Sacrifício animal em rituais religiosos: liberdade de culto versus direito animal (parte 1)

AutorSamuel Santana Vida
CargoProfessor de Direito da Universidade Federal da Bahia
Páginas289-305

Page 289

Bom dia a todos e todas. Quero saudar a mesa, cumprimentando seus integrantes, especialmente o grande responsável pela atividade, professor Heron Santana. O professor Heron se dedicou a esta atividade, e vem cogitando iniciativas similares há algum tempo, e a arquitetou, sendo o principal responsável pelo sucesso, em termos de comparecimento, motivação, de envolvimento. Eu diria até que ele abusou de uma estratégia de marketing, produzindo um cartaz que sugeria uma espécie de luta livre, e açulou bastante a curiosidade e a expectativa das pessoas, que me paravam em todos os lugares pra dizer: "mas quem é esse cara que veio de Harvard pra discutir com você?" Pois é, a estratégia de um duelo. Mas não

Page 290

é um duelo, é um diálogo, uma discussão que tem grande importância, mas não é um conflito em que uma das partes deve ser eliminada, ou subalternizada. Então, o professor Heron está de parabéns. Há muito tempo não vejo este auditório tão lotado, tão animado, e mais, não apenas com estudantes de direito da UFBA. Vale registrar que aqui é visível a presença de estudantes de direito de outras instituições, assim como a presença de ativistas do movimento negro e de lideranças religiosas. O que faz com que a Universidade ganhe, cumprindo dessa maneira, o seu papel social, a sua função social na plenitude, que é de não ser uma torre de marfim, isolada do mundo, e discutindo no monastério dos sábios, a solução para a humanidade, mas um corpo vivo que interage com a sociedade, portanto que coloca-se atento ao que a sociedade pensa, cogita, pratica, em torno das questões que aqui discutimos.

Quero dizer a vocês que minha fala parte de um ponto de referência, que nega a academia como dotada de uma autonomia absoluta, e de uma especificidade de tratamento das questões. Para mim a academia só cumpre o seu papel quando deixa de ser a academia de Platão, pra ser um espaço aberto, interativo com a comunidade, com a sociedade, com as demandas que estão postas. Portanto, a abordagem que faço sobre este tema não se limita a uma reflexão teórica, abstrata, racionalizada no plano jurídico, mas a um diálogo com o que a sociedade concreta vivencia em nosso país. Por isso, chamo a atenção, preliminarmente, para o fato de que discutir sacrifício de animais em rituais religiosos, no contexto do Brasil, tem, do ponto de vista social, um direcionamento exclusivo. Significa focalizar a prática religiosa de matriz africana, e, ao focalizála, são avocados inúmeros preconceitos, mitos, uma profunda ignorância, e uma manifesta possibilidade de discriminação. Não reputo a fala do professor Daniel Braga como contaminada por esta perspectiva, e a sua demarcação, sobretudo final, em torno do direito a vida dos animais, evidencia essa não focalização. Mas, é obvio que o professor Daniel Braga não fala para si apenas, é óbvio que a Universidade, o Judiciário e as Instituições também não decidem as questões orientados por qualquer lógica "a-histórica", "trans-histórica", fundada numa racionalidade abstrata. Há sempre uma contingência num contexto sócio-prático de relações, interesses, simbologias, valores, combinações etc., Este é o meu

Page 291

ponto de partida para enfrentar o debate. Nós temos no Brasil uma tradição discriminatória contra as religiões de matrizes africanas que é fundante da própria sociedade brasileira. Se você buscar os primeiros registros, quando da trazida de africanos escravizados para o Brasil, no que concerne a regulamentar a sua conduta, vai encontrar de imediato interdições relativas a práticas religiosas, que sobrepõem-se e antecipam até outras preocupações. Desde o primeiro momento adotou-se a interdição dos batuques, a interdição das prática litúrgicas, a "demonização" sistemática daquelas manifestações de espiritualidade, daquelas manifestações de vivência com o transcendente, com a dimensão divina. Esta tradição, portanto está profundamente disseminada no interior da sociedade brasileira e contamina inclusive as instituições, tomando o conceito de instituições na sua abordagem lato sensu, portanto, tanto as públicas como as privadas. Nós podemos identificar ainda os vestígios legais desta disposição discriminatória institucional, a exemplo dos tipos penais de charlatanismo e curandeirismo, que, historicamente foram utilizados para reprimir lideranças religiosas, para criminalizar as suas atividades, para desautorizar as suas manifestações, inclusive no domínio médico, inclusive no manejo de uma sabedoria milenar concernente ao cuidado da saúde.

No tratamento constitucional para a liberdade religiosa adotado até 1988, prevalecia uma recomendação restritiva que condicionava a liberdade religiosa aos bons costumes, à manutenção da ordem e moral públicas, e óbvio que estes conceitos todos são traduzidos concretamente em uma sociedade de desigualdades, numa sociedade de profunda predisposição discriminatória, contra tradições não européias, qualificando-as como atentatórias aos bons costumes.

Há um episódio curioso que revela a dimensão prática destes dispositivos, evidenciado durante a constituinte de 45, quando buscouse uma emenda supressiva, revogando do projeto original esta referência a bons costumes, a ordem, a moral. Um dos defensores de tal iniciativa foi o ex-professor daqui da casa e deputado federal Aliomar Baleeiro, um dos poucos juristas que, na discussão teórica mais abstrata conseguia perceber a necessidade de dialogar com a diversidade multicultural. É um dos poucos juristas que sustentava já há décadas, que a imunidade

Page 292

tributária, por exemplo, deve ser assegurada para terreiros de candomblé, como templos que são. Algo que até hoje não é pacificado e reconhecido pelo direito e pelas instituições. Aqui em Salvador nós temos uma luta permanente contra a cobrança de IPTU, e eventualmente contra a incidência de outros tributos que são dirigidos aos templos de matrizes africanas. Então, a permanência discriminatória na tradição institucional brasileira, pode ser detectada facilmente e não pode ser afastada do contexto de reflexão sobre a matéria, sob pena de admitirmos a existência de um mundo paralelo, "descontaminado" da vida real com o qual nós lidaríamos, e obviamente que esta não pode ser a nossa escolha, ou não deve ser eticamente a nossa escolha pra conceber o direito, pra conceber a produção de conhecimento teórico.

Outro aspecto que marca esta tradição discriminatória, sobretudo no âmbito privado, mas algumas vezes se insinua também no público, é a "demonização" das expressões religiosas de matrizes africanas. Há uma crença disseminada na sociedade de que aquelas práticas religiosas estão associadas ao maniqueísmo cristão de Deus e o Diabo, e se destinam ao culto dos demônios, ou de qualquer variação assemelhada. Aqui nesta Faculdade, recentemente, um aluno, numa aula disse, com um tom de naturalidade, que as manifestações preconceituosas gozam no interior do senso comum: "todos sabem que no candomblé se sacrificam crianças", e isso não foi contestado. O mais grave, a confirmar a persistência desta mentalidade, é que não causou nenhuma comoção junto aos demais interlocutores que assistiam a aula, nem o professor, nem os assistentes; isso foi reiterado, portanto, como algo absolutamente real, a povoar a imaginação doentia da sociedade. Não é muito diferente da imaginação acerca do vodu do Haiti. Uma imaginação criada historicamente pelo cinema, presente na cinematografia hollywoodiana, num momento em que os Estados Unidos buscavam ocupar o Haiti, e era preciso "demonizar" aquela população, que deu o exemplo mais heróico e mais belo de resistência anticolonial, no início do século XIX, conquistando autonomia e independência numa luta encarniçada, numa luta extremamente brutal contra a metrópole francesa. Portanto, é relevante contextualizar esses aspectos porque senão nós fazemos um debate puramente abstrato, sem tangenciar os contornos da vida "como

Page 293

ela é", como diria Nelson Rodrigues. Bom, daí nós temos um segundo aspecto a ser considerado: o direito precisa ganhar cada vez mais uma dimensão de racionalidade aberta, de uma racionalidade que não se fecha numa racionalização, que não sucumbe àquilo que Tércio Sampaio, de forma muito lúcida, denomina de "astúcia da razão dogmática", e que consiste em desconsiderar a riqueza da vida...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT