A miséria atrás das grades: a produção da criminalidade a partir da seletividade da norma penal

Autor1.Airto Chaves Junior - 2.Marisa Schmitt Siqueira Mendes
Cargo1. Mestrando do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica-CMCJ, do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - 2. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Páginas13-31

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O pior mal já está feito quando se tem pobres para defender e ricos para conter. É apenas sobre a mediocridade que a força das leis se exerce por completamente: elas são igualmente impotentes contra os tesouros do rico e contra a miséria do pobre; o primeiro as engana, o segundo as escapa. Um rompe a rede, o outro passa através dela.

(Rousseau, in Discours sur l’Economie Politique)

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Introdução

O Sistema Penal3 se dirige quase sempre contra certas pessoas, raramente contra certas condutas. Uma parcela de privilegiados possui a capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das próprias condutas criminosas. Os pobres são constantemente atingidos pelas agências de repressão não porque delinquem mais, mas porque têm maiores chances de serem criminalizados. Por esta razão, antes de falar-se em criminalidade, devemos tentar compreender o processo de criminalização preconizado pelo sistema penal. Esse processo pode ser dividido em processo primário e processo secundário de criminalização.

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O primeiro designa o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. O segundo é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que se supõe tenha praticado certo ato criminalizado primariamente.4 Aquela é realizada pelos legisladores, quando da produção da norma; esta, pelas agências estatais, tais como Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e sistema penitenciário.

A pesquisa cujos resultados ora são relatados preocupou-se fundamentalmente com a criminalização primária, isto é, os aspectos de seletividade na produção da norma. A criminalização secundária é objeto de exame superficial, pois o aprofundamento exigiria uma pesquisa específica com técnicas diferentes daquelas aplicadas no presente trabalho.

Ver-se-á, neste contexto, que o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta, mas uma qualidade atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de seleção. E todo esse aparato já pode ser diagnosticado a partir da produção da norma penal, que não raras vezes vem ao mundo jurídico objetivando atingir determinados grupos de pessoas, notadamente àqueles pertencentes aos mais baixos extratos sociais, conservando assim, a reprodução das desigualdades sociais intrínsecas ao próprio sistema.

1 Lei Penal para quem?

Em 1997, Galdino de Jesus dos Santos, um chefe indígena que estava de visita em Brasília, foi queimado vivo enquanto dormia numa parada de ônibus. Cinco rapazes de boa família, que andavam farreando, jogaram álcool nele e lhe tocaram fogo. Pensamos que era um mendigo, justificaram eles.5 Um ano depois, a justiça brasileira lhes aplicou penas alternativas, pois não se tratava de um caso de homicídio qualificado. O relator do Tribunal de Justiça do Distrito Federal explicou que os rapazes tinham utilizado apenas a metade do combustível que possuíam e isto provava que tinham atuado movidos pelo ânimo de brincar, não de matar.

Alguns anos mais tarde, Maria Aparecida de Matos, 24 anos, empregada doméstica que só sabe desenhar o nome, mãe de dois filhos pequenos, completouPage 16mais de onze meses na prisão. Ela foi acusada de tentativa de furto de um xampu e um condicionar, no valor de R$ 24,00 de uma farmácia de São Paulo.6

Maria Aparecida foi protagonista de uma discussão jurídica sobre a prisão para crimes de valor irrisório e de baixa periculosidade. Após esse longo período de isolamento, Ministros do Supremo Tribunal Federal defenderam a aplicação do princípio da insignificância7. Em 2004, o mesmo Tribunal suspendeu processos contra dois jovens, um de São Paulo e outro de Mato Grosso do Sul, em situações semelhantes à de Maria Aparecida. Um deles tinha sido condenado a dois anos pelo furto de um boné no valor de R$ 10,00. Outro recebeu a pena de oito meses pelo furto de uma fita de videogame avaliado em R$ 25,00.

Quanto a Maria Aparecida, a Liberdade Provisória foi negada. No pedido, a defesa solicitou ao Tribunal de Justiça a mesma avaliação que fez ao caso do promotor de Justiça Thales Ferri Schoedl. Ele havia sido preso em flagrante por ter matado com disparos de arma de fogo um jovem, além de ferir outro, em dezembro de 2004. Na ocasião, Schoedl alegava legítima defesa. Em 16 de fevereiro de 2005, o Tribunal de Justiça concedeu liberdade provisória ao promotor8.

Em outubro de 2007, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu pedido de Habeas Corpus para que o morador de rua, Marciano Schott Fraga, do Rio de Janeiro, para responder em liberdade a acusação de furtar um xampu, avaliado em R$ 13,00. Ele estava preso desde abril daquele ano, ou seja, há seis meses. Dado importante: o acusado possuía os treze reais para devolver.

Poderíamos elencar aqui, inúmeros acontecimentos como esses. Situações que dia a dia confirmam a razão de ser do sistema penal brasileiro. Um sistema dePage 17valores que exprime e reflete o universo moral próprio de uma cultura burguesa e individualista. Uma cultura que dá máxima ênfase à proteção do patrimônio privado (mesmo quando for ínfimo o seu valor de mercado) e se orienta, predominantemente, para atingir as condutas de desvio típicas dos grupos socialmente fragilizados do ponto de vista econômico.

Em determinados casos, o sistema penal apresenta-se em pleno funcionamento. É o Estado presente, participativo, atuante quando da ocorrência do fenômeno criminal. É, nas palavras de Loïc Wacquant9, à maciça expansão do seu punho penal. Em outros, a intervenção parece ser tão ínfima que quase não percebemos sua atuação.

Mas por que alguém que pratica um furto de um xampu permanece tanto tempo encarcerado enquanto um jovem de classe média é solto depois de matar ou ferir gravemente uma pessoa? Quem deveria ser realmente penalizado, a pessoa que atenta contra o patrimônio privado ou quem interrompe a vida de alguém? As respostas partem da estrutura de todo o sistema penal (Leis, Polícia, Ministério Público, Justiça e Prisão), que demonstra uma inegável tendência a preservar os interesses das elites do poder econômico, funcionando, nesse contexto, como um instrumento de dominação de classes.

O Direito em nosso Mundo Jurídico é descrito de várias formas, e segundo Eros Grau10, destaca-se alguma das maneiras de descrever tal Direito:

[...] descrevê-lo como sistema de normas que regula – para assegurá-la – a preservação das condições de existência do homem em sociedade. Mas, de outra parte, posso descrevê-lo, exemplificativamente também, desde uma perspectiva crítica, introduzindo, então, a velha questão, do expositor e do censor (crítico) do direito, daquele que explica o direito, tal como o entende, e daquele que indica o que crê deva ser o direito – a separação entre o que é e o que deva ser o direito (Bentham).

Já faz um século que José Hernandes11 comparou a lei como uma faca, que jamais fere quem a maneja. Os discursos oficiais invocam a lei como se ela valesse para todos, e não só para os infelizes que não podem evitá-las, atendendo o princípio da igualdade. Denota-se, contudo, que o cenário do cotidiano é bemPage 18diferente: os delinqüentes pobres são os vilões do filme, os delinqüentes ricos escrevem o roteiro e dirigem os atores12.

2 O mito do Direito Penal Igualitário e o processo de criminalização primária
2. 1 Igualdade desigual do direito penal

Para que existisse um Direito Penal13 realmente igual para todos, Alessandro Baratta14 formulou duas proposições fundamentais. Em primeiro lugar, o Direito Penal deveria proteger igualmente todos os cidadãos contra ofensas aos bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, caracterizado pelo princípio do interesse social e do delito natural; e em segundo lugar, a lei penal deveria ser igual para todos, ou seja, todos os autores de comportamentos antissociais e violadores de normas penalmente sancionadas teriam iguais chances de tornarem-se sujeitos, e com as mesmas conseqüências, do processo de criminalização, este, então, sustentado pelo princípio da igualdade.

A rigor, portanto, a norma penal seria dirigida a todas as pessoas, não importando a classe social a que pertença. Não precisamos, contudo, de um raciocínio muito apurado a constatar que a realidade do Direito Penal é outra: ela própria já distingue os autores dos crimes segundo suas classes sociais.

Por esta razão, Baratta considera o direito penal igualitário um mito, talvez porque foi algo nunca realmente buscado. Neste contexto, descreveu as verdadeiras características sustentadas pelo modelo penal, trazendo aspectos profundamente seletivos:

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a) o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quanto pune as ofensas aos bens essenciais faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;

b) a lei penal não é igual para todos; o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; e

c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade.15

Há quase 30 anos Eugênio Raúl Zaffaroni elabora profunda crítica aos ordenamentos jurídicos penais. O autor destaca a partir daí que a lei penal estabelecia tratamento diferenciado de censura de pessoas, dependendo do papel que estas ocupassem na estrutura social, notadamente, em virtude de poder do consumo:

[...] reprovar com a mesma intensidade pessoas que ocupam situações de...

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