O que resta da Comissão Nacional da Verdade?: A política do tempo nas comissões da verdade

AutorAndrea Schettini
CargoDoutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio em cotutela com a Université Paris Nanterre (França)
1424
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 3, 2022, p. 1424-1456.
Andrea Schettini
DOI: 10.1590/2179-8966/2021/57506| ISSN: 2179-8966
O que resta da Comissão Nacional da Verdade?: A política do
tempo nas comissões da verdade
What is left of the Brazilian National Truth Commission?: The politics of time in
truth commissions
Andrea Schettini¹
¹ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: andrea-schettini@puc-rio.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3071-4410.
Artigo recebido em 02/02/2021 e aceito em 19/07/2021.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 3, 2022, p. 1424-1456.
Andrea Schettini
DOI: 10.1590/2179-8966/2021/57506| ISSN: 2179-8966
Resumo
O objetivo deste ensaio é analisar criticamente a política do tempo construída no campo
da justiça de transição e reproduzida no âmbito das comissões da verdade. Trata-se de
investigar a relação entre os discursos histórico e jurídico e seus efeitos na delimitação
simbólica do passado violento e do presente democrático. A experiência da Comissão
Nacional da Verdade atravessa o presente ensaio enquanto importante referência para o
estudo crí tico das comissões da verdade, evidenciando o s limites e as potencialidades
desse mecanismo de justiça.
Palavras-chave: Política do tempo; Comissão da verdade; Justiça de Transição.
Abstract
This study aims to investigate the politics of time constructed by the transitional justice
field and reproduced by truth commissions. It seeks to analyze the relationship between
historical and legal discourses and their effects on the delimitation of what should be
considered the past and the present. The experience of the Brazilian National Truth
Commission is addressed as a reference for the study of truth commissions, capable of
bringing relevant contributions to the analysis of these mechanisms of justice.
Keywords: Politics of time; Truth Commissions; Transitional Justice.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 3, 2022, p. 1424-1456.
Andrea Schettini
DOI: 10.1590/2179-8966/2021/57506| ISSN: 2179-8966
Introdução
Inseridas no âmbito da justiça de transição campo teórico e prtico destinado a
investigar como as sociedades tm dado conta dos legados de graves violaes de direitos
humanos , as comissões da verdade contabilizam hoje em torno de 35 experincias1,
implementadas em diferentes pases ao redor do mundo. Associados ideia de realizao
de uma justia histrica, de implementao de polticas de reparao e de memria e de
execuo de "polticas retrospectivas"2, estes novos modelos institucionais foram criados,
na dcada de 1980, no contexto das transies democrticas no Cone Sul Americano. E,
posteriormente, a partir dos anos 1990, consolidaram-se como um dos principais
mecanismos de "acerto de contas" com o passado violento, implementados em contextos
posteriores a guerras, conflitos internos, massacres, genocdios e ditaduras.
rgos oficiais, temporrios, autnomos, investigativos, centrados nas vtimas e
com atribuies jurdico-polticas, comisses tm por funo elucidar a verdade sobre as
violncias pretritas, concluindo seus trabalhos com a publicao de um relatrio final.
Diferenciam-se de tribunais penais principalmente em razo do modo como constroem a
verdade, tida geralmente por mais flexvel e mais aberta participao das vtimas e da
sociedade. Comumente asso ciadas fundao de uma nova ordem poltica,
reconciliao social, ao reconhecimento e reparao das vtimas e contribuio para o
"nunca m ais", as comissões da verdade revelaram-se um potente espaço de encontro
entre o direito, a memória e a história em contextos de violência política3.
1 Vale dizer que o nmero de comisses existentes costuma variar muito nas anlises dos estudiosos,
sobretudo em funo dos diferentes contornos conceituais adotados. Segundo Eric Brahm, em artigo
publicado em 2010, as pesquisas sobre comisses da verdade realizadas nos 10 anos precedentes
identificaram entre 20 e 75 comisses da verdade. (W IEBELHAUS-BRAHM, Eric. “What is a truth commission
and why does it matter?”. Peace and Conflict Review, v. 3, n. 2, 2009, p. 2.) Neste estudo, optei por utilizar os
dados recolhidos por Onur Bakiner. Ver: BAKINER, Onur. Truth Commissions: memory, power and legitimacy.
Filadelfia: University of Pennsylvania Press, 2016, pp. 27-29.
2 BEVERNAGE, Berber. “The past is evil/evil is past: on retrospectives politics, philosophy of history, and
temporal manichaeism”. History and Theory, vol. 54, 2015, p.334.
3 Segundo Le Franc, o conceito de violncia poltica abra nge tanto a violncia em massa, quanto a violncia
extrema. Violncia poltica aqui compreendida como aquela praticada por um poder poltico (seja atravs
de um Estado ditatorial, de um regime autoritrio ou mesmo grupos que assumem o poder poltico e
territorial sobre um Estado), contra indivduos, opositores polticos ou minorias tnicas em contextos de
represso generalizada. (LEFRANC, Sandrine. “La justice dans l’aprs-violence politique”. In: COIMMAILLE,
Jacques (et al). La fonction politique de la justice, Paris: ditions La Dcouverte, 2007. P. 273). Insere-se
também, nesse conceito, a violncia de Estado, ou seja, a violncia perpetrada pelo Estado, seja atravs da
ao ou omisso de seus agentes e instituies, bem como por terceiros que atuam em seu nome ou que
contam com sua conivncia e tolerncia, em um contexto de práticas reiteradas de graves violações de
direitos humanos.

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