, nem retrógrado. Nem ambicioso, nem descomprometido com a realidade. Razoável. Com um certo viés de preocupação, caso se considere, de um modo amplo, a recepção da teoria do risco como sistema geral. Ou com um certo viés de coragem, caso se considere a abertura cometida em nome da eqüidade, assunto que absolutamente não habitou o sistema do Código Civil de 1916, ao tempo de sua promulgação.

Já o então Projeto de 1975 - agora novo Código Civil - no cerne da estruturação legislativa da responsabilidade civil, havia introduzido uma regra geral bem distinta do que se teve, até aqui. Vale dizer, introduziu a imputação do dever de indenizar por atribuição meramente objetiva, sendo que não o fez pontualmente, em situações individualizadas, delimitadas, mas o fez como sistema geral, transmudando em regra o caráter até então excepcional da responsabilidade objetiva, isto é, transformando-a em preceito legal geral. Doutrinadores de estirpe, entre nós, têm analisado esta profunda mutação de estrutura estampada na nova Lei Civil e têm revelado preocupação com as conseqüências que a transformação legislativa abrupta poderá causar. João Baptista Villela - com o destaque que sempre merece - expressava já esta preocupação em seu trabalho de 1991, denominado "Para além do lucro e do dano: efeitos sociais benéficos do risco"4, advertindo que eventualmente pudesse ocorrer (por força do constrangimento resultante do rigoroso sistema implantado, fundado no risco decorrente da atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano) um certo acanhamento no desenvolvimento da pesquisa científica, mormente aPage 584 genética, e que trouxesse, como nefasta conseqüência, uma recessão no progresso da humanidade. O art. 927 e § único do novo Código5 destacam assim, em vivas letras, aquilo que é uma necessidade crescente entre nós: o dever de indenizar independentemente de culpa dentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, grande risco para os direitos de outra pessoa.

Obviamente, apesar desta marcante tendência objetivista da responsabilidade civil, na Lei nova, não se encontra abandonada a responsabilidade por culpa, continuando consagrada na Parte Geral, entre os dispositivos que formatam o Título relativo aos atos ilícitos6, repetindo-se adiante, no arcabouço da responsabilidade civil propriamente dita.7 Relativamente à responsabilidade do incapaz incapaz, avançou significativamente o novo Código8, ao prever que ele responde pelos danos a que der causa, se seus responsáveis não tiverem a obrigação de indenizar ou se o patrimônio destes, desde que responsabilizados, não for suficiente para atender ao reclamo da vítima. Trata-se de interessantíssimo avanço já conhecido de outras legislações estrangeiras, e que atende rigorosamente a este paradigma da pós-modernidade que aponta o foco de atenção, do direito e da lei, para a pessoa da vítima e para a imprescindibilidade de refazimento de sua circunstância jurídico- patrimonial afetada pelo dano sofrido, mas, especialmente, pelo refazimento de sua condição de titular do direito à dignidade constitucionalmente plasmada enquanto valor máximo da pessoa humana pessoa humana, pela imposição do dever indenizatório ao causador do dano, ainda que incapaz.

Embora o novo Código não...

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