Revelia e persuasáo racional do juiz

AutorAndré Ricardo Vier Botti/Lourival José de Oliveira
Páginas132-153

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1 Introduçáo

O processo visa a satisfacáo de uma pretensáo resistida, cuja demanda é o instrumento para exigir que a tutela jurisdicional atue, formulando uma norma jurídica concreta e individual para o caso, o que culmina com a pacificacáo do confuto.

Aduzir uma pretensáo em Juízo significa pedir a prolatacáo de um provimento jurisdicional que substituirá os sujeitos em confuto para eliminar a resistencia do demandado, já que foi vedada a autotutela.

Também o demandado formula sua demanda, ao apresentar a defesa, postulando a declaracáo de que sua resistencia é justificada, oPage 133 que significa, a contrario senso, o pedido de improcedencia da demanda inicial.

A resposta é a oportunidade para que o demandado aduza as razoes da sua resistencia a pretensáo do demandante. O autor quer que a resistencia do réu seja declarada injustificada e cesse. Por seu turno, o réu pretende a declaracáo de que é justa a sua oposicáo.

O binomio demanda e resposta é a premissa da direcáo contraria dos interesses dos demandantes, representando a bilateralidade do processo, já que a cada demanda inicial ou incidental do demandante existirá a correspondente pretensáo do demandado.

Observa-se, entáo, que a posicáo de demandante é apenas urna questáo de oportunidade e agilidade, pois tanto o demandante quanto o demandado possuem urna pretensáo resistida a ser apresentada para solucáo pelo Estado-Juiz, sendo que aquele que primeiro protocolar sua demanda junto ao órgáo jurisdicional assumirá a posicáo de demandante.

Assim, tal qual ao demandante nao se obriga deduzir sua pretensáo em juízo, tanto que a jurisdicáo é inerte e aguarda a sua provocacáo, nao é exigido ao demandado que se discorde da demanda a qual está sendo submetido.

A finalidade do processo é a pacificacáo e nao fomentar a discordia. Daí, a legislacáo processual contenta-se em oportunizar que o demandado se manifesté quanto á demanda do autor, o que pode se dar pela inercia, aquiescencia á pretensáo exposta, apresentacáo de defesa ou mesmo com a formulacáo de nova pretensáo via reconvencáo.

Destarte, nao há que se negar que a postura do demandado lhe acarretará efeitos na sua órbita jurídica, cabendo a ele a escolha pela conduta mais conveniente, apesar das conseqüéncias da mesma serem impostas pela legislacáo, coercitivamente.

Contudo, na constante busca pela verdade material, atualmente, incumbe ao Juiz se cercar dos instrumentos legáis para a busca do justo, nao como mero espectador do processo, compatibilizando os poderes dispositivos das partes com os seus poderes instrutórios, assumindo urna postura ativa na relacáo jurídica processual, revelándose diretor material do processo.

Após a provocacáo da jurisdicáo, a justa solucáo da demanda nao mais interessa apenas as partes, mas sim a toda sociedade, que representada pelo Poder Judiciário erradicará o confuto.Page 134

Resta ultrapassado o modelo processual onde a neutralidade total do juiz era fator primordial para a garantía do justo, com o predominio do interesse das partes, cabendo ao Judiciário apenas aplicar a lei. Atualmente, a postura ativa do Estado-Juiz vem consagrar a isonomia substancial.

Ora, o nao atendimento pelo réu ao chamando judicial para integrar efetivamente a relacáo jurídico-processual, aduzindo as razoes da sua resistencia na forma e prazo estabelecidos pela legislacáo processual, apesar de acarretar a revelia, nao implica na automática procedencia do pedido do autor.

Embora na revelia, via de regra, ocorra a presuncáo de veracidade dos fatos alegados pelo autor, ante a nao satisfacáo do ónus de apresentar defesa pelo revel, o juiz nao pode ficar alheio a realidade fática. O magistrado nao pode aceitar absurdos decorrentes da presuncáo, devendo limitá-la á relatividade que a cerca.

Para se atingir um juízo de valor na revelia, consentáneo com a realidade material, com o deferimento á parte da exata medida do direito que lhe incumbe, somente seráo tidos como verdadeiros os fatos aduzidos pelo autor, face o revel, depois de aquilatados pelo juiz com o binomio da verossimilhanca e credibilidade, bem como as demais provas encartadas no processo.

A revelia visa á celeridade processual e nao urna abstrata punicáo do revel, já que, nos dizeres de Cándido Dinamarco, "a revelia nao é mais tratada como rebeldía, como em tempos idos, nem o efeito da revelia pode ser encarado como pena, mas simplesmente como expediente aceleratório do processo" (2000, p. 951).

A relativizacáo dos efeitos da revelia significa nao admitir fatos impossíveis ou inverossímeis, dos quais o Estado-Juiz, na conducáo do processo, em busca da verdade material, deve exigir a prova de quem fez as alegacoes. Nao há que se deixar de reconhecer e aplicar a revelia, apenas limitar o seu alcance, imputando o ónus probatorio do extraordinario (fato constitutivo do direito da parte), já que o corriqueiro realmente se presume.

A verificacáo dos fatos alegados, pelo sistema probatorio, nao pode mais integrar o monopolio das partes, sendo necessária á determinacáo de provas ex oficio pelo Estado-Juiz, nos precisos termos do artigo 130 do Código de Processo Civil Brasileiro, independentemente da disponibilidade ou nao da relacáo jurídica material.Page 135

O objetivo é restaurar a integralidade do Ordenamento Jurídico, mesmo na revelia, por meio de um processo efetivo, que vai além da solucáo ágil da demanda para alcancar, também, a justa composicáo do confuto, o que acarreta na credibilidade e certeza de justica pela sociedade, fins colimados pelo Estado Democrático de Direito.

2 Da revelia: Relativizacáo da Revelia; Intervengo do Revel no Processo; Iniciativa Probatoria e Prova na Revelia

2.1 Relativizacáo da revelia

Apesar de se verificar a revelia, vista como fato objetivo do nao atendimento ao chamado judicial na forma e prazo fixados, nem sempre os seus efeitos ocorrem, restando relativizados em determinadas hipóteses.

O próprio Código de Processo Civil1 arrolou algumas situacoes em que há a revelia (ausencia de defesa), mas nao os seus efeitos.

Além, das hipóteses elencadas no artigo 320 do Código de Processo Civil, que sao meramente exemplificativas e nao exaustivas, pode-se encontrar no próprio texto legal outros óbices aos efeitos da revelia, quais sejam: nomeacáo de curador especial ao réu citado por edital ou com hora certa que deixou de contestar a acáo (artigo 9a do Código de Processo Civil); apresentacáo de contestacáo pelo assistente simples do revel (artigo 52, parágrafo único do Código de Processo Civil); ou se o réu apresentar apenas outro tipo de resposta (reconvenció, por exemplo), a qual, tomada em seu conjunto, é incompatível com a presuncáo de veracidade.

Contudo, a relativizacáo dos efeitos da revelia nao está circunscrita ás hipóteses legáis, vez que a própria finalidade do processo é encontrar urna justa solucáo para o confuto, sendo que "quando a adocáo da revelia ou de seus efeitos puder trazer prejuízo á própria aplicacáo daPage 136 justica, nao deve ser acolhida e por isso nao gera efeitos contra o revel" (SOUZA, 1995, p. 195).

Com o passar dos anos, porém, restou cristalino o entendimento de que a mentira processual nao pode gozar de protecáo, que o magistrado nao deve se contentar com a verdade formal, mas deve ir em busca da verdade real, no sentido de que o juiz deve ser um participante no processo, deve estar convencido de que o fato constitutivo do autor está definitivamente provado e nao por presuncáo deva ser admitido, como verdadeiro. Assim, no decorrer de anos vem se mitigando esta penalidade imposta, pelo legislador, ao revel de tal forma que hoje nos dedicamos ao estudo dos limites que devem ser impostos ao juiz na absolvicáo do 'delinqüente' (GIANESINI, 2003, p. 223).

Considerando a unidade do Ordenamento Jurídico, mesmo na revelia, efetivamente a realidade vivenciada no direito processual nao pode distanciar-se do direito material, que deve servir como um instrumento de justica e nao de descrédito do Judiciário.

O que a lei quer é fazer com que o processo cumpra rápidamente suas funcoes sociais e, portanto, nao está disposta a se sujeitar a esperas indeterminadas, sancionando, por isso, a omissáo, embora nao chegue a ponto de querer distorcer o sentido de justica e o sentido de instrumentalidade do processo (GIANESINI, 2003, p. 223).

Destarte, no procedimento sumario do processo de conhecimento a revelia é fruto da falta injustificada de comparecimento do réu a audiencia, reputando-se verdadeiros os fatos alegados na peticáo inicial, "salvo se o contrario nao resultar da prova dos autos",2ressalva que nao é feita expressamente no procedimento ordinario.

Mas, vendo o processo de conhecimento como urna unidade sistémica, nao faria sentido tratar a revelia com dimensoes diferentes (WAMBIER; ALMEIDA; TALAMINI, 2002). Assim, "em se tratando de procedimento ordinario, tanto quanto no procedimento sumario, ocorrendo a revelia, reputam-se verdadeiros os fatosPage 137 afirmados pelo autor, salvo se o contrario nao resultar da prova dos autos" (ALVIM, 2002).

Toda presuncáo nao pode ser vista de maneira absoluta, mas sim dentro da relatividade que a cerca, já que a veracidade dos fatos afirmados pelo autor cede se o contrario resultar da prova dos autos.

A presuncáo de veracidade deve ser confrontada com a verossimilhanca e coeréncia das demais provas encartadas ao processo para que se chegue a um juízo de valor correto e consentáneo com a realidade material (MOREIRA, 1976).3

A falta de defesa deve ser apreciada em cada caso, levando-se em conta a verossimilhanca dos fatos aduzidos e a sua coeréncia com os demais elementos de prova, exercendo o magistrado urna atividade valorativa quanto os...

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